Daquilo
que se espera de um produto no contexto de produção
da Globo Filmes, sobretudo nesta última onda de diretores
treinados na tevê que chegam ao longa-metragem (Jorge
Fernando, Jayme Monjardim, Maurício Faria, Wolf Maya)
ou passam a viver exclusivamente dele (Daniel Filho), Polaróides
Urbanas cumpre seu papel à risca. Confirma o mal
irreversível causado pela
presença de Guto Graça Melo nas trilhas sonoras desse cinema brasileiro “industrial”,
a absoluta indigência fotográfica que tem sido a maior marca estética da safra
de produtos sub-televisivos, a dificuldade em equilibrar o obrigatório inchaço
de estrelas no elenco com tempo de tela o bastante para que seus personagens
tenham algum sentido que não o do puro marketing, o imperativo da comédia sobre
qualquer outra vontade narrativa, não importa o quão fraca e repetitiva ela
seja.
Se a inclusão neste padrão indigesto de cinema é o que
torna Polaróides um filme tão fraco, aquilo que lhe garante momentos de
sincero interesse é justamente o que falta a todos aqueles outros filmes:
um
diretor em que se perceba uma personalidade própria, reconhecível, cujo trabalho
na tevê ou no teatro traga uma marca que tenha alguma unicidade, algum vigor interno,
eventualmente algum brilho; uma personalidade pública que
condicione uma estética, uma maneira de encenar (agora, para a câmera de cinema).
Que durante os créditos finais apareçam as cenas do making of do filme,
onde Miguel Falabella aparece reinterpretando, ele mesmo, diversas
seqüências que vimos prontas anteriormente, não apenas dando indicações aos atores
antes de uma gravação, mas se jogando visceralmente nos personagens como se todos
eles lhe pertencessem mais que a qualquer outro, como se seu corpo fosse
o veículo primeiro daquelas histórias, isso tudo aponta para um tipo de “atestado
de qualidade” que não é apenas aquele da segurança de se ver reproduzido no cinema
temas e formas que a televisão nos acostumou a ver. Atesta-se sim o passaporte
a uma viagem de pura esquizofrenia dramática, em certo sentido bastante rebelde
ao modelo televisivo.
A começar pelo fato que Polaróides Urbanas tem o pulso firme no melodrama
latino mais radical (o que o difere, por exemplo, da
auto-importância afetada e metida à profunda de O Signo da Cidade,
espécie de gêmeo mau do filme de Falabella). Justamente pela formatação típica
desse tipo de produto Globo Filmes, tudo leva a crer (inclusive o próprio Polaróides,
sem muita consciência do que tem em mãos) que o núcleo em torno de Marília Pêra
tem alguma relevância dentro da narrativa, quando é muito mal uma costura entre
as diversas histórias e um alívio cômico quase constrangido no meio de tanto
peso, dor e lágrimas alheias. É ali que estão todas as piadas, na Pêra suburbana
(casada com aquele Otávio Augusto que já vimos tão melhor em Bendito Fruto),
ou na Pêra nova-rica (“viajando” pelo mundo em cenários estilizados), e o descolamento
desse arremedo humorístico é tamanho que só a custo de muito “destino” é que
o roteiro consegue encaixá-lo no fluxo de encenação dos pequenos contos morais
que se acumulam no filme.
E o drama ali parece se fundar em dois parâmetros básicos, dados por Falabella
logo de imediato. O primeiro, presente no próprio título,
dá a idéia do quão instantâneos estes retratos urbanos são. Se é esse o tempo
que lhe cabe (curtos 82 minutos), e se é este o número de vidas atribuladas que
o filme precisa encontrar, expor e resolver, que tudo seja então realmente
rápido e mágico como uma foto polaróide, com todos os riscos de falta de profundidade
e esmaecimento inevitável que estão implicados aí. O segundo
parâmetro dá conta da maneira de se organizar estes instantâneos da realidade
e está resumido na seqüência de abertura do filme. São imagens em
primeiríssimo plano que sugerem, a princípio, a abstração pura. Essas formas
borradas vão se definindo a medida que o tempo passa, ao som de “La Forza del
Destino”, ópera de Verdi que diz muito sobre o desejo de filme-coral de Polaróides.
Acontece que toda a antecipação que o andamento da ópera e o jogo de revelação
da câmera promovem não se confirmarão num grande clímax dramático, pelo
contrário. Entraremos nos bastidores, e então no palco de um teatro onde se encena
a Antígona de Sófocles, e toda a suposta explosão sentimental será sustada
por uma encenação sóbria da tragédia grega.
É
esse descompasso entre um ritmo “normal” de
desenvolvimento narrativo e a confusão geral arquitetada pelo aglomerado de
situações e personagens que gera momentos de pura estranheza dentro de Polaróides,
uma estranheza boa. Uma passagem em torno de um grupo de apoio a suicidas é o
melhor exemplo disso. Somos apresentados a uma menina de classe média alta
que toma uma caixa de remédios de uma vez só, é assaltada por dois marginais
e liga desesperada para o grupo de apoio (cujo panfleto ela evidentemente tinha
recebido mais cedo na trama, “por acaso”). A amargura do drama da menina é filmada
como se Cristiane F. fosse. Entra em cena a atendente do grupo de apoio.
Ela salva a menina da overdose, vai ao hospital, encontra com a empregada que
criou a menina, conta aos prantos que perdeu uma filha por
suicídio e por isso faz esse trabalho, e então volta ao escritório, para comemorar
o salvamento de mais uma vida com as colegas. Mas não há tempo a perder, e logo
uma nova ligação, desta vez do garoto de programa que está apaixonado por uma
vagabunda que não lhe dá bola. Cúmulo da bipolaridade de Polaróides: de
um lado do telefone, aquela mesma atendente passa a imaginar como seria fazer
um programa com o rapaz, enquanto do lado de lá, o michê se lamenta da vida que
leva, e nem a câmera nem a montagem tentam misturar esta dupla ocorrência de
sentimentos - numa mesma seqüência, co-existem dois climas dramáticos radicalmente
diferentes.
Em algum momento do desespero o rapaz diz: “Desde que a Vanessa me largou, eu
já perdi um centímetro de bíceps e dois centímetros de coxa” e nada
na encenação de Falabella faz isto soar como uma piada. O michê também é salvo
pelo papo com a atendente, que agora se diverte com as colegas de trabalho imaginando
uma noite de amor com o bonitão. E quando se pensava que os dois marginais eram
puro elemento de movimentação da trama, eles retornam à cena,
num momento só deles, em que também se lamentam, conscientes, do destino
trágico de suas vidas. Tudo isso que se dá em menos de 10 minutos.
É
mais que tentar resumir em filme o conteúdo de uma novela inteira. O que Miguel
Falabella está propondo em Polaróides Urbanas é a
experiência do excesso, da concentração forçada e consciente da maior gama
possível de sentimentos, uma experiência que precisa ser corpórea, que depende
da expressão visível no rosto (os momentos em que realmente vemos um cineasta
se formando, e não apenas um bom diretor de atores em ação, são justamente nos closes
de rosto, quase sempre desconcertantes), aquela exacerbação ao mesmo tempo corriqueira
e totalmente entregue que vemos o diretor executar nas cenas de making
of dos créditos finais. Há ainda um longo caminho a percorrer entre esta
proposta de concentração e o ambiente de diluição obrigatória em que Polaróides foi
produzido e no qual inevitavelmente decai. Mas é quando Falabella assume os riscos
de seu projeto pessoal sem meios-tons que podemos antever um cineasta comercial
por quem poderíamos ter algum (ou muito) interesse.
Rodrigo
de Oliveira
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