É possível dizer que as mais diversas questões éticas que
perpassam o ofício do documentarista possuem um denominador comum: o
reconhecimento das interferências do dispositivo cinematográfico sobre uma dada
realidade; a consciência de que este pressupõe, no mínimo, um duplo recorte – no
espaço (através do enquadramento) e no tempo (através da montagem). Essa
consciência do dispositivo – que para Eduardo Coutinho significa evidenciar na
tela todo um aparato técnico (microfones, refletores, a própria equipe de
realização) que é, em geral, relegado para trás das câmeras – Maria
Augusta Ramos demonstra em Juízo, ao dimensionar situações reais através
da representação. Não se trata exatamente de ficcionalizar fatos verídicos, mas
sim de remontá-los diante da câmera, com a única diferença de que seus
personagens principais, isto é, os réus da II Vara de Justiça do Rio de
Janeiro, são interpretados por outros jovens de condições sociais
semelhantes. Por trás do que poderia parecer uma mera impossibilidade de
produção, tendo em vista a proibição do juizado de menores de expor os
verdadeiros infratores, há um domínio nada ingênuo dos efeitos que podem surgir
da mediação do cinema sobre o real.
De fato, apresentar a realidade em filme é uma tarefa
difícil, especialmente porque lidamos sempre com uma instância receptora pouco
previsível e que pode, para o bem ou para o mal, tomar rumos de interpretação extremos
(basta pensar nas reações pró e contra Tropa de Elite). Talvez com esse
pressuposto em mente, Maria Augusta Ramos tenha buscado substituir a condição
do seu olhar, que por si só já age sobre a realidade e a modifica, pela
condição do registro, que oferece a um olhar outro a possibilidade de fazê-lo.
O discurso, portanto, é construído exteriormente às imagens, no espaço de
reflexão de cada espectador em sua individualidade. A câmera em Juízo desempenha um papel de observadora atenta e até respeitosa (pensemos nos
enquadramentos durante as cenas de nudez dos adolescentes, absolutamente
calculados para que jamais cheguemos a ver o que escutamos), sem deixar pesar
sobre seus personagens a condenação moral. Contudo, é preciso dizer, essa
neutralidade é também produto do trabalho em cima da representação, uma vez
feita a distinção entre ela e a situação que lhe deu origem. Por mais análogas
que sejam, os créditos finais são claros ao nomear o elenco adolescente que
interpreta os personagens não-ficcionais, a partir dos quais o filme foi
realizado.
É também por meio da encenação que se consegue excluir a
potencialidade interventiva da câmera. Todos sabem que serão filmados e agem
com essa consciência, se esforçando de antemão para ignorar o aparato técnico fora
da tela. Se é visível que alguns se saem melhor que outros no cumprimento dessa
tarefa, ainda assim não se pode dizer que há demonstrações de desconforto; no
limite, não há demonstrações da consciência de se estar sendo filmado. Em Juízo,
o constrangimento usual, originado pelo confronto de personagens não-ficcionais
com a câmera de cinema, que muitas vezes limita o desenvolvimento da situação a
ser filmada, é minimizado a partir do próprio planejamento dessa situação. Enquanto
o método distancia Maria Augusta Ramos de uma suposta filiação ao cinema direto,
o resultado final parece atingir a grande pretensão desse movimento; afinal,
estamos aparentemente diante de um olhar quase estritamente observacional. Embora
produzido artificialmente, o efeito é o mais verossímil possível, e sem a
informação externa de que os personagens reais serão representados por outros,
seria impossível pôr em questão se se está diante de um documentário estrito
senso.
Ainda no caminho em direção a esse olhar de observação,
chama a atenção um segundo procedimento, aquele que aparenta ser uma
não-seletividade do material de acordo com a carga dramática: em Juízo,
os momentos de confronto são tão importantes quanto os de respiro – os intervalos,
os tempos mortos. A todo o momento, corta-se do interior do tribunal ao
interior do reformatório, chegando, ao fim, à favela, onde residem (ou
residiam) os adolescentes acusados. Assim, se no primeiro espaço assistimos a
uma quase desumanização da figura do menor infrator, enquanto o corpo jurídico do
tribunal discute seu futuro muitas vezes indiferente à sua presença na sala, no
segundo ocorre o exato oposto. Ao mesmo tempo em que a rotina oficial do
reformatório expõe os maus tratos e as más condições de vida aos quais o menor
está submetido, os momentos íntimos no dormitório revelam a simplicidade e a
naturalidade desses adolescentes enquanto inventam jogos e implicam uns com os
outros, na tentativa de fazer passar o tempo. Nesses momentos, talvez os
melhores do filme, a relação personagem-câmera e, consequentemente,
personagem-espectador, se estreita como nunca.
É assim, nesse ininterrupto jogo dialético de proximidade e
distanciamento, mas sempre com uma postura de registro, que Maria Augusta Ramos
expõe a precariedade da situação do sistema de reabilitação infanto-juvenil no
Brasil, ao mesmo tempo em que dá margem ao questionamento da autoridade dos
representantes da justiça para decidir o futuro desses jovens. Duas atitudes
que, por si só, já mereceriam alguma atenção, mas que, aliadas à consciência da
potência do dispositivo cinematográfico como veículo de idéias, fazem movimentar
o panorama do cinema brasileiro em 2008.
Alice Furtado
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