Em 1967, Pier Paolo Pasolini
escreveu um longo ensaio a
respeito do plano-seqüência e lá no meio pensou num dispositivo que seria capaz,
se levado a cabo irrestritamente, de apresentar a totalização da realidade
no cinema. Pasolini imaginava que, na situação do assassinato do presidente americano
John Kennedy, se todos os envolvidos naquele momento, as pessoas assistindo a
passagem do carro oficial, a
primeira-dama, o próprio Kennedy, seus seguranças, o assassino, se todos eles
tivessem uma câmera e registrassem seu ponto-de-vista da história, uma montagem
total com todos estes trechos poderia finalmente revelar, em imagem, a "verdade"
do
evento, em suas palavras, "torná-lo visível".
É muito difícil que Pete
Travis,
roteirista de Ponto
de Vista, ou qualquer pessoa envolvida na produção do filme tenham, algum dia, folheado o artigo de Pasolini, mas a idéia é quase
a mesma. Não tanto pela distribuição de câmeras a todos os envolvidos (ainda
que isto esteja manifestado em duas figuras essenciais para o desenrolar da trama:
as câmeras de uma rede de tevê americana que transmite ao vivo um encontro de
chefes de estado na Espanha, onde em breve o presidente americano
será assassinado, e um turista americano que está na platéia e que, com sua
câmera amadora, oferecerá às autoridades uma nova perspectiva sobre o ocorrido).
O que deixou os realizadores animados com este projeto foi a
possibilidade de, através do agrupamento dos pontos-de-vista de oito personagens
diferentes em torno de um evento misterioso, finalmente conseguir injetar
alguma novidade e uma emoção cheia de frescor ao velho roteiro hollywoodiano
de um atentado ao presidente da América - enfim, atribuir-lhe uma visibilidade
inédita.
Bem,
eles
falharam.
E nem tanto por acreditar na novidade de um dispositivo tão
clássico (muitas críticas têm citado Cidadão Kane e Rashomon,
mas
não seremos sacrílegos a esse ponto), mas por condenar ao limbo um dispositivo
tão recente quanto a restrição de tempo e o clique do relógio como motores das
ações mais absurdas e propagadores de uma lógica da urgência que torna qualquer
atitude permitida, qualquer barbárie perdoável. Porque Ponto de Vista tem
a série 24 Horas espalhada em seu corpo de cabo a rabo, sem nem se envergonhar
de colocar um marcador de tempo em caracteres digitais sob fundo preto para pontuar
as viradas da narrativa. Funciona assim: começando ao meio-dia, acompanhamos
a experiência de um dos personagens (guarda-costas, presidente, agente secreto
corrupto, terrorista árabe, você escolhe) e seu
papel até o momento em que o líder leve dois tiros no púlpito, e logo depois
uma explosão derrube a fachada linda da praça em Salamanca onde a reunião se
passa. Dada a explosão, um botão de rewind é apertado, e tudo o que acabamos
de ver é reprisado de trás para frente, diante dos nossos olhos, até que se retorne
ao meio-dia, só que agora já com outro personagem. Por oito vezes o dispositivo
será repetido. E se cada perspectiva deveria adicionar elementos de suspense,
revelações bombásticas, peças soltas que se encaixariam no ponto-de-vista seguinte,
tudo o que ele consegue produzir é um desejo incontido
pela velha tradição. Alguém aí já ouviu falar em montagem paralela?
Ponto de Vista tem interesse zero enquanto produto de
cinema, mas é mais um dos importantes sinais recentes de uma corrente de
filmes em que um truque narrativo, uma supostamente "nova" engenharia
de
realização, ou mesmo um dispositivo mais claramente assumido como este aqui,
se
anuncia como grande recuperador de uma inventividade há muito perdida no interior
da indústria,
para que então acabe se provando que a busca pelo novo, por um apelo maior ao
realismo,
por uma visibilidade mais "verdadeira", não passa de um disfarce para a
crise
real:
a de que a Hollywood dos blockbusters não sabe mais fazer os filmes que
a tornaram grande, sobretudo porque se distanciou das mais simples
lições de artesanato cinematográfico. Se atualmente é preciso esperar por filmes
de diretores acima da média, comprovadamente talentosos (mesmo que criativamente
nulos), para se ver um simples plano e contraplano funcionar bem,
que dirá uma multi-trama de assassinato e terrorismo em que oito pessoas precisam
aparecer e justificar sua presença em cena com algum adicional de adrenalina,
revelação ou alimento ao suspense. Por fim, Ponto de Vista se torna involuntariamente
a metáfora de sua própria ruína. Conformados em serem aprendizes na escola Jack
Bauer de mise-en-scène e sangue alheio, todos os pontos-de-vista do filme
convergem numa grande perseguição de carros pelas ruas da cidade, onde finalmente
veremos eventos paralelos sendo
organizados em um fluxo crescente de tensão e expectativa, onde todos os personagens
se livrarão da armadura do dispositivo e finalmente se exporão em sua total
banalidade,
até que um valoroso guarda-costa salve o dia, sob carros
capotados e árabes abatidos. É a história que já vimos milhões de vezes contada
de uma maneira "nunca vista antes". E que saudade das outras milhões
de vezes.
Rodrigo de Oliveira
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