“Você não tem muita fé na humanidade, não é?”
“Não mesmo.”
Darabont superior a Shyamalan? Em 2008, a resposta é sim. O excelente Fim
dos Tempos que me perdoe, mas a ficção apocalíptica mais aterradora a aparecer
por aqui este ano é O Nevoeiro.
No filme de Shyamalan, o vento nas folhas das árvores manifestava o suspense, a
falta de resposta que era em si mesma a evidência dos fenômenos presenciados, a
ocorrência da natureza em sua totalidade, simultaneamente tão próxima e tão
distante de nós quanto possível, e o olhar do diretor recuperava um modo de
apreensão integral do lugar do homem no universo herdado lá de trás, de
Griffith, Stroheim, Sjöström. Em O Nevoeiro, o vento é menos sutil, e
logo de início faz uma árvore invadir a casa de David Drayton (Thomas Jane), o
herói trágico do filme de Frank Darabont. À semelhança de Fim dos Tempos,
a questão em O Nevoeiro é confrontar o homem às forças naturais ou
sobrenaturais que o precedem e ultrapassam somente para chegar mais perto dele
mesmo. Daí os aspectos humanos serem responsáveis pelas maiores desavenças do
filme, assim como a grande violência em jogo, a mais atroz, incurável e
absurda, ser a violência provocada pelos homens e suas ferramentas de morte.
Primeiro plano de O Nevoeiro: David pinta um cartaz do cowboy Clint
Eastwood. O anacronismo desse trabalho e do conteúdo lá inscrito já basta como
cartão de visita. Mas na parede ao fundo, o mais revelador: outros cartazes,
dentre eles um de The Thing (O Enigma de Outro Mundo, 1982),
obra-prima de John Carpenter. “Por que não A Bruma Assassina?”, alguém
pode perguntar. Ora, primeiro porque a bruma já está lá, onipresente, visível,
não precisa ser evocada por alusão. Segundo porque Darabont percebeu, sob a névoa,
um parentesco mais profundo com aquele que é o grande filme de Carpenter
ambientado no fim do mundo. Citar The Thing pareceu-lhe inevitável, pois
é disso que se trata, de expandir a idéia de apocalipse, de tragédia total, até
as últimas proporções.
O Nevoeiro é adaptado da novela homônima que abre o livro Tripulação
de Esqueletos (meu Stephen King predileto, ao lado de Jogo Perigoso).
Tudo começa quando o vento traz uma misteriosa bruma a uma pequena cidade à
beira do lago no estado do Maine (cenário bem típico de King). Depois, já
envoltos numa atmosfera de estranheza, David e seu filho vão ao supermercado e,
deparando-se com os primeiros indícios da histeria coletiva que dominará o
filme, ficam presos lá dentro, junto a dezenas de outras pessoas, todas acuadas
pelo nevoeiro. O decorrer dessa peripécia ficcional é comparável ao cenário
quintessente dos grandes filmes de guerra: exigido justo aos limites de seu
corpo e de sua mente, o homem será exposto em seu melhor (a coragem, a
união, a grandeza de espírito) e em seu pior (a covardia, o medo, o desespero).
Darabont extrai do denso nevoeiro a própria matéria de sua mise en scène.
A estratégia visual e narrativa das cenas de suspense se nutre das potências de
ocultação e enigma contidas na névoa, que evidencia também o estado de
obnubilação, de insanidade, de obscurecimento da razão a que os homens estão
entregues. Que uma fanática religiosa (Marcia Gay Harden: seus olhos vidrados,
seus lábios inchados proferindo as “revelações” bíblicas são a matéria viva de
um acometimento histérico que diz respeito à própria percepção de mundo vendida
por muitos daqueles que hoje se julgam os escolhidos, os faróis da humanidade)
faça mais seguidores que o líder da parcela sóbria dos personagens é natural,
num tempo em que a inteligência é exceção absoluta. Outro personagem que
encarna com precisão aquilo que o filme deve combater é o vizinho de David: sua
arrogância e seu ceticismo forjam clarividência lá onde tudo que existe é
ignorância, cegueira, insensibilidade, estupidez. Diante da alienação que se
propaga pelo ar, a batalha da lucidez e da consciência se prova mais difícil do
que em qualquer outra época.
A uma variedade de personagens corresponde uma variedade de conflitos, e
Darabont permite que cada um se desenvolva de forma concisa e sem prejuízo de
intensidade, contrariando uma lei atualmente vigente no cinema de aventura,
segundo a qual quanto maior é o filme, mais parece faltar-lhe tempo para o
desenvolvimento das situações dramáticas e tudo se acavala numa vertiginosa
queda rumo ao vazio. Através do zoom inquieto, das inúmeras panorâmicas e da
constante variação da distância focal, Darabont, que nunca foi nem quer ser um inventor de
formas (e se o cinema ainda é uma arte tão estimulante, é porque – ao contrário
do que muitos pensam – não depende exclusivamente dos inventores de formas),
construiu uma dramaturgia do caos invertendo a seu favor os clichês de tensão e
instabilidade que estão em voga.
Na cena em que David hesita entre pegar ou não o revólver no capô do carro, o
filme se depura na direção da mais sólida e poderosa tragédia, que nasce do
momento em que o homem sela seu destino. Sem menosprezar os efeitos obtidos
pelos monstros multitentaculares e os insetos gigantes, todos magistralmente
concebidos, a grande porrada vem mesmo é com certos gestos demasiadamente
humanos – como o soldado sendo esfaqueado e, claro, o desfecho inominável, que
a câmera filma de fora do carro, prolongando, pelo recuo, o conteúdo emudecedor
da imagem. Aquilo que Lovecraft atribuía simultaneamente ao ápice e à suspensão
do horror, culminando no inenarrável, ganha ali sua melhor versão
cinematográfica desde À Beira da Loucura (Carpenter novamente).
Que não se engane: O Nevoeiro é um filme vagabundo. Mas que fique bem
claro: foi por causa de filmes vagabundos que, muitos anos atrás, aprendi a
amar o cinema.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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