Jumper é a primeira
aventura de uma rentável trilogia
de ação que não rendeu tudo aquilo que se esperava dela, que não traz qualquer
momento digno do nome "ação" e que talvez nunca veja nascer os outros dois
filmes
que seu final lacônico e seu roteiro cheio de buracos dramáticos deixam claro
estarem nos planos de seus produtores. É mais que natural tentar enxergar ali
os traços que tornaram Doug Liman, em A Identidade Bourne, um diretor
de ação a ser observado, mas a filiação mais direta
de Jumper não é à série do espião sem identidade, e sim a toda a onda
de
filmes fantásticos que invadiu o cinema depois do estouro de Harry Potter,
trabalhos da indigência de um As Crônicas de Nárnia ou A Bússula de
Ouro, por exemplo.
Liman tem divulgado, com alguma ênfase, que fez questão que todos os lugares
do mundo vistos em seu filme fossem reais, visitados pela equipe, filmados in
loco, e não delegados ao fundo verde da computação gráfica
hoje tão corriqueira. A legitimidade esperada daí não atribui ao filme nenhum
senso de realidade, e a presença física do Big Ben aqui ou da Esfinge ali não
conseguem resguardar de uma virtualidade radical tudo o que Liman encena sobre
estes lugares tão simbólicos. Na trajetória de um nerd vindo de família
destruída e perseguido na escola que, de repente, descobre-se capaz do teletransporte,
quanto maior for o número de suas viagens ao redor do mundo, cada vez mais este
mundo aparecerá destituído exatamente de sua mundanidade. Numa imagem em que
o real é o cenário e o virtual é a colocação do homem dentro dele, David Rice
aparecerá sempre como um móbile, suspenso, desconectado dos ambientes que se
orgulha tanto de freqüentar sob pontos-de-vista que ninguém
jamais freqüentou, retirado do mundo que supõe dominar.
Enquanto tenta replicar em seu protagonista esta fantasia
torta de sua construção visual, Jumper aponta para caminhos realmente
interessantes. De fato, a medida épica da história de David Rice se apresenta
exatamente
na expectativa do nascimento do herói involuntário, automaticamente justo e altruísta.
As seqüências iniciais, um flashback do menino ainda na escola, apanhando, vivendo
um primeiro amor frustrado, e repentinamente transformado por um poder sobre-humano,
são narradas em tom de romance de formação. É então que o menino
cresce, e não só abandona a família sem muito remorso, como passa a viver uma
vida de luxos, utilizando suas habilidades de teletransporte para assaltar bancos
sem deixar rastro, acumular uma pequena fortuna num apartamento de luxo, e seguir
sua excursão expressa pelo mundo. Um momento crucial em sua construção (tipo
de confronto já visto no Superman de Bryan Singer, mas com outro desfecho),
Rice estará tomando café diante da televisão quando o noticiário avisa de uma
enchente catastrófica em alguma parte do planeta. Esta pequena cena surge no
auge de um bloco de viagens no espaço feitas pelo protagonista, e parece tanto
mais natural (ao menos ao tipo de herói que conhecemos) que Rice
dê um pulo até o lugar do desastre, salve algumas vidas, e então volte à sua
identidade secreta. Mas o rapaz desliga a tevê, e esta é a última menção do filme
a alguma propensão heróica do protagonista.
E assim, entre todas as coisas que Jumper nunca será,
está esse filme sobre um herói niilista, playboy francamente egoísta e nada
carismático (nisso, aliás, Hayden Christensen é de grande ajuda). Logo
seremos
informados
que Rice não está sozinho, e que junto à horda de jumpers espalhados por
aí existem os paladinos, uma polícia secreta de conotação religiosa
("Sabe a Inquisição, as fogueiras, a caça às bruxas? Eram
eles!", diz um personagem a certa altura), estabelecendo um grande duelo de
forças que, mais uma vez, se frustra diante da incapacidade completa de Liman
em dar alguma substância a este confronto. Se não dramática (a encenação dos
momentos de carinho entre o herói torto e sua mocinha, seu pai ou sua mãe daria
aos teóricos modernos um espectro todo novo de discussão da "desdramatização"
do
cinema), pelo menos algum sustento à ação, que aqui aparece como um emaranhado
de planos ligeiros e cortes bruscos, que tentam
disfarçar a falta de talento pelo excesso de barulho. Algo da própria raiz do
projeto parece escapar de Liman – e basta pensar que, num filme como Sr. e
Sra.
Smith, toda a ação estava montada em torno do jogo de sedução e desvendamento
que se estabelecia entre o casal protagonista, e em como a câmera obedecia a
este mandamento, potencializando o jogo, participando dele, se movendo com a
mesma canalhice e esperteza cool de Brad Pitt e Angelina
Jolie. Em Jumper, diante de uma capacidade em si espetacular (estar em
dois lugares completamente diferentes a partir de um "corte" no espaço),
nenhum
novo ambiente, nenhum ponto turístico escapa do grande plano aéreo em movimento,
preguiça criativa resolvida com a sucessão de cartões-postais certamente rodados
por um diretor de segunda unidade.
Se pensarmos em alguém como Jason Bourne, cuja natureza de
globe-trotter é sempre validada pela identidade transnacional que seu passado
de espião lhe imprimiu de maneira definitiva (e que o desfecho para ele não pode
ser outro que não o mergulho nesse mundo, a sobrevivência subterrânea – ou
subaquática – que se anuncia nos planos finais de O Ultimato Bourne),
ou
na estratégia de montagem de um Miami Vice, que instala um senso de globalização
como a confusão total entre fronteiras (e aí não só por se cortar de Miami para
o Paraguai, e depois para Cuba, sem nenhuma cerimônia ou aviso, como se tudo
fosse parte de um mesmo território, mas também de se cortar de um plano
para outro sem respeitar a continuidade espacial, como na famosa travessia de
barco de Sonny e Isabella – nem a mais simples dinâmica de campo/contracampo
sobrevive à nova ordem geopolítica do mundo), o projeto de Jumper parecerá sempre
o jardim-de-infância de uma onda de filmes contemporâneos que tem encarado frontalmente
os desafios desse mundo diferente em que se instalam
(e Miami Vice e a série de Bourne não são mais que a dimensão comercial
do que, por exemplo, Jia Zhang-Ke fez em O Mundo, ou Olivier Assayas no
ainda inédito Boarding Gate). Com o prejuízo de ter desperdiçado um
herói arrivista que prefere surfar nas Ilhas Fiji a salvar os fracos e
oprimidos – e que não parece sentir remorso nenhum por isso.
Rodrigo de Oliveira
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