É
bem verdade que muita coisa mudou de Seja o que Deus
Quiser! para Nome Próprio. Mas é igualmente
verdade que o ponto de partida permanece o mesmo: abordar
um estereótipo de juventude. A diferença está no método.
Em Seja o que Deus Quiser!, Murilo Salles levou
o estereótipo ao limite, caçando-lhe implacavelmente
o que podia haver de vida. Em Nome Próprio, ele
foi para o lado oposto, partindo do estereótipo porém
preenchendo-o com a verdade de certas situações vitais.
Essa verdade, não resta dúvida, é a da entrega da atriz
protagonista, Leandra Leal, mais do que a verdade de
sua personagem, Camila. Esta é ainda um trajeto rumo
ao simulacro; ela passa o filme inteiro lutando justamente
para ganhar vida própria, separar-se de sua imagem-matriz.
Menina de vinte e poucos anos, Camila é junkie, indie,
egocêntrica, impetuosa. Os adjetivos cambaleiam, o que
talvez seja sintoma do curto-circuito que o filme faz
com a personagem. Ela tem caprichos demais para um estereótipo,
para dizer a verdade – eis a carne que o filme lhe empresta.
Camila sofre de um problema: o mundo em volta dela não
é um mundo totalmente afeiçoado a seus desejos. É o
mundo e ponto, impõe alteridade. Por conta disso, a
primeira parte do filme se torna uma batalha. Camila
(conscientemente ou, no mais das vezes, não) repele
as pessoas ao seu redor. Espectador incluso. Precisamos
aderir ao filme por causa e apesar de
Camila.
Inegável o vigor de Leandra Leal. Mas inegável também
que Murilo Salles, no geral, contenta-se com a escalação
bem sucedida e apenas acompanha de perto esse trabalho
da atriz. É uma certa tendência do cinema brasileiro:
meses gastos na preparação do ator parecem poupar o
diretor de um trabalho de encenação mais conciso. Basta
documentar a entrega absoluta do ator. No entanto, algo
me diz que os trabalhos de toda uma bela geração de
atores brasileiros ficarão ainda melhores quando aliados
a uma verdadeira construção do plano, do tempo e da
movimentação. No paroxismo dessa idéia de que basta
pôr a câmera no cangote do ator (vide a seqüência inicial
de Nome Próprio), ocorre uma implosão do espaço
cênico que é de todo limitante à própria atuação. Sobretudo
num filme como Nome Próprio, em que a sensação
física das locações é um ponto alto.
É curioso, tendo em vista a personalidade de Camila
e o tipo de estratégia de Murilo Salles para filmá-la,
que todos os demais personagens do filme pareçam mal
atuados, mal caracterizados ou mal digeridos. Essa ingratidão
com o restante do elenco (exceção à bela participação
de Rosana Mulholland) revela a cumplicidade do diretor
com a personagem. No fundo, o filme embarca numa certa
santificação da egotrip de Camila. O blog dela se torna
o mundo. Um mundo que se dá mais valor do que merece.
Peguemos a cena em que um almofadinha vem cobrar o aluguel
e ameaçá-la de despejo: há um campo-contracampo radical
entre Camila – que se furta aos bens materiais em nome
da necessidade de escrever, criar, dar vazão ao seu
mundo interior – e o rapaz de terno engomado, que optou
pela esfera “corrompida” do capital e da lei. Eles sequer
podem dividir o mesmo plano, o filme precisa preservar
esse lugar imaculado da jovem que constrói um imaginário,
constrói um universo de artista sem a ajuda do dinheiro.
É uma contraposição rasa demais, que só consegue entrar
num filme uma vez que o diretor decidiu, de antemão,
firmar um pacto profundo com a personagem.
Em interessante atrito com essa tendência alienante,
o conteúdo do blog é originado pela experiência sensível
de Camila, cuja crise advém justamente daí. Nome
Próprio: ou da dificuldade de ter um corpo. Pois
o corpo é o – incontornável – meio de acesso ao mundo
e aos outros corpos. O processo de Nome Próprio,
se pensarmos o filme como um processo, consiste na descoberta
por Camila desse vale de alteridade, que fica dentro
dela mesma e que lhe permitirá ser escritora, mas que
precisa do conhecimento sensível (proveniente do corpo
em contato com o mundo externo e com os outros corpos)
para ser esclarecido, movimentado. O corpo, no fim das
contas, se torna mais uma ferramenta a serviço do Ego.
Diante da impossibilidade de viver com o outro,
resta fazer falar uma representação interior desse outro.
Ou abandonar o corpo e se tornar espectro. Nos bares
ou boates que Camila freqüenta, uma música vaporosa,
melancolicamente etérea, embala um desejo mudo de auto-sublimação
(assim ninguém a perturbaria).
Murilo Salles, por diversas vezes, filma os atores de
ângulos ingratos, muito de cima ou muito de baixo, muito
de frente ou muito de dorso. As externas inexistem no
filme, só há cenas de interiores. Uma recorrente grande
angular distorce levemente o quadro. É de se pensar,
em dados momentos, que Nome Próprio foi feito
com uma webcam. Diria até que é menos aconselhável falar
de mise en scène do que de identidade visual,
pois o que Nome Próprio busca mesmo é um design,
uma diagramação, mais que uma técnica ou uma inteligência
cênica. O vocabulário em jogo é o da dissolução do cinema
num universo de meios menos exigentes, onde o pressuposto
da urgência e da impulsividade interdita o refinamento
estético. Tudo isso leva a crer que o diretor foi atrás
de um diálogo direto com o meio de expressão da personagem,
logo estaríamos diante de um filme-blog inteiramente
subjetivo e impressionista. Mas o ponto de vista se
embaralha. Estudo de personagem e estudo de comportamento
(são duas coisas completamente diferentes) se confundem.
O primeiro corresponde ao que mais aproxima o olhar
do criador de sua criatura; o segundo fornece a visão
que o criador tem de sua criatura quando ela está dentro
do aquário. Ir de um registro a outro é uma perigosa
patinação no ponto de vista.
Que a cena de maior impacto dramático consista numa
barata sendo esmagada por Camila diz algo: ela combate
também, naquele gesto desesperado e violento, sua iminente
identificação com um ser rastejante. Num momento bem
posterior, ela volta de um bar se tropeçando e se vomitando
até, finalmente, rastejar até o computador e pôr em
palavras uma nova noite de desventuras. Tem uma força
qualquer nessas palavras e nessas imagens, também elas
situadas à altura do chão.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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