“What I’ve seen,
I saw because I wanted to believe. If we look too hard, maybe we become mad.
But if we continue to look we become liberated. And we come awake as if from a
dream.” – Fox Mulder
Arquivo-X: Eu Quero Acreditar não é um comeback.
Tampouco um ponto de partida para uma nova franquia. O filme de Chris Carter
mais parece um acerto de contas: com uma memória afetiva, com a história dos
personagens, com as principais questões que movimentavam a série de TV. Todas
as paranóias e conspirações, todos os desdobramentos mirabolantes das intrigas
governamentais que constituíam a “mitologia” do seriado, encontram-se
distantes. Os Arquivos-X foram fechados há tempos e não há sequer uma menção a
eles. Na realidade, como o próprio título indica, o filme se debruça sobre aquele
que foi o mote central do seriado ao longo de seus nove anos de existência: o
desejo de acreditar. Este desejo, no entanto, encontra-se aqui ligeiramente
reconfigurado. Não se trata necessariamente da dialética entre crença e
ceticismo em eventos paranormais, ou mesmo em conspirações, mas da crença como
força motora do homem.
A fala citada acima ilustra a crise que
atingiu o personagem de Mulder em determinado momento, momento no qual todo o
universo criado por Carter e seus colaboradores dobrou-se sobre si mesmo e
deixou de tematizar exclusivamente os fatos, focando-se sobretudo na construção
destes. E, embora a relação entre os dois protagonistas, calcada na disputa
entre privilegiar tudo o que está além da compreensão (Mulder) e partir sempre
daquilo que pode ser provado e explicado (Scully), sempre tivesse colocado esta
questão na roda, a partir deste ponto a inocência é definitivamente perdida. Da
teimosia questionadora e impulsividade inconseqüente de adolescente a uma
percepção de impotência diante da complexidade que a simples maquinação humana
pode atingir, eles chegam a um ponto em que saber não é mais suficiente e o
verdadeiro problema passa a ser se posicionar.
Mas muito tempo depois, após todo o
universo de intrigas que constituíam a ficção-base do imaginário do seriado ter
se fechado e os personagens terem se posicionado, por fim, com o recolhimento
como única solução possível, Chris Carter decide voltar a eles. Neste tempo do
“depois” em que a narrativa do filme se situa, Mulder e Scully parecem viver
numa realidade um tanto distinta daquela em que viviam anteriormente. Como
sublinha Scully, eles são agora pessoas “que voltam pra casa à noite” e que
“não caçam mais monstros”. Existe um peso de responsabilidade que paira no ar;
responsabilidade com a própria vida e com a vida do outro. (Sob certo ponto de
vista, à luz deste filme poderíamos mesmo dizer que a história de Arquivo-X é uma história de amadurecimento.) Há, enfim, um “gap” fundamental entre tudo o
que conhecíamos como a história dos Arquivos-X e o que vemos neste filme.
Mulder é um foragido, Scully tem um
trabalho regular como médica num hospital. E a união dos dois ganhou outra
conotação: não mais um time para solucionar casos bizarros e fazer frente a
manobras nefastas do poder, mas um casal de outcasts que só tem um ao
outro no mundo. Aliados não só pelas circunstâncias, como por sua relação
essencialmente polarizada, os dois atravessaram juntos um processo de
afastamento gradual de sua inserção na sociedade, do qual este filme é o
testemunho final. Do seio da oficialidade, o FBI, para uma casa isolada no meio
do nada. Esta condição de “pária” dos personagens, para a qual Scully terminou
sendo tragada por Mulder, é um dos eixos centrais de Arquivo-X: Eu Quero
Acreditar. Seja pela lembrança da eterna impopularidade de Mulder quando
era agente, seja pelo embate de Scully com os padres, colegas e superiores no
hospital onde trabalha. E isto é construído não apenas nos diálogos, mas,
principalmente, numa cuidadosa orquestração de olhares: são as trocas de
olhares que fazem de Scully uma profissional indesejada no hospital, e as
miradas nada calorosas que ambos recebem ao atravessarem os corredores do FBI
que demonstram o quanto os dois são corpos estranhos naquele ambiente.
Estranhos não somente por incompatibilidade.
Como a excelente piadinha com a foto de George W. Bush na parede denota, os
tempos mudaram. A América já não é a mesma, e talvez realmente não haja mais
espaço para ousadias e posturas desafiadoras – porque, afinal, a lógica do
equilíbrio entre poder e oposição foi substituída pela lógica do pensamento
único. E, com isso, algo certamente se perdeu. À preocupação de Mulder com sua remota
incriminação pelo FBI, uma vez que ele saiu da toca, a agente Whitney responde:
“o passado é o passado”. O passado, no entanto, sempre foi vital para os
personagens de Chris Carter. E, por sobre o hiato de história que configura Arquivo-X:
Eu Quero Acreditar, este passado se faz absolutamente presente, colocando
Mulder e Scully diante de seus fantasmas pessoais e do peso (oculto) de tudo que
eles viveram.
Por isso a questão da crença mais uma
vez, já que ela é origem e fim. Para reencontrar estes personagens, é
necessário situá-los em relação à sua força vital. O roteiro os coloca, então,
cada qual do seu lado, frente às suas próprias convicções. Graças ao
pseudo-vidente, Mulder vê-se confrontado à sua questionável obsessão por
eventos fora do normal, gerada pela perda traumática da irmã; por conta do
menino com uma doença terminal, Scully depara-se com sua crise interior entre a
fé em Deus e na Ciência. Estes dilemas em paralelo é aquilo que anima a relação
entre os dois – baseada no binômio aproximação-afastamento – e o que, por fim,
transforma a questão da crença numa questão de confiança mútua. Entre o padre
degenerado que enxerga além dos olhos e o padre exemplar que não vê nada além
de doutrinas sem alma, Mulder e Scully reafirmam a fé um no outro.
Mas talvez o mais fascinante de Arquivo-X:
Eu Quero Acreditar seja o fato de que Chris Carter efetua um resgate
propriamente dito, recolocando as coisas em seu lugar inicial. Como que “liberado”
do esforço de tudo conectar, ele reencontra uma leveza reconfortante, tornando tudo
um tanto despretensioso. Estão lá, em admirável equilíbrio, o enredo meio B,
com suas doses de gore, as provocações políticas, os temas existenciais,
e, sobretudo, o irresistível bom humor. A trama apresenta-se antes de tudo como
dado agregador, uma vez que o que importa de fato é a força que une seus
personagens e o que se passa entre eles. E se, por um lado, Arquivo-X: Eu
Quero Acreditar está carrega uma boa dose de nostalgia, por outro ele tem
um caráter libertador: ao final, para “livrar” Mulder e Scully da escuridão dos
homens e do desconhecido – do mistério de tudo que há entre o céu e a terra que
os assombra –, a câmera se afasta progressivamente da neve que toma conta da
paisagem do filme, indo encontrá-los no meio de um mar ensolarado paradisíaco.
Tatiana Monassa
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