Quando Em Direção ao Sul foi
lançado na França, Laurent Cantet rebateu publicamente
as críticas feitas ao filme, recusando a patrulha que
condenava o diretor de dois grandes sucessos anteriores
(com
filmes sobre o ambiente corporativo e as relações trabalhistas no país) por
agora “trair” sua própria carreira se metendo num filme de época, em clima ensolarado,
uma história de turismo sexual e redenção feminina. Por mais que esta seja uma
polêmica mesquinha demais para ser levada em consideração, não há como negar
que ela diz muito sobre o filme que Cantet realizou. De fato, se não houvesse
feito antes Recursos Humanos (1999) e A Agenda (2001),
talvez não existisse este olhar sobre o Haiti dos anos 70 e as tramas de jovens
senhoras estrangeiras financiando seu amor com belos rapazes locais, exercido
como a observação de um sistema, de uma máquina em funcionamento que, de
repente, é aberta lateralmente de modo a nos exibir toda sua engrenagem, disponível à revelação
dos menores detalhes de sua engenharia. Se há algo em Em Direção ao Sul que
deveria ser elogiado é justamente esta sua consciência do cenário aparentemente
idílico e suspenso
no tempo-espaço de uma praia paradisíaca como o lugar de tensões explícitas de
poder e classe, o funcionamento declarado de um regime corporativo, sua lógica
empresarial, seus sindicalismos insurgentes.
Naquele Haiti dominado pela ditadura de Baby Doc, de pobreza disseminada, onde
a exploração estrangeira é tão perniciosa quanto irrecusável,
os papéis já estão dados, todos se viram bem com eles, e o estado geral é sabidamente
irreversível. A primeira seqüência do filme anuncia a derrota moral, e sendo
o momento de exposição mais cruel da lógica mercantilista operada ali, acaba
jogando sobre todo o resto do filme uma sombra da qual Em Direção
ao Sul nunca consegue se livrar. É uma das pouquíssimas seqüências em que
estão em cena apenas personagens haitianos, interagindo entre si. Enquanto Albert,
o gerente do hotel onde toda a trama se passa, aguarda mais uma das turistas
estrangeiras no saguão do aeroporto de Porto Príncipe, uma conhecida sua, de
tom cansado e claramente profético (representação evidente da “consciência” do
filme), se aproxima para lhe oferecer a filha mais nova – talvez para algum subemprego
no hotel, algo que certamente envolveria sua
prostituição. Diante da recusa de Albert, a velha senhora dispara que “é difícil
identificar uma máscara boa ou má”, mas que “todos usamos uma máscara”. Uma vez
que, no interior de Em Direção ao Sul, esse mandamento valha como verdade
absoluta e universal, com a diferença que Cantet se esforça ao
máximo para facilitar a identificação destas máscaras (como na pequena fábula
de uma pedagogia esquerdista quase infantil que era Recursos Humanos,
a
detonação de um sistema social falido só se dá pela unidimensionalidade radical
de todos os personagens, todos eles peões num jogo que não lhes dá direito a
personalidades individuais, mas apenas espectros do coletivo), enfim, uma vez
que o mandamento das máscaras dê o tom de Em Direção ao Sul, a questão é saber
de quantas maneiras diferentes um filme pode tentar se disfarçar – e quanto de
sua fragilidade de princípios é possível ser escondida por trás dessa variedade
de apresentações da superfície.
Estratégia formal mais destacada em sua estrutura, Em
Direção ao Sul é pontuado por longos monólogos em plano-seqüência das três
principais turistas do hotel e do gerente Albert. Nome escrito na tela, as três
mulheres falam diretamente para a câmera, enquanto ao haitiano resta um close
lateral, e a voz em off. A duplicação destes personagens (atores e também narradores
de suas próprias histórias) é de um brechtianismo de quinta ou sexta
geração: num cinema como esse que Cantet pratica, já não se disfarça o pulso
moral do diretor na regência daquilo que supostamente seria um universo fílmico
auto-gestionado, qualquer gesto de independência da narrativa contra o mundo
em
que esta se inscreve não evita a impressão de um artifício de aprofundamento
onde há, na verdade, um desejo de pura superfície. Os monólogos de Em
Direção ao Sul surgem para revelar que Brenda (Karen Young), quarentona do
interior sulista e conservador americano, teve seu primeiro orgasmo com Legba
(Menothy César), quando o jovem haitiano ainda tinha 15 anos de idade, ou ainda
que Albert tinha um pai que considerava os brancos
presentes em seu país uns animais invasores, e que, pior que os canhões de guerra,
o grande devastador do espírito local foram os dólares estrangeiros. De um lado,
Cantet coloca nesses monólogos as palavras mais diretas e explicativas sobre
a visão que o filme tem de si mesmo, e se elas soam como revelações “bombásticas” em
um programa feminino da tevê sensacionalista (ou algo na linha “Monólogos da
Vagina”, e todas as peças associadas a ela), sua veracidade e
potência dramática tentam se resguardar no fato de que são, afinal, depoimentos
sinceros, frontais e espontâneos de uma gente que se debate livremente com a
vida (isso, é claro, se este recurso já não estivesse em sua quinta ou sexta
geração, já bastante dominado e exaurido de suas energias iniciais).
O que Laurent Cantet faz, sistematicamente, é se esconder da
ficção, e entregar a algum pressuposto real (turismo sexual como resumo da
força imperialista no mundo, por exemplo, ou uma fala dita para a câmera como
espaço da verdade de um personagem) toda essa incapacidade de lidar com a
encenação de eventos e situações que são, em si, problemáticas. E isso não deixa
de ser decepcionante num diretor que fizera antes, em A Agenda, um dos
maiores filmes contemporâneos sobre a constatação de que há, na vida cotidiana,
uma imensa obrigação de mise-en-scène. Se lá, ao acompanhar um empregado
despedido de uma grande empresa que decide fingir que continua trabalhando, Cantet
trabalhava na eliminação das evidências, numa visão de processo que não reatava
as relações do personagem com o mundo, mas, ao contrário, só acentuava
sua atuação, sua interpretação desmedida e inabalável do papel que lhe cabia
naquela roda social, aqui, mesmo que abra o filme com a tal teoria das
máscaras, o diretor se investe de um trabalho de investigação (da alma feminina,
da mágoa colonialista) que resulta por demais conciliatório. Quando Brenda finalmente
decide embarcar no jogo de sedução aberto entre as balzaquianas estrangeiras
e os jovens negros lindos da ilha, depois de um passeio a cavalo pela praia,
e no meio de uma roda de maconha, saca um moleque
de 12 anos para dançar a música local que toca no rádio. O envolvimento da câmera
se mede no envolvimento da personagem: por mais que esteja diante de situações
potencialmente dramáticas, e até mesmo se arrisque a iniciá-las, rapidamente
será a distância respeitosa e a culpa ocidental que darão as cartas. A pulsão
sexual e o clima de liberação tem seus limites. Valem enquanto discurso, um “ele
me faz gozar sem nem mesmo me tocar” aqui, outro “ele pertence a todas
nós” acolá. Mas filmar o desejo, filmar esse ardor, encenar a liberação, e sua
incongruência num ambiente de repressão política total, enfim, levar às últimas
conseqüências o teatro que transforma uma senhora de 40 anos e um menino de 12
em amantes potenciais (e justos, em todo aquele idílio), esse é um baile de
máscaras que não interessa a Em Direção ao Sul.
Rodrigo de Oliveira
(DVD: Imovision)
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