Não são muitos os diretores
americanos atuais aos quais
podemos atribuir influências equilibradas e conscientes de David Lynch, sem que
isso soe sarcástico ou depreciativo. Com este A Pele, Steven Shainberg
talvez se confirme como este sujeito que recupera a visão sobre a vida americana
como um eterno escavar sob a superfície, identificando que é nos
subterrâneos dessa sociedade, e só ali, que ela se mostra de maneira mais entregue.
Mas estamos longe do realismo atroz e da verdade nua-e-crua que costuma se enxergar
neste tipo de operação (do marginalismo white-trash de Bubble,
de Steven Soderbergh, à elegância suburbana ameaçada pelo mal
do adultério e da pedofilia em Pecados Íntimos, de Todd Field, para ficarmos
nos exemplos recentes). Essa andar-de-baixo aparece sempre acompanhado de um
clima entre o lânguido e o desesperado, e qualquer figura pertencente ao mundo
de cima só pode realmente atestar sua própria normalidade uma vez que consiga
passar por todas as aventuras que o mundo submerso propõe sem se deixar marcar
por ela – e, é claro, ninguém passa incólume por ali. O caminho a que Shainberg
submete sua protagonista, a fotógrafa americana Diane Arbus, lembra o do protagonista
de Veludo Azul: um cotidiano entediante, a descoberta casual da chave
para um universo de sonho/pesadelo (aqui, um tufo de cabelos preso no encanamento,
lá uma orelha humana encontrada num terreno baldio), e
daí para adiante a contaminação irreversível por este outro lado da vida, onde
o mistério, as aventuras francamente subversivas, e uma latência sexual absoluta,
emprestam à experiência humana toda sorte de bem-vindas bizarrices, que antes
disso se poderia tomar como um equívoco, atentado à sanidade ou algo
assim.
O que complica, e ao mesmo tempo delicia, Steven Shainberg
nesta jornada é que ele está lidando com uma figura que existiu, com uma artista
em torno do qual se criou um certo culto, e que, por conta própria, já fizera
em seu trabalho esse mesmo passeio de Alice no País das Maravilhas pelo
submundo da América. Da história conhecida de Diane Arbus, A Pele flagra
apenas os três meses decisivos em 1958, quando ela larga o pequeno
estúdio de fotografia de moda que mantinha com o marido e passa a se dedicar
aos seus famosos retratos da gente freak americana: anões, deficientes
de toda sorte, gêmeos idênticos, nudistas, sadomasoquistas, e o que mais de estranho
se pusesse à frente. Alardeando desde o início, com uma cartela explicativa,
que se trata de uma história fantasiosa criada a partir daquilo que o diretor
supõe ter sido a experiência interior de Arbus neste momento de
transformação em sua vida, A Pele deve tão pouco à biografia da
fotógrafa (algo que a crítica americana, massacrando o filme, foi incapaz de
compreender) e tanto mais ao legado de sua arte. De fato, sempre que se arrisca
a ser o filme do flagrante de um gênio artístico nascendo diante dos nossos
olhos, A Pele fracassa entre os quilos de metáfora e toda a empostação
respeitosa que, mesmo avisando se tratar de pura invenção, o filme insiste em
manter. É quando tenta se conectar com essa herança de Arbus à arte americana
(o próprio Lynch é um filho deste ambiente, e tantos outros artistas de maior
ou menor expressão, de Andy Warhol a John Waters), e finalmente exercer essa
influência, filmá-la dentro de um contexto narrativo, no fluxo de uma trama, é que
Shainberg chega mais perto do retrato imaginário que propõe no título original
do filme.
As grandes metáforas sociológicas e psicológicas não são, definitivamente, o
forte de Shainberg. Como em seu filme anterior, Secretária (2001), a tentativa
de comentar o quadro geral das situações em que seus
protagonistas estão envolvidos não escapa nunca de um didatismo primário (e aqui
discordo do amigo Eduardo Valente, quando elogiou Secretária, em
crítica na Contracampo à época de seu lançamento, por considerá-lo um filme sobre
a perversão das relações entre patrão e empregado no clima über-capitalista em
que vive a América). A Pele começa, como seu filme anterior, com um pequeno
prólogo totalmente fora de contexto, onde toda a carga de estranheza que o filme
destilará se mostra com um quase choque ao espectador, para que este entenda
desde já em que tipo de aventura está embarcando. Aqui, vemos Diane Arbus chegar
a uma colônia de nudistas, com sua
câmera pendurada no peito. Tão logo entre no lugar – e a decupagem das cenas
faz questão de flagrar as pessoas nuas sem qualquer sensacionalismo, mas também
sem qualquer preparação ou pudor – Arbus será avisada que ela também precisa
se
despir para poder realizar o ensaio fotográfico que deseja, e então entramos
no
longo flashback que é o próprio corpo do filme. Uma dica de auto-ajuda como estas
pairando no ar (“sua arte só será possível uma vez que você se dispa dos seus
preconceitos”), e a indicação biográfica que Arbus era filha de um famoso comerciante
de casacos de pele em Nova York, e está pronto o terreno onde a
ficção de A Pele vai mais longe, e também mais baixo. Tudo se resume aos
pêlos (corpóreos, sobretudo), e ao que fazemos com eles. Símbolo máximo dessa
obsessão, o personagem de Robert Downey Jr., Lionel, uma besta peluda tirada
de Jean Cocteau, um sujeito que sofre de hipertricose, e por isso tem todo o
seu corpo coberto por longos cabelos castanhos e bem-penteados. E mesmo com essa
figura tão extraordinária nas mãos, Shainberg não perderá a chance de reafirmar
sua metáfora do corpo-e-alma-nuas sempre que puder, seja num superclose de um
fio de sombracelha aparada pela protagonista, no repentino tesão que ela passa
a sentir pelos pêlos do braço do marido, logo após conhecer Lionel, ou ainda
na tentativa do marido de se aproximar do novo objeto de desejo da mulher, cultivando
simploriamente uma densa barba.
O que se anunciava em Secretária, e agora se confirma
em A Pele é que Shainberg é, antes de qualquer coisa, um grande encenador
do desejo sexual, e que é só nesse ambiente de bizarrice irrestrita que ele parece
aflorar da maneira que mais interessa ao diretor (lembram-se das cenas entre
Kyle MacLachlan e Isabella Rossellini, em Veludo Azul? Aquele mesmo clima,
só com um pouco mais de viagem em ácido e capricho na direção de arte). Se no
filme anterior o esforço maior era o de criar um ambiente de romance franco e
delicado entre dois praticantes de masoquismo (explícito, no
que dizia respeito à postura da câmera durante o contato sexual dos dois), o
desafio aqui é tornar o jogo de sedução entre uma mulher de beleza impávida e
rosto angelical e um dublê do leão de O Mágico de Oz algo não só crível,
mas verdadeiramente excitante. São dignas de antologia as seqüências em que Arbus
depila o corpo de Lionel, e a bela cena de sexo que se segue depois disso. Mas,
em verdade, essa efervescência sexual já estava anunciada desde a primeira conversa
entre os dois – e aí é preciso destacar o grande trabalho que tanto Downey Jr.
como Nicole Kidman realizam aqui. Lionel, essa figura-passaporte de Diane Arbus
ao universo que viria a ser próprio de sua
arte, se apresenta desde o início como objeto digno de desejo, e desafia verbalmente
a moça a revelar seus impulsos sexuais mais íntimos. O que sai daí é o retrato
do artista enquanto um fetichista incontornável: o despertar
artístico como indissociável de um despertar sexual, e por vezes francamente
erótico, na relação com o objeto observado. É uma interação que precisa se anunciar,
intervir, e participar daquele novo universo (o da bizarrice, no
caso) – porque gosta e se sente bem ali. O quanto isto diz respeito à real
transformação por quê passou a verdadeira Diane Arbus, isso só podemos mesmo
supor ou fantasiar. Mas esse fetichismo certamente se manifesta na relação que
Shainberg estabelece com seus dois filmes, e com tudo aquilo que eles trazem
de
tão renovador e desafiantes. É um longo trajeto para se afirmar, simplesmente,
que sua estética se baseia num tesão incontrolável pelas cenas que deve filmar,
mas, novamente, de quantos diretores americanos atuais se pode dizer que filmam
com verdadeiro tesão, sem que pareçamos sarcásticos ou depreciativos?
Rodrigo de Oliveira
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