JUÍZO
Maria Augusta Ramos, Juízo, Brasil, 2008

É possível dizer que as mais diversas questões éticas que perpassam o ofício do documentarista possuem um denominador comum: o reconhecimento das interferências do dispositivo cinematográfico sobre uma dada realidade; a consciência de que este pressupõe, no mínimo, um duplo recorte – no espaço (através do enquadramento) e no tempo (através da montagem). Essa consciência do dispositivo – que para Eduardo Coutinho significa evidenciar na tela todo um aparato técnico (microfones, refletores, a própria equipe de realização) que é, em geral, relegado para trás das câmeras – Maria Augusta Ramos demonstra em Juízo, ao dimensionar situações reais através da representação. Não se trata exatamente de ficcionalizar fatos verídicos, mas sim de remontá-los diante da câmera, com a única diferença de que seus personagens principais, isto é, os réus da II Vara de Justiça do Rio de Janeiro, são interpretados por outros jovens de condições sociais semelhantes. Por trás do que poderia parecer uma mera impossibilidade de produção, tendo em vista a proibição do juizado de menores de expor os verdadeiros infratores, há um domínio nada ingênuo dos efeitos que podem surgir da mediação do cinema sobre o real.

De fato, apresentar a realidade em filme é uma tarefa difícil, especialmente porque lidamos sempre com uma instância receptora pouco previsível e que pode, para o bem ou para o mal, tomar rumos de interpretação extremos (basta pensar nas reações pró e contra Tropa de Elite). Talvez com esse pressuposto em mente, Maria Augusta Ramos tenha buscado substituir a condição do seu olhar, que por si só já age sobre a realidade e a modifica, pela condição do registro, que oferece a um olhar outro a possibilidade de fazê-lo. O discurso, portanto, é construído exteriormente às imagens, no espaço de reflexão de cada espectador em sua individualidade. A câmera em Juízo desempenha um papel de observadora atenta e até respeitosa (pensemos nos enquadramentos durante as cenas de nudez dos adolescentes, absolutamente calculados para que jamais cheguemos a ver o que escutamos), sem deixar pesar sobre seus personagens a condenação moral. Contudo, é preciso dizer, essa neutralidade é também produto do trabalho em cima da representação, uma vez feita a distinção entre ela e a situação que lhe deu origem. Por mais análogas que sejam, os créditos finais são claros ao nomear o elenco adolescente que interpreta os personagens não-ficcionais, a partir dos quais o filme foi realizado.

É também por meio da encenação que se consegue excluir a potencialidade interventiva da câmera. Todos sabem que serão filmados e agem com essa consciência, se esforçando de antemão para ignorar o aparato técnico fora da tela. Se é visível que alguns se saem melhor que outros no cumprimento dessa tarefa, ainda assim não se pode dizer que há demonstrações de desconforto; no limite, não há demonstrações da consciência de se estar sendo filmado. Em Juízo, o constrangimento usual, originado pelo confronto de personagens não-ficcionais com a câmera de cinema, que muitas vezes limita o desenvolvimento da situação a ser filmada, é minimizado a partir do próprio planejamento dessa situação. Enquanto o método distancia Maria Augusta Ramos de uma suposta filiação ao cinema direto, o resultado final parece atingir a grande pretensão desse movimento; afinal, estamos aparentemente diante de um olhar quase estritamente observacional. Embora produzido artificialmente, o efeito é o mais verossímil possível, e sem a informação externa de que os personagens reais serão representados por outros, seria impossível pôr em questão se se está diante de um documentário estrito senso.

Ainda no caminho em direção a esse olhar de observação, chama a atenção um segundo procedimento, aquele que aparenta ser uma não-seletividade do material de acordo com a carga dramática: em Juízo, os momentos de confronto são tão importantes quanto os de respiro – os intervalos, os tempos mortos. A todo o momento, corta-se do interior do tribunal ao interior do reformatório, chegando, ao fim, à favela, onde residem (ou residiam) os adolescentes acusados. Assim, se no primeiro espaço assistimos a uma quase desumanização da figura do menor infrator, enquanto o corpo jurídico do tribunal discute seu futuro muitas vezes indiferente à sua presença na sala, no segundo ocorre o exato oposto. Ao mesmo tempo em que a rotina oficial do reformatório expõe os maus tratos e as más condições de vida aos quais o menor está submetido, os momentos íntimos no dormitório revelam a simplicidade e a naturalidade desses adolescentes enquanto inventam jogos e implicam uns com os outros, na tentativa de fazer passar o tempo. Nesses momentos, talvez os melhores do filme, a relação personagem-câmera e, consequentemente, personagem-espectador, se estreita como nunca.

É assim, nesse ininterrupto jogo dialético de proximidade e distanciamento, mas sempre com uma postura de registro, que Maria Augusta Ramos expõe a precariedade da situação do sistema de reabilitação infanto-juvenil no Brasil, ao mesmo tempo em que dá margem ao questionamento da autoridade dos representantes da justiça para decidir o futuro desses jovens. Duas atitudes que, por si só, já mereceriam alguma atenção, mas que, aliadas à consciência da potência do dispositivo cinematográfico como veículo de idéias, fazem movimentar o panorama do cinema brasileiro em 2008.


Alice Furtado