SPEED RACER
Andy e Larry Wachowski, Speed Racer, EUA, 2008

Talvez ainda seja um pouco cedo para dizer que os irmãos Wachowski têm de fato um projeto de cinema em andamento através de sua obra, sobretudo porque passamos de uma trilogia proto-baudrillardiana sobre o fim dos tempos para uma comédia familiar de aventuras com pedigree dramático de anúncio publicitário da tevê americana dos anos 50, e não há muito a ligar estes dois momentos bastante distintos que não alguns traços narrativos, muito mais político-ideológicos que estéticos (o mote anticorporativo, o herói que não fraqueja nem por um minuto diante da atração ameaçadora do mal – um escolhido literal, que encarna um tipo de pureza de caráter fartamente escolada em frases de efeito e expressões firmes e decididas de seus atores). O que talvez transforme Speed Racer num objeto de cinema muito mais interessante que os filmes da série Matrix é que há aqui, de fato, um esforço para contaminar a imagem da carga deste humanismo à toda prova que os Wachowski parecem tão dedicados a propagar (fica mais claro aí um “projeto de mundo” que necessariamente um projeto de cinema). Não apenas proferir um discurso, mas filmá-lo, propriamente.

Um discurso que fica bastante claro lá pela décima vez que vemos Speed Racer abolir o corte seco em nome de montagens que fazem rodar pela tela os rostos em close dos personagens, cada um deles atravessando o quadro em cinemascope de um canto a outro e trazendo colados em si os planos que darão seqüência à narrativa – não apenas como truque plástico, mas efetivamente um recurso de encadeamento de imagens que depende da presença física do rosto humano para se realizar. À extinção da humanidade, sobrepujada por uma nova era de máquinas inteligentes, se segue um filme de absoluto encanto pelas possibilidades da criação de imagens virtuais na maior escala de vertigem que se puder alcançar. Mas mesmo assim há um partido quase obsessivo nessa tentativa de sempre trazer o que resta de humano no meio de todo aquele néon computadorizado para frente da tela, para o primeiríssimo plano da imagem.

A primeira coisa a se notar sobre a relação que Speed Racer mantém com o universo de tela verde e CGI que o cerca é que, não importa o tamanho do desafio às leis da física que imponham os cenários e a movimentação sobre ele (sobretudo dos carros de corrida), ou seja, não importa o tamanho da deformação sobre o mundo real que os Wachowski estejam propondo, diferente de rigorosamente todos os filmes recentes que utilizam essas mesmas técnicas, a figura humana nunca é deformada. Dos exemplos mais evidentes (Sin City e os personagens retrabalhados na pós-produção, 300 e não só o Rei Xerxes e o oráculo feminino, figuras claramente sobre-humanas, mas mesmo os soldados espartanos e sua musculatura de estatuária high-tech) aos filmes mais ligados a alguma idéia de realismo (saltando de pára-quedas ou lutando contra gangues numerosas, as três Panteras parecem sempre dispor de um corpo desarticulado, sem juntas, sem ossos, dobráveis e desdobráveis ao gosto da ação em que estejam envolvidas), o que se viu neste cinema da computação gráfica foi a inserção do corpo humano como mais um elemento passível de manipulação (Beowulf sendo o paroxismo disso). Speed Racer está claramente na contracorrente, e não apenas porque mantém seus atores livres da deformação: se há algo que os protege de serem alvejados pelo universo em constante transmutação atrás deles, isto não é apenas um efeito de retórica (rostos que ditam a montagem), mas uma disposição de encenação muito precisa. Em Speed Racer, contra todos os esforços da tecnologia em naturalizar a presença humana nos cenários virtuais, tudo o que se deseja é fortalecer essa divisão radical entre o material e o imaterial.

Aí talvez esteja a chave para aquilo que tanto tem se chamado em Speed Racer de “abstração”. Se pensarmos que boa parte do uso do CGI tem sido dirigida à multiplicação ad infinitum do efeito de realidade gerado pela noção de perspectiva e profundidade de campo, com “movimentos de câmera” que conseguem atravessar cidades inteiras, cruzar janelas e mostrar em detalhes aquilo que antes se perdia no espaço inalcançável mesmo ao olho tão preciso da lente cinematográfica (Stephen Sommers vêm à cabeça, com Van Helsing sendo aqui um exemplo do paroxismo dessa atitude), ou mesmo o retorno à moda dos filmes em 3-D, uma tentativa de integração dos diversos planos de uma imagem num corpo estranho que é tão “verdadeiro” quanto absolutamente inconsistente em toda sua virtualidade, enfim, se pensarmos em tudo isso, Speed Racer soará como abstração justamente porque sua aposta estética mais arriscada (e bem-sucedida) é a de utilizar todos os efeitos disponíveis para fabricar o mais “inverídico” dos universos cinematográficos: um que seja regido pela bidimensionalidade.

Trazer a figura humana para o primeiro plano e não compor o quadro com elementos que lhe atribuam profundidade, mas, ao contrário, forjar atrás dos atores verdadeiras paredes de efeitos visuais, onde o descolamento entre um e outro seja aparente, visível e desejado, não é algo muito diferente, por exemplo, do que Godard fazia em seus primeiros filmes. E não seria muito difícil pensar em certas seqüências de Speed Racer como a emulação de Jean-Paul Belmondo e Anna Karina postos de frente para a câmera e tendo atrás de si apenas uma parede branca, ou uma superfície opaca qualquer, em O Demônio das Onze Horas, se trocarmos Belmondo e Karina por Emile Hirsh e Christina Ricci e a superfície opaca pela tela de uma galeria de arte onde um jovem artista japonês contemporâneo projeta suas últimas inovações de luz e cor em velocidade lisérgica e ordenação lógica nenhuma. Essa imagem achatada e francamente dopada de ácido, projetada no fundo, não esconde o único elemento verdadeiramente tridimensional presente ali: justamente os rostos humanos, que não apenas passam de um lado pra o outro da tela, mas giram em torno de seu próprio eixo, como se fossem mesmo paisagens visuais, as únicas possíveis num universo (muito chupado do anime e dos desenhos animados que se vêem em qualquer canal aberto pela manhã) que é todo superfície.

Até aqui, os Wachowski seriam lembrados por terem criado um mundo pós-apocalíptico onde a humanidade se encontrava fatalmente sem perspectivas. Speed Racer está dois ou três passos adiante deste cenário, uma vez que a perspectiva que falta ali não é histórica, não é uma projeção de futuro, mas propriamente as linhas de perspectiva que fazem do mundo real isso que ele é, visão tridimensional da natureza, pontos de fuga (literais, e não metafóricos) que reforcem nossa impressão de profundidade, nossa sensação de realidade. É esse fosso intransponível entre o que a câmera pode filmar (uns atores, alguns adereços e um fundo verde, não mais que isso) e o que só pode existir depois que ela, a câmera, sai de cena, que os Wachowski levam às últimas conseqüências. E que daí ainda saia um filme familiar de mensagem positiva e engrandecedora, um verdadeiro drama íntimo de representação puramente visual (os primeiros vinte minutos do filme, em que se mostra a relação de Speed e seu falecido irmão Rex, com uma dinâmica de montagem entre passado e futuro às vezes distanciados no espaço-tempo, outras vezes ocupando o mesmo plano – como quando um carro fantasma é substituído por um carro real – são, de longe, os melhores já filmados pelos Wachowski em toda sua carreira) e o mais puro exercício de extravagância e cafonice tecnológicas de que se tem notícia nos últimos anos, tudo isso só torna a experiência de Speed Racer ainda mais encantadora.

Rodrigo de Oliveira

 

 





Rostos que passeiam pelo quadro, susbstituindo o corte:





Em Speed Racer, a cisão radical entre os rostos em
primeiríssimo plano e os cenários de fundo, em nome
da experiência bidimensional da imagem