EM DIREÇÃO AO SUL
Laurent Cantet, Vers Le Sud, França/Canadá, 2005

Quando Em Direção ao Sul foi lançado na França, Laurent Cantet rebateu publicamente as críticas feitas ao filme, recusando a patrulha que condenava o diretor de dois grandes sucessos anteriores (com filmes sobre o ambiente corporativo e as relações trabalhistas no país) por agora “trair” sua própria carreira se metendo num filme de época, em clima ensolarado, uma história de turismo sexual e redenção feminina. Por mais que esta seja uma polêmica mesquinha demais para ser levada em consideração, não há como negar que ela diz muito sobre o filme que Cantet realizou. De fato, se não houvesse feito antes Recursos Humanos (1999) e A Agenda (2001), talvez não existisse este olhar sobre o Haiti dos anos 70 e as tramas de jovens senhoras estrangeiras financiando seu amor com belos rapazes locais, exercido como a observação de um sistema, de uma máquina em funcionamento que, de repente, é aberta lateralmente de modo a nos exibir toda sua engrenagem, disponível à revelação dos menores detalhes de sua engenharia. Se há algo em Em Direção ao Sul que deveria ser elogiado é justamente esta sua consciência do cenário aparentemente idílico e suspenso no tempo-espaço de uma praia paradisíaca como o lugar de tensões explícitas de poder e classe, o funcionamento declarado de um regime corporativo, sua lógica empresarial, seus sindicalismos insurgentes.

Naquele Haiti dominado pela ditadura de Baby Doc, de pobreza disseminada, onde a exploração estrangeira é tão perniciosa quanto irrecusável, os papéis já estão dados, todos se viram bem com eles, e o estado geral é sabidamente irreversível. A primeira seqüência do filme anuncia a derrota moral, e sendo o momento de exposição mais cruel da lógica mercantilista operada ali, acaba jogando sobre todo o resto do filme uma sombra da qual Em Direção ao Sul nunca consegue se livrar. É uma das pouquíssimas seqüências em que estão em cena apenas personagens haitianos, interagindo entre si. Enquanto Albert, o gerente do hotel onde toda a trama se passa, aguarda mais uma das turistas estrangeiras no saguão do aeroporto de Porto Príncipe, uma conhecida sua, de tom cansado e claramente profético (representação evidente da “consciência” do filme), se aproxima para lhe oferecer a filha mais nova – talvez para algum subemprego no hotel, algo que certamente envolveria sua prostituição. Diante da recusa de Albert, a velha senhora dispara que “é difícil identificar uma máscara boa ou má”, mas que “todos usamos uma máscara”. Uma vez que, no interior de Em Direção ao Sul, esse mandamento valha como verdade absoluta e universal, com a diferença que Cantet se esforça ao máximo para facilitar a identificação destas máscaras (como na pequena fábula de uma pedagogia esquerdista quase infantil que era Recursos Humanos, a detonação de um sistema social falido só se dá pela unidimensionalidade radical de todos os personagens, todos eles peões num jogo que não lhes dá direito a personalidades individuais, mas apenas espectros do coletivo), enfim, uma vez que o mandamento das máscaras dê o tom de Em Direção ao Sul, a questão é saber de quantas maneiras diferentes um filme pode tentar se disfarçar – e quanto de sua fragilidade de princípios é possível ser escondida por trás dessa variedade de apresentações da superfície.

Estratégia formal mais destacada em sua estrutura, Em Direção ao Sul é pontuado por longos monólogos em plano-seqüência das três principais turistas do hotel e do gerente Albert. Nome escrito na tela, as três mulheres falam diretamente para a câmera, enquanto ao haitiano resta um close lateral, e a voz em off. A duplicação destes personagens (atores e também narradores de suas próprias histórias) é de um brechtianismo de quinta ou sexta geração: num cinema como esse que Cantet pratica, já não se disfarça o pulso moral do diretor na regência daquilo que supostamente seria um universo fílmico auto-gestionado, qualquer gesto de independência da narrativa contra o mundo em que esta se inscreve não evita a impressão de um artifício de aprofundamento onde há, na verdade, um desejo de pura superfície. Os monólogos de Em Direção ao Sul surgem para revelar que Brenda (Karen Young), quarentona do interior sulista e conservador americano, teve seu primeiro orgasmo com Legba (Menothy César), quando o jovem haitiano ainda tinha 15 anos de idade, ou ainda que Albert tinha um pai que considerava os brancos presentes em seu país uns animais invasores, e que, pior que os canhões de guerra, o grande devastador do espírito local foram os dólares estrangeiros. De um lado, Cantet coloca nesses monólogos as palavras mais diretas e explicativas sobre a visão que o filme tem de si mesmo, e se elas soam como revelações “bombásticas” em um programa feminino da tevê sensacionalista (ou algo na linha “Monólogos da Vagina”, e todas as peças associadas a ela), sua veracidade e potência dramática tentam se resguardar no fato de que são, afinal, depoimentos sinceros, frontais e espontâneos de uma gente que se debate livremente com a vida (isso, é claro, se este recurso já não estivesse em sua quinta ou sexta geração, já bastante dominado e exaurido de suas energias iniciais).

O que Laurent Cantet faz, sistematicamente, é se esconder da ficção, e entregar a algum pressuposto real (turismo sexual como resumo da força imperialista no mundo, por exemplo, ou uma fala dita para a câmera como espaço da verdade de um personagem) toda essa incapacidade de lidar com a encenação de eventos e situações que são, em si, problemáticas. E isso não deixa de ser decepcionante num diretor que fizera antes, em A Agenda, um dos maiores filmes contemporâneos sobre a constatação de que há, na vida cotidiana, uma imensa obrigação de mise-en-scène. Se lá, ao acompanhar um empregado despedido de uma grande empresa que decide fingir que continua trabalhando, Cantet trabalhava na eliminação das evidências, numa visão de processo que não reatava as relações do personagem com o mundo, mas, ao contrário, só acentuava sua atuação, sua interpretação desmedida e inabalável do papel que lhe cabia naquela roda social, aqui, mesmo que abra o filme com a tal teoria das máscaras, o diretor se investe de um trabalho de investigação (da alma feminina, da mágoa colonialista) que resulta por demais conciliatório. Quando Brenda finalmente decide embarcar no jogo de sedução aberto entre as balzaquianas estrangeiras e os jovens negros lindos da ilha, depois de um passeio a cavalo pela praia, e no meio de uma roda de maconha, saca um moleque de 12 anos para dançar a música local que toca no rádio. O envolvimento da câmera se mede no envolvimento da personagem: por mais que esteja diante de situações potencialmente dramáticas, e até mesmo se arrisque a iniciá-las, rapidamente será a distância respeitosa e a culpa ocidental que darão as cartas. A pulsão sexual e o clima de liberação tem seus limites. Valem enquanto discurso, um “ele me faz gozar sem nem mesmo me tocar” aqui, outro “ele pertence a todas nós” acolá. Mas filmar o desejo, filmar esse ardor, encenar a liberação, e sua incongruência num ambiente de repressão política total, enfim, levar às últimas conseqüências o teatro que transforma uma senhora de 40 anos e um menino de 12 em amantes potenciais (e justos, em todo aquele idílio), esse é um baile de máscaras que não interessa a Em Direção ao Sul.

Rodrigo de Oliveira

(DVD: Imovision)

 

 








A turista Brenda confessa suas frustrações sexuais num depoimento para a câmera, enquanto o empregado
Albert nunca a confronta diretamente:
brechtianismo de quinta geração