Já se tornou quase um fato, para os mais variados espaços
de discussão sobre cinema contemporâneo, que a comédia
americana vive hoje um grande momento. Trata-se de um
movimento de renovação de antigas normas do gênero,
de incorporação de novos eixos temáticos/situações,
de novos personagens/arquétipos; tão plural quanto diversas
são suas linhas de frente – de Judd
Apatow aos irmãos Farrely.
Embora Juno não esteja entre os filmes apadrinhados por Apatow, Farrely ou outros que já
angariaram a categoria de autores
trabalhando dentro do gênero, ele não deixa de fazer
parte do lote. Mais do que isso, Juno se insere no conjunto das novas comédias
românticas em que o relacionamento do casal protagonista
não se origina de uma óbvia atração mútua, ou de um
romance em potencial, mas sim de uma espécie de acidente
de percurso, e nesse sentido, Ligeiramente Grávidos é um de seus pares mais próximos.
Narrado de forma a deixar o espectador em constante
questionamento em relação àquilo que está se passando
e o que ainda está para acontecer, o filme arquiteta
falsas relações de causa e efeito, desenhando uma linha
narrativa com diversas ramificações pela qual se passeia
sem saber ao certo o caminho. Em outras palavras, conhecemos
Juno (a personagem principal, interpretada por Ellen
Page), conhecemos suas motivações
dramáticas, mas nunca sabemos de que forma responderá
a elas, como agirá diante de cada nova situação que
se apresenta. Distantes do esquematismo
forçado de Pequena
Miss Sunshine (filme com o qual guarda semelhanças do ponto
de vista de sua carreira comercial), os personagens
de Juno têm vida própria, agem indiferentes à nossa pretensão demiúrgica de compreendê-los inteiramente. E, dentro dessa
lógica, o elemento cômico se desenvolve no filme também
em cima do inesperado, partindo de situações inusitadas,
dos atributos incomuns de seus personagens, dos comentários
igualmente surpreendentes da protagonista sobre sua
própria situação.
Logo no primeiro plano, nos vemos diante da imagem de
Juno no jardim encarando uma poltrona enquanto bebe
no gargalo uma garrafa de suco das proporções de um
galão de gasolina. É nesse momento que a personagem
começa a contar, em off, como chegou
a esta situação. Vemos então uma série de planos detalhe
e planos de conjunto (que nunca revelam o todo do espaço
e dos corpos em cena), daquilo que desencadeou esse
estado de coisas – a cena de sexo entre Juno e Paul
Bleeker (Michael Cera). Essa
maneira de apresentar o momento sem, contudo, revelá-lo
em sua totalidade, é a única forma pela qual tornaremos
a vê-lo ao longo do filme, sempre que a memória de Juno,
ao contar-nos sua história, a ele retorna. Infelizmente,
a utilização sistemática desses planos fragmentários
sempre que quer apresentar novos personagens e espaços,
de forma a não denunciá-los completamente à primeira
vista - mas só a primeira vista - é uma característica
constante na decupagem de Jason Reitman. Um tique de direção, enfim, que se em um primeiro
momento – na apresentação de Paul Bleeker
– funciona como uma fórmula já desgastada, porém eficiente,
de trabalhar o aspecto cômico do personagem, a partir
de certo ponto já aparece mais esvaziado de sentido.
Apenas um mecanismo fácil para brincar por alguns segundos
com a curiosidade do espectador.
Quando descobre que está grávida, após a tal transa
com o amigo Bleeker, Juno acaba resolvendo dar seu filho à adoção. Sendo
suficientemente seguro para trazer à tona a questão
da gravidez adolescente se desvinculando da preocupação
de levantar bandeiras, de se posicionar a todo o momento
contra ou a favor de algo, tampouco realizar julgamentos
de valor sobre seus personagens, o filme assume de maneira
bastante clara (como poucos sabem fazê-lo) que não é
um canal de mediação de teses político-sociais, mas
sim uma construção narrativa para a qual os personagens
são o ponto central. Por esse
motivo, a importância da gravidez em Juno é medida apenas no impacto que causa em sua protagonista, em
sua perspectiva de ver o mundo – e não simplesmente
por sua ocorrência, mas pelo esforço da personagem em
mesclar a todo o momento as experiências que extrai
de sua participação ativa no processo de adoção à sua
tentativa de compreender as complexas relações afetivas
entre os seres humanos.
Ao ficar sabendo da notícia de que o casal que ela escolheu
para adotar seu filho está para se separar, a personagem
pára de encarar sua gravidez como um simples (e talvez
até divertido) imprevisto, mas sim como uma válvula
que a força a lidar com coisas “muito acima de seu nível
de maturidade”. É o momento em que ela tem de tomar
decisões, baseada na compreensão parcial e precoce que
ela desenvolve do mundo das relações afetivas ao longo
de todo esse processo. É assim que Juno vai modificando
sua atitude sincronicamente à evolução dramática do
filme – do humor sarcástico e defensivo ao desespero
e, finalmente, à felicidade gerada pelo sentimento de
completude. Somente quando percebe que pode ser feliz
com alguém e ter seus filhos
no futuro que Juno se sente finalmente segura quanto
à decisão de dar esta oportunidade a Vanessa (a mãe
adotiva, interpretada por Jennifer Garner),
sabendo que um dia também será sua vez.
No fim das contas, Juno
é um filme sobre o esforço de uma menina de dezesseis
anos em compreender o mistério do mundo e em se reconhecer
dentro dele, entendendo seus próprios sentimentos em
relação à vida e às pessoas que a cercam. Ao fim desse
percurso, ela descobre que para além de todo o ideal
anti-romântico que paira na sociedade contemporânea,
existe sim a possibilidade de encontrar alguém que,
como diz seu pai (J. K. Simmons), a ame pelo que é, de bom
humor, de mau-humor, bonita, feia, o que quer que seja.
A pessoa certa que sempre verá “raios de sol saindo
de sua bunda”. Enfim, uma
possibilidade que não se encontra num mundo ideal, mas
sim na aparentemente apática realidade cotidiana. Simples
como as músicas de sua trilha sonora, o filme faz uma
defesa sincera do amor, e se a conclusão desse rito
de passagem vivido por sua protagonista é um estado
permanente, aí já se trata de uma outra questão. O importante
é que Juno
é certeiro ao atingir o lado mais passional e vulnerável de seu
espectador, afinal, não há descoberta melhor a se fazer,
aos dezesseis ou aos quarenta anos, do que aquela que
diz que o amor, este sim, é totalmente possível.
Alice Furtado
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