François
Truffaut implicava com os bichos e objetos humanizados
nos filmes de Albert Lamorisse. Para ele, o cavalo branco
que desenvolve uma relação de amizade com a criança
e o balão vermelho que segue o menino pelas ruas como
um cachorrinho resultavam num artifício fácil demais
para ser absolvido de um rigor crítico. Claro que na
animação a humanização de bichos é algo corriqueiro,
mas é quase impossível não lembrar da birra do cineasta/crítico
francês ao ver as imagens de Wall-E dando a mão para
Eva, a sonda encarregada de verificar se há possibilidade
de vida num planeta destruído pelas toxinas do acúmulo
de lixo.
Não é fácil lembrar de exemplo mais poderoso e abusado
de humanização de objetos animados. Não aquela humanização
cara aos politicamente corretos de plantão, que garante
alguns quilos insossos de bom coração e uma nobreza
de gestos e atitudes acima de qualquer noção de mundano.
Mas uma humanização que deixa entrever todas as características
que a compõem, o ciúme, o rancor, a avareza. Deixa entrever
coisas das quais os humanos se envergonham na maioria
das vezes, e esse é o segredo. Não há paternalismo desnecessário
em Wall-E. A sonda Eva vem preparada para
matar ao menor sinal de ameaça. É do tipo que atira
para depois perguntar. Wall-E, o robozinho, realiza
sua tarefa sem deixar de lado seu pendor materialista.
Ele salva das sucatas que molda todos os objetos curiosos
– aos olhos dele – que encontra pelo caminho. Esses
são os sinais mais claros de características que seriam,
digamos assim, mais negativas. Há outros, como os que
ficam nas entrelinhas dos silêncios enquanto Wall-E
observa Eva (que são bem mundanos, nada negativos ou
socialmente edificantes), ou os que existem entre as
máquinas nos tempos supostamente mortos (surpreendentemente
existentes em grande número, ainda que de curta duração).
Mas se engana quem pensa que essa humanização é o que
dá o tom de todo o filme. Wall-E
contrapõe a humanização das máquinas à robotização dos
humanos que aparecem depois de um bom tempo de projeção.
É como se o contato com os mais humanos entre
os maquinários pudesse resgatar um resquício de vida
no mais robótico dos humanos. Esse é o mote principal,
sua razão de ser, o que o aproxima de um objetivo, o
que lhe dá um sentido moral e cívico, mas em certa medida,
o que o enfraquece.
Se essa humanização resvala, por diversas vezes – é
necessário dizer –, no mais rameiro lugar-comum eternizado
pelas diversas Disneylandias do cinema, com direito
aos olhares penetrantes – até mesmo quando são pequenos
círculos de neon – ou às mais erráticas atidudes, frutos
não de uma programação, mas de uma reação a um estímulo
(algo bem humano e preso às fórmulas da comédia romântica
clássica), é inevitável constatar também que todas essas
simbioses entre o que deveria ser das máquinas e está
nos humanos e vice-versa constroem um estranhamento
que chega bem perto de causar a aversão de crianças,
ou mesmo de adultos que queriam apenas uma diversão
simples para distrair suas crias por hora e meia. Wall-E
se torna, de uma maneira arriscada até demais levando-se
em conta a grife Pixar engolida pela grife maior e mais
comportada da Disney, um potencial tiro no pé, o que
as bilheterias fizeram o favor de não desmentir, nem
de reiterar.
Se não temos como relevar certos esquematismos no confronto
inevitável do homem com o aparato criado por ele e que
o aprisionou, se não temos como fechar os olhos às piscadelas
também inevitáveis ao que se poderia chamar de "filme
de mensagem" – pois exigiria um esforço muito grande
para driblar o que o tema carrega consigo de modo dantesco;
enfim, se não podemos ignorar a sensação de déjà-vu
que nos acomete depois que o estranhamento se vai, é
da mesma forma imensamente difícil esquecer alguns planos
que ficam tranqüilamente entre os mais belos do cinema
de animação recente: o robozinho demarcando o território
com seus blocos compensados de lixo, as luzes da nave
formando desenhos no chão que parecem ameaçadores ao
robozinho, os tons cinzentos de uma terra aniquilada,
a simetria das formas pensadas nos gigantescos espaços
interiores da nave Axiom... Além, claro, de uma surpreendente
ausência de didatismo durante toda a primeira metade,
tornando o filme antes de qualquer coisa uma brilhante
representação de um estado de espírito apocalíptico
e melancólico, algo como se Al Gore idealizasse a versão
menos cabotina e universal de seu discurso em Uma
Verdade Inconveniente. O mundo em Wall-E
ainda tem solução, assim como a representação de um
mundo, inerente a qualquer manifestação artística, encontra
muito mais estofo do que em qualquer blockbuster que
pudemos ver nestes últimos anos.
Sérgio Alpendre
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