Deve haver mesmo algo de muito
entusiasmante e igualmente assustador em se fazer um
tipo de cinema no Brasil em cuja ponta está alguém
do
gênio de Eduardo Coutinho. Pai involuntário disso que rasteiramente se chama
de “documentário de entrevistas”, e ao mesmo tempo grande renovador estilístico
do
gênero, Coutinho é uma sombra visível em boa parte dos documentários brasileiros
dos últimos anos, quer como influência assumida ou como modelo a se
rechaçar, ponto de partida para experiências conscientemente diferentes das que
ele realiza. O fato é que, seja como benção ou como maldição, esta é uma força
de cinema inegável, e se O Tempo e o Lugar surge tão frágil e inconsistente
diante de nossos olhos é menos porque se arrisque a um diálogo frontal com a
obra de Coutinho e mais porque parece realmente não ter apreendido nada daquele
manancial de idéias que não alguns truques e
dispositivos de almanaque, visíveis enquanto estratégia, mas completamente esvaziados
do sentido sempre atribuído por Coutinho (ou de qualquer novo sentido que se
queira emprestar a eles). E a palidez do filme se torna ainda
mais embaraçosa quando se leva em conta que Eduardo Escorel é não só um parceiro
de geração de Coutinho (se esperaria a imaturidade narrativa de O Tempo e
o Lugar de algum cineasta iniciante, mas nunca de alguém com a
experiência e o tempo de estrada de Escorel), como foi o montador de Cabra
Marcado Para Morrer, pedra fundamental de um certo cinema político que atravessa
a História a partir do filtro da experiência particular de um protagonista
anônimo dela e, ao mesmo tempo, reflete a todo momento esta revisão do passado
numa operação de aproximação no presente entre o cineasta e seu objeto e tudo
o
que pode surgir da explicitação desse encontro. Pois O Tempo e o
Lugar quer tudo isso e nunca consegue fazê-lo completamente.
A primeira coisa a se perceber a respeito de O Tempo e o
Lugar é que ele é, em essência, o filme que Coutinho se recusou a fazer no
começo de O Fim e o Princípio (e a semelhança “filosófica”, digamos, entre
os títulos dos dois filmes certamente não é mera coincidência). No filme de Coutinho,
guiado por uma assistente social que acabara de conhecer e a quem delega o papel
de anfitriã de uma narrativa ainda a se descobrir, o diretor se depara com uma
série de personagens ligados à figura da moça por
questões próprias ao seu trabalho: política de distribuição de terra,
irrigação, perfuração de poços, questões sociais e econômicas
envolvendo
as
cooperativas
locais,
enfim,
pessoas cujo discurso não tem a autoconstrução íntima como foco, mas sim personagens
que encarnam um certo espírito coletivo que poderíamos chamar, apressadamente,
da “pequena política do interior nordestino”. Coutinho é radical na narração
em off e diz com todas as letras que aquele tipo de
discurso “não é interessante” para ele: mesmo que ainda não saiba que filme
fará, àquela altura de O Fim e o Princípio o diretor percebe as armadilhas
deste tema que salta à frente da câmera e escapa dele. O Tempo e
o Lugar tenta, conscientemente, se equilibrar entre a exposição íntima
e
o discurso coletivo, um equilíbrio que vem da própria fonte do documentário,
Genivaldo Vieira da Silva, ex-militante do MST, ex-membro da Pastoral da Terra,
atravessado por uma série de acontecimentos históricos envolvendo a questão
agrária em Alagoas, mas que o filme tenta perceber também enquanto este sujeito
que, ao falar de sua inserção política no mundo, acaba revelando suas cicatrizes
mais particulares, uma personalidade que a necessidade do ativismo social parece
ter escamoteado, e que agora Escorel quer retomar.
Na prática daquilo que seria a investigação, em O Tempo e
o Lugar, destes aspectos sociais tão peculiares do jogo de poder nordestino,
entendemos porque Eduardo Coutinho se recusara a fazê-la, em seu
filme. É uma seara que exige uma disposição interrogativa e um posicionamento
entre a firmeza de propósitos e a maleabilidade no contato pessoal com os personagens
que demanda uma preparação maior (e que Coutinho já tinha explorado, largamente,
em Peões). Escorel encara essa “pequena política” em seus próprios termos,
e não consegue extrair dali mais do que pequenez: em
dado momento de O Tempo e o Lugar, percebemos que o máximo de sua percepção
sobre este estado político e de sua intervenção sobre
ele se resumirá a alimentar uma picuinha partidária entre o pai Genivaldo e
dois de seus filhos, candidatos a vereador por bandeiras distintas. Um jogo infantil
de idas e vindas entre um filho e outro, interpelações rasteiras sobre
possíveis “traições” aos princípios defendidos historicamente por ambas as partes
e a figura de Genivaldo, pendular e soberana ao mesmo tempo, pairando sobre os
filhos como uma espécie de santo iniciador e referência política renegada.
Outra vez é inevitável lembrar de um momento do documentário brasileiro em que
a presença histriônica e muito bem calculada de um filho politizado tentava suplantar
a presença do pai (no caso, da mãe), serena e
muito mais consciente do caráter historicamente construído de sua imagem.
Na narração de Cabra Marcado Para Morrer há uma determinação
clara de que tudo aquilo que o filho de Elizabeth Teixeira tenta vender como
grandeza política não é mais que uma manifestação daquela mesma pequenez percebida
no discurso dos filhos de Genivaldo. Mas, diferente de Coutinho,
Escorel não se dá conta que a presença quase fantasmática desta prole “esclarecida” que
tenta falar em nome da geração “sofrida e valiosa, mas
ultrapassada” de seu pai, não faz nada além de constrangê-lo. Cabra
Marcado espera pacientemente o filho sair de cena, para aí então iniciar
seu corpo-a-corpo com a memória de sua protagonista. O Tempo e o Lugar impõe
os filhos à cena, tentando retratar esse abismo de gerações como se fosse um
simples jogo de intrigas e declarações contrárias organizadas uma depois da outra,
criando um efeito especulativo muito mais próximo do sensacionalismo que da tentativa
de compreensão de um estado delicado de relações.
Na outra ponta, quando tenta finalmente se aproximar de
Genivaldo com inteireza, O Tempo e o Lugar escorrega novamente. Talvez
ainda sofrendo os efeitos da picada da mosca auto-indulgente de Santiago (filme
em que foi co-montador), Escorel tenta fazer do filme um estudo revelador muito
mais de sua própria capacidade de amadurecimento no contato com o cinema, ao
longo dos anos, do que necessariamente um trabalho devedor da figura que pretende
registrar. Somos informados que o primeiro contato entre Genivaldo e Escorel
se deu em 1996, quando este último fora a Alagoas filmar um dos
filmetes publicitários da série Gente Que Faz, patrocinada por um banco.
Mais que isso, assistimos integralmente a propaganda feita por Escorel, onde
tentava vender Genivaldo como um agricultor bem-sucedido e altruísta na sua
relação com os trabalhadores de sua região. Um segundo encontro, agora em 2004,
revela que Escorel não esquecera da força daquele personagem e, munido de uma
câmera e um microfone, parte para registrar um longo depoimento de Genivaldo,
em que este detalha toda sua vida, um registro que Escorel imaginava ser fonte
para um roteiro de ficção que nunca chegou a escrever. Em 2007, O Tempo e o
Lugar seria o “acerto de contas”: não só com o personagem, mas com a
própria evolução do olhar de Escorel sobre ele.
Não surpreende que, dos três registros, espalhados ao longo
de mais de uma década, aquele em que a sintonia entre documentarista
e documentado esteja mais afinada seja justamente
o registro informal de 2004. É dali que saem os
melhores momentos do filme e, curiosamente, também os que revelam a inabilidade
de Escorel em lidar com seu conteúdo. Munido de uma tela
de vídeo, o diretor exibe para Genivaldo trechos do depoimento tomado três anos
antes. A imagem está granulada, pouco cuidada, e o tom é “direto ao ponto”: Genivaldo
e o que sabe fazer de melhor, contar sua história de vida, com todos os detalhes
pitorescos e francamente instigantes (escola de guerrilha com o Sendero Luminoso,
luta armada, prisão, saques, invasões de terra, experiências religiosas e tudo
o mais). Sempre que termina um trecho particularmente interessante deste relato,
Escorel corta a imagem para o rosto de Genivaldo, três anos depois, agora bem
vestido
e
penteado,
sentado à mesa de frente para a telinha do vídeo,
e envolvido por uma concepção fotográfica bem tratada, de cores vibrantes e um
certo esfumaçamento quase mítico em torno do personagem que em muito se
assemelham às imagens publicitárias de 1996.
Esse dispositivo tem um único propósito: o documentário pergunta a Genivaldo
um incômodo “e aí?”, como que obrigando-o a ratificar, revisar ou criticar a
si mesmo, na imagem descuidada e espontânea que acaba de
ver. Incômodo não por forçá-lo a pensar sobre sua própria construção, mas sim
por acreditar que todo o aparato disposto ao seu redor pode capturar alguma verdade
secreta ou a “essência” do agricultor neste momento de contato consigo mesmo.
Tiro pela culatra: por trás de toda essa confusão conceitual e inabilidade evidentes
no trato documental, Eduardo Escorel revela que seu
cinema não mudou tanto assim de onze anos para cá. O Tempo e o Lugar não
deixa nunca de soar como um Gente Que Faz em longa-metragem, com o
demérito de que não há qualquer obrigação comercial por trás dele e que esta
tentativa de propagandear a importância de um personagem
anônimo-mas-ativo-historicamente sempre parece dizer muito mais sobre a capacidade
e a suposta “sensibilidade” do documentarista em “capturar” o que quer que seja
do que necessariamente a tentativa de manter alguma frontalidade com Genivaldo
e a exposição a que ele voluntariamente se submeteu. São nos pequenos trechos
em vídeo quase amador, câmera e protagonista cara-a-cara e um entrevistador
tão discreto que quase não o percebemos, que podemos vislumbrar o
que O Tempo e o Lugar poderia ter sido se não acreditasse que é um filme
muito mais profundo e visionário do que realmente é.
Rodrigo de Oliveira
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