PONTO DE VISTA
Pete Travis, Vantage Point, EUA, 2008

Em 1967, Pier Paolo Pasolini escreveu um longo ensaio a respeito do plano-seqüência e lá no meio pensou num dispositivo que seria capaz, se levado a cabo irrestritamente, de apresentar a totalização da realidade no cinema. Pasolini imaginava que, na situação do assassinato do presidente americano John Kennedy, se todos os envolvidos naquele momento, as pessoas assistindo a passagem do carro oficial, a primeira-dama, o próprio Kennedy, seus seguranças, o assassino, se todos eles tivessem uma câmera e registrassem seu ponto-de-vista da história, uma montagem total com todos estes trechos poderia finalmente revelar, em imagem, a "verdade" do evento, em suas palavras, "torná-lo visível".

É muito difícil que Pete Travis, roteirista de Ponto de Vista, ou qualquer pessoa envolvida na produção do filme tenham, algum dia, folheado o artigo de Pasolini, mas a idéia é quase a mesma. Não tanto pela distribuição de câmeras a todos os envolvidos (ainda que isto esteja manifestado em duas figuras essenciais para o desenrolar da trama: as câmeras de uma rede de tevê americana que transmite ao vivo um encontro de chefes de estado na Espanha, onde em breve o presidente americano será assassinado, e um turista americano que está na platéia e que, com sua câmera amadora, oferecerá às autoridades uma nova perspectiva sobre o ocorrido). O que deixou os realizadores animados com este projeto foi a possibilidade de, através do agrupamento dos pontos-de-vista de oito personagens diferentes em torno de um evento misterioso, finalmente conseguir injetar alguma novidade e uma emoção cheia de frescor ao velho roteiro hollywoodiano de um atentado ao presidente da América - enfim, atribuir-lhe uma visibilidade inédita. Bem, eles falharam.

E nem tanto por acreditar na novidade de um dispositivo tão clássico (muitas críticas têm citado Cidadão Kane e Rashomon, mas não seremos sacrílegos a esse ponto), mas por condenar ao limbo um dispositivo tão recente quanto a restrição de tempo e o clique do relógio como motores das ações mais absurdas e propagadores de uma lógica da urgência que torna qualquer atitude permitida, qualquer barbárie perdoável. Porque Ponto de Vista tem a série 24 Horas espalhada em seu corpo de cabo a rabo, sem nem se envergonhar de colocar um marcador de tempo em caracteres digitais sob fundo preto para pontuar as viradas da narrativa. Funciona assim: começando ao meio-dia, acompanhamos a experiência de um dos personagens (guarda-costas, presidente, agente secreto corrupto, terrorista árabe, você escolhe) e seu papel até o momento em que o líder leve dois tiros no púlpito, e logo depois uma explosão derrube a fachada linda da praça em Salamanca onde a reunião se passa. Dada a explosão, um botão de rewind é apertado, e tudo o que acabamos de ver é reprisado de trás para frente, diante dos nossos olhos, até que se retorne ao meio-dia, só que agora já com outro personagem. Por oito vezes o dispositivo será repetido. E se cada perspectiva deveria adicionar elementos de suspense, revelações bombásticas, peças soltas que se encaixariam no ponto-de-vista seguinte, tudo o que ele consegue produzir é um desejo incontido pela velha tradição. Alguém aí já ouviu falar em montagem paralela?

Ponto de Vista tem interesse zero enquanto produto de cinema, mas é mais um dos importantes sinais recentes de uma corrente de filmes em que um truque narrativo, uma supostamente "nova" engenharia de realização, ou mesmo um dispositivo mais claramente assumido como este aqui, se anuncia como grande recuperador de uma inventividade há muito perdida no interior da indústria, para que então acabe se provando que a busca pelo novo, por um apelo maior ao realismo, por uma visibilidade mais "verdadeira", não passa de um disfarce para a crise real: a de que a Hollywood dos blockbusters não sabe mais fazer os filmes que a tornaram grande, sobretudo porque se distanciou das mais simples lições de artesanato cinematográfico. Se atualmente é preciso esperar por filmes de diretores acima da média, comprovadamente talentosos (mesmo que criativamente nulos), para se ver um simples plano e contraplano funcionar bem, que dirá uma multi-trama de assassinato e terrorismo em que oito pessoas precisam aparecer e justificar sua presença em cena com algum adicional de adrenalina, revelação ou alimento ao suspense. Por fim, Ponto de Vista se torna involuntariamente a metáfora de sua própria ruína. Conformados em serem aprendizes na escola Jack Bauer de mise-en-scène e sangue alheio, todos os pontos-de-vista do filme convergem numa grande perseguição de carros pelas ruas da cidade, onde finalmente veremos eventos paralelos sendo organizados em um fluxo crescente de tensão e expectativa, onde todos os personagens se livrarão da armadura do dispositivo e finalmente se exporão em sua total banalidade, até que um valoroso guarda-costa salve o dia, sob carros capotados e árabes abatidos. É a história que já vimos milhões de vezes contada de uma maneira "nunca vista antes". E que saudade das outras milhões de vezes.

Rodrigo de Oliveira

 

 






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