Para os que esperam ver muito
sexo explícito em A Última Amante
– como de costume nos filmes de Catherine Breillat
– aviso logo que irão se decepcionar. Ainda
que haja corpos nus e cenas de sexo, seguramente não
é isso que caracteriza o filme, e nem tampouco
é objeto de desejo do espectador durante boa
parte da projeção. Mas se à primeira
vista o filme parece pudico (em se tratando da diretora),
um olhar atento logo nos faz ver que se trata de uma
história ácida, contada com muita categoria
e imponência. Por trás da imagem forte
e distante está contida toda a perversão
que Breillat não explicita. O retrato da sociedade
e as tramas pessoais se passam no antiquado século
XIX, “muito mais comportado que o anterior”,
segundo nos revela a marquise de Flers. A Última
Amante investiga as profundezas dos envolvimentos
amorosos e a necessidade de proximidade de um corpo
que domina e toma o outro de prazer, guiando relações
e caminhos que se confundem com o racional. Em uma profusão
de sentimentos contraditórios, o olhar de Breillat
é compreensivo, mas nunca complacente. É
ácido, mas nunca escrachado. Por trás
do formalismo que figura em A Última Amante,
Breillat revela o interesse pelos casos e acasos, partindo
sempre de uma perspectiva privilegiadora do anti-racional.
Ryno de Marigny, as vésperas de seu casamento
com Hermangarde, é convocado pela avó
da jovem para uma franca conversa. As primeiras imagens
do filme nos revelam seu comportamento questionável
perante a sociedade tradicional representada no filme.
O que esperamos então é uma conversa de
caráter conservador, com a transmissão
de regras e obrigações e a cobrança
do comprometimento com a relação afetiva
e formal que será realizada. No entanto, a conversa
se revela surpreendente. Aos poucos, a velha Marquise
de Flers vai revelando sua curiosidade e passa a questionar
o rapaz a respeito de suas condutas. Isenta de qualquer
moralismo, o interesse da marquesa é mais em
conhecer o interior regente do rapaz do que julgar seus
atos e sua conduta. O primeiro trunfo de Breillat se
dá exatamente no momento em que somos convidados
a participar da conversa, compartilhando do relato de
um e da escuta da outra. Somos colocados no mesmo patamar
que a marquesa de Flers. E se a princípio há
um certo incômodo derivado da identificação
primeira não se dar com a parte nobre e conservadora,
nos deleitamos em poucos instantes a fim de ouvir os
relatos de Ryno, estendidos em nossas poltronas, assim
como está estendida a marquesa de Flers (há
um plano – ou quadro - em que a personagem está
jogada na poltrona desleixadamente). Em um plano tão
paradoxal quanto o restante do filme, Breillat capta
um instantâneo em que a ligação
de duplos opostos se faz evidente: a figura da nobreza
entregue aos relatos sexuais de um jovem rapaz; a postura
formal que passa por uma inversão de papéis,
pois aqui é a câmera que se comporta, diferente
do personagem.
Ryno então nos revela sua relação
com Vellini, mulher desbocada e alvo de comentários
perniciosos de toda a sociedade. Mal vista por todos,
é o grande caso de amor do rapaz. E aqui Breillat
adentra em um tema caro ao seu cinema: a necessidade,
causadas por impulsos, de se manter o contato corporal
(sexual). Se a diretora já havia desenvolvido
o tema em seus filmes anteriores, o que se faz novo
em A Última Amante é o deslocamento
temporal, que atribui ao instinto natural do homem seus
impulsos sexuais, não ligados a tempos inscritos
ou períodos determinados. Para Breillat, todo
e qualquer tempo é fervilhante o bastante para
cativar nossos anseios sexuais. E se por momentos foi
necessário tratar de nossos traumas e preconceitos
– daí o sexo explícito em boa parte
dos filmes anteriores – agora é o momento
de se pensar como essa relação corpo-impulso
é anterior a libertação sexual
do séc. XX. A fim de a-historizar um comportamento
(que parece ser permanente), Breillat realiza um filme
de época. Talvez por focar especialmente neste
paradoxo que se coloca, Breillat deixa as cenas de sexo
para uma segunda parte do filme, hora em que o espectador
já está posicionado no tempo-espaço
trabalhado e momento de pesar que sua câmera não
faz concessões as demandas de mercado. Breillat
explora com talento os corpos nus e seus contatos. E
se aqui mantém um olhar pouco aproximativo é
mais por dialogar com o conteúdo da imagem. Se
naquele espaço de salões bem compostos,
com elementos bem distribuídos há uma
irregularidade que parte dos impulsos sexuais, os quadros
de Breillat também se colocam ao mesmo tempo
formais em suas construções – com
enquadramentos precisos, elementos distribuídos
com equilíbrio, composição de cores
e luzes bastante sóbria – e mordaz em suas
representações.
Após o longo flash-back que intercala momentos
da vida de Ryno – sobretudo seu relacionamento
com Vellini – e o momento atual – a conversa
com a marquesa – o filme volta ao tempo diegético
a fim de contar os desdobramentos do casamento que se
realiza entre o protagonista e a bela Hermangarde. Após
o primeiro momento do filme em que a aristocracia é
descaracterizada, a primeira intuição
é a de que Breillat se focará na corrosão
da instituição do casamento. Mas errado
de quem pensou que a diretora cederia facilmente às
primeiras impressões. O que vemos é um
tratamento bastante solidário com seus personagens,
que vivem suas aflições acompanhadas da
complacente observação da câmera.
Ryno está longe de ser um canastrão, mantenedor
de um casamento aparente e de uma paixão proibida.
Breillat foge das convenções e mostra
um homem dividido entre duas mulheres. E em Breillat,
duas mulheres não significam representações
sociais, marcadas por relações dicotômicas
(sobretudo sociais). Duas mulheres são dois corpos
atrativos, tanto sexual, quanto afetivamente. Os encantos
de Hermangarde são diferentes dos de Vellini
e Breillat deixa que seus personagens tenham características
próprias, criando personalidades e trabalhando
as figuras que tem na mão (Asia Argento especialmente),
em detrimento de atribuições de características
específicas atribuídas a uma ou a outra.
É então que se constrói toda uma
complexidade que determina as idas e vindas dos personagens
de A Última Amante. O olhar de Breillat é
compreendedor de todos eles e faz do filme uma profusão
de conflitos que atormentam por sua lógica regente,
captados por uma câmera atenta, privilegiadora
da imagem que se sobrepuja para além do visual
estético primeiro. Breillat, com rigor, capta
a essência que emana da imagem, dos personagens,
dos corpos, dos desejos.
Raphael Mesquita
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