O momento radical da lógica
do filme: Imerso na vegetação, a mesma que, descobrirão, os está mantando, Moore
acolhe Jess em sua família.
Disse mais o SENHOR: Porquanto o clamor de Sodoma e Gomorra
se tem multiplicado, e porquanto o seu pecado se tem agravado muito, descerei
agora, e verei se com efeito têm praticado segundo o seu clamor, que é vindo
até mim; e se não, sabê-lo-ei. Então viraram aqueles homens os rostos dali, e se
foram para Sodoma; mas Abraão ficou ainda em pé diante da face do SENHOR. E
chegou-se Abraão, dizendo: Destruirás também o justo com o ímpio? Se porventura
houver cinqüenta justos na cidade, destruirás também, e não pouparás o lugar
por causa dos cinqüenta justos que estão dentro dela? Longe de ti que faças tal
coisa, que mates o justo com o ímpio; que o justo seja como o ímpio, longe de
ti. Não faria justiça o Juiz de toda a terra? Então disse o SENHOR: Se eu em
Sodoma achar cinqüenta justos dentro da cidade, pouparei a todo o lugar por
amor deles. E respondeu Abraão dizendo: Eis que agora me atrevi a falar ao
Senhor, ainda que sou pó e cinza. Se porventura de cinqüenta justos faltarem
cinco, destruirás por aqueles cinco toda a cidade? E disse: Não a destruirei,
se eu achar ali quarenta e cinco. E continuou ainda a falar-lhe, e disse: Se
porventura se acharem ali quarenta? E disse: Não o farei por amor dos quarenta.
Disse mais: Ora, não se ire o Senhor, se eu ainda falar: Se porventura se acharem
ali trinta? E disse: Não o farei se achar ali trinta. E disse: Eis que agora me
atrevi a falar ao Senhor: Se porventura se acharem ali vinte? E disse: Não a destruirei
por amor dos vinte. Disse mais: Ora, não se ire o Senhor, que ainda só mais
esta vez falo: Se porventura se acharem ali dez? E disse: Não a destruirei por amor
dos dez. E retirou-se o SENHOR, quando acabou de falar a Abraão; e Abraão
tornou-se ao seu lugar.
Gênesis, 18, 20-33.
***
Uma das imagens mais impressionantes, se não a mais
impressionante, de Fim dos Tempos é a do professor Elliot Moore (Mark
Wahlberg) sentado à beira de uma estrada, com parte do corpo ocultada por uma
camada alta de capim. Diante dele, a pequena Jess (Ashlyn Sanchez) se aproxima
lentamente. Pára e vemos os dois de longe (como à distância veremos vários dos
acontecimentos centrais deste filme). Soubemos antes que a menina “cochicha
quando está com medo”. E é o que ela faz ao se dirigir ao adulto, em busca da
confirmação do que desconfiava: então, eu não tenho mais pai?
Segue-se a explosão emocional que se previa desde o começo
da história: Moore abraça a garota, fechando o elo que faltava da corrente,
aberta por Alma (Zooey Deschanel): quando a indefesa e abalada esposa de
cientista assumira a responsabilidade de tomar conta da criança na ausência de
seu progenitor, Julian (John Leguizamo), ouvira dele: “Não pegue a mão de minha
filha se não for para valer”. Foi. Assim, Moore fecha justamente imerso nas
plantas que são a causa de seu suplício, o ciclo que cria o personagem central
de The Happening, a família.
A citação ao Gênesis apresentada acima não é apenas
epigráfica. Pelo contrário. A história de mais este mito de M. Night Shyamalan
parece operar especularmente em relação ao bíblico. Assim como o patriarca
hebreu, a ação de Moore é a de apresentação a uma entidade superior (no caso de
Abraão, Deus; no caso do professor, a natureza) uma entidade que possa fazer
face à sua busca por justificação para manter vivo um relacionamento. Na
Bíblia, Deus quer encerrar o seu com uma sociedade, matando todos os seus seres
viventes. No filme, é o Reino Vegetal, representando uma espécie de divindade,
de ser todo-poderoso, quem quer encerrar essa relação com esses viventes, com
essa sociedade. E nos dois casos é sempre uma questão de atribuição de
responsabilidade: Deus deu livre arbítrio aos homens e pensa que eles merecem
morrer. Na prática, eles é que se matarão se ele resolver matá-los. Igualmente,
as plantas não envenenam os humanos: em vez disso, fazem com que eles
simplesmente... se matem. É a sociedade a responsável por sua própria extinção.
O uso do termo sociedade aqui é chave: o problema lógico que
Shyamalan coloca é de escala: as árvores estão matando grandes grupos, estão
matando sociedades inteiras. Mas e se eu lhe apresentar cinqüenta homens
justos? Talvez não. E quarenta e cinco? Talvez não. E trinta? E vinte? E dez? E
cinco (e não é que vemos Moore, Alma e Jesse acompanhados por dois meninos?) E
três? Toda solução da trama aqui está na construção de um relacionamento total:
as árvores só respeitarão aquela forma de social em que as relações são
desinterditadas, são de estabelecimento de algo que podemos chamar de familiaridade.
A familiaridade é composta por três elementos: 1)
previsibilidade, a idéia de que aquele outro agirá sempre da mesma maneira em
relação a você e que você deverá agir sempre da mesma maneira em relação ao
outro; 2) inevitabilidade, a idéia de que a relação com o outro é inevitável,
ditada por um laço superior, um bem maior (ou a natureza de uma relação de
sangue ou a totalidade de uma relação amorosa, por exemplo); e 3) intimidade,
manifestada em duas dimensões: a) uma intimidade actancial, da ordem das ações,
ou seja, aquela em que o outro é alguém em relação a quem se pode agir sem
limitações consideráveis (podemos, por exemplo, ver o ente amado nu, o que não
será permitido a outros); e b) uma intimidade discursiva, ou seja, indicando
que o outro é aquele de quem se pode tudo saber e que tudo pode saber de nós.
Daí a história de Fim dos Tempos ser marcada por duas
formas de familiarização: a do reencontro de Elliot e Alma, um casal em crise,
cuja familiaridade começa a se esgarçar (um bocado pela falta de coragem dela
para amadurecer e assumir a vida adulta de família); e a da inclusão de Jess,
menina que perderá o pai e encontrará nos dois companheiros de desespero uma
nova possibilidade de previsibilidade (e, com ela, confiança), inevitabilidade (e,
com ela segurança) e intimidade (e, com ela, conforto). E daí os momentos de
maior aproximação da câmera serem momentos para mostrar que há intimidade
(closes em mãos dadas ou cálidos beijos na testa), mas sem que nunca tenhamos
acesso total a ela. A intimidade também será vista apenas de longe (mesmo o
momento de revelação da gravidez de Alma, ao final, será um momento deles,
íntimo, que não podemos presenciar senão à distância, já que nós não somos da
família).
O momento que merece o plano
fechado é o da demonstração de que as pessoas são comprometidas uma com a
outra.
É trama recorrente do diretor: um acontecimento de ordem
grandiosa, superior, se entrelaça em uma transformação pessoal, em especial na
ordem da família. Em Olhos Abertos (1998), o luto da morte do avô é
resolvido no meio de uma busca por um encontro pessoal com Deus; em O Sexto
Sentido (1999), é a relação de um menino com sua mãe e a do marido com a
esposa que estão em contraponto com a entrada do mundo dos espíritos no nosso; e
a entre filho e pai é a de Corpo Fechado (2000); já em Sinais (2002), a perda da mãe será o sofrimento exorcizado diante da grandiosa
descoberta do invasor alienígena. Mesmo em A Vila (2004) A Dama na
Água (2006), filmes em que é o peso da comunidade diante da pressão do
social são elementos já centrais, a família, ou pelo menos a familiaridade,
ocupa um papel central. Diretor de filmes com algo a dizer, que faz filmes
invariavelmente para dizer algo, M. Night Shyamalan cria sempre um problema do
poder da união familiar como elemento à prova diante de uma provação superior.
Superior mesmo. Neste caso, o extermínio do social ele mesmo
só poderá ser resolvido por uma base outra, uma base... amorosa. Não à toa, a
cena clímax do filme, a da solução do problema, é aquela em que a família opta
por enfrentar, junta, como família, como núcleo amoroso, como “célula-mãe da
sociedade”, o absoluto. Ali, os três estão prontos a enfrentar a morte, certos
de que o amor entre eles compensará. “Se ‘isso’ vai acontecer, eu tenho que
estar com você”, diz Elliot a Alma no momento derradeiro de escolha.
Mas como o “a dizer” vem sempre depois do “filme com coisa”
para Shyamalan, o que está em jogo em seu cinema não é apenas, claro, seu
sistema de “moral da história”, que sempre está lá. Antes dele, constrói-se
sempre um intrincado esqueleto lógico, visual e, sobretudo, lógico-visual,
cinematográfico. A cena do clímax, aliás, representa o que de mais importante
há nesse filme em relação a esses jogos de lógica e fotografia na filmografia
do diretor. Se em todos os seus filmes até agora a discussão se estabelecia por
meio de um jogo de ocultamento de um elemento da trama, um mistério a ser
revelado por uma grande virada, neste exercício de gênero cinema-catástrofe –
com toda uma recorrência ao Hitchcock de Os Pássaros (1963), deve-se
observar, além de um considerável toque de séries de TV como Além da
Imaginação (1959-1945; 1985-1989) –, o aparato é o da produção do mistério
mais do que de sua revelação. Na verdade, as regras são todas bastante
explícitas neste filme. O verdadeiro mistério consiste em como produzir a
afetividade que parece ameaçada pelo medo, seja ele o mais essencial medo de
uma jovem diante das possibilidades do futuro, seja ele o mais poderoso de uma
jovem diante da possibilidade de não ter futuro.
O que aponta para a marca mais central de Shyamalan, mais
uma vez exercitada aqui: a existência é produzida pelo olhar e validada por
jogos de escamoteamento visual. Todo seu jogo dramatúrgico é produzido pela
tensão entre o que se pensa ver e o que é revelado ao olhar. Em Fim dos
Tempos, uma mesma mecânica acompanha e estabelece os acontecimentos: por um
lado, constantemente, como disse acima, vemos as coisas de longe; por outro,
são os personagens que são a isso obrigados (até por não poderem se aproximar
devido ao medo de contaminação). Logo no começo, por exemplo, quando os
trabalhadores começam a se jogar do prédio, vemos o colega, que os observa de
baixo, olhos desesperados. E se a câmera sempre se aproxima para mostrar a
violência das mortes (pernas quebradas, pulsos cortados, sangue que escorre dos
crânios), isso não deixa de criar um afastamento: a ação dessas pessoas é
sempre desumanizada. Eles agem como se fossem autômatos, verdadeiros fantoches
da natureza que os executa por suicídio.
Os trabalhadores se matam
vistos de longe...
Depois, veremos o mesmo olhar observador e desesperado nos
rostos de Moore e Julian na estação, diante da TV. E, sobretudo, veremos essa
expressão nos impactantes olhos de Alma. Suas expressões (o trabalho de Zooey Deschanel
é memorável) serão uma espécie de catalisador de toda lógica dos olhares do
filme. Ela estará sempre a mirar os acontecimentos. Estará sempre “ao longe”.
... enquanto os
personagens sempre observarão de longe a ação, com olhares desesperados.
Essa distância também será a tônica de uma espécie de “ponto
de vista divino” que marca a visualidade do filme. Há câmeras do alto que
perseguem os personagens a correr, como se o olhar estivesse nas árvores, no vendo
que carrega a toxina genocida. Essa câmera também será constantemente
dissociada, apartada dos personagens. O detalhe aí é que não se trata de
Shyamalan. Não é ele que olha de cima (como um Deus) para os seres que habitam
seu roteiro. Sua operação é mesmo um “dar a câmera”. Ela pertence agora a um
olhar que é ele mesmo lógica: o que está ao longe em relação à lente está
incluído no jogo de oposição entre os familiares e os não familiares.
Pode soar como uma superficial metáfora ecológica em um
primeiro plano (a natureza se vingará do homem) e, em um segundo, como igualmente
simplista metáfora de baixo grau de solidariedade (já que o filme estaria
pregando um considerável grau de isolacionismo em núcleos familiares, de
confiança restringida nuclearmente). Mas a metáfora é antes de tudo analítica e
daí o olhar ser central neste filme como em toda obra do cineasta: é pela
redução ao núcleo básico que ele consegue fazer ver algo. Fazer ver é sempre
sua operação. Se antes em seus filmes ele ocultava algo que estava lá o tempo
todo, mas que por um jogo de escamoteamento não era visto, aqui ele reorganiza
logicamente as situações para que se possa ver algo que só será visível se
isolado.
Ora, não à toa, seu protagonista é um professor de ciências
(um “sábio”, como Abraão) e que fica a recitar as regras do método científico
clássico, justamente as regras que o diretor está seguindo: isolar o problema,
colher dados etc. A construção do personagem dele é emblemática nesse sentido:
vemo-lo na escola, professor e também professoral, mas, ao mesmo tempo, quase
um colega de seus alunos. O Abraão de Shyamalan negociará com a divindade em
outras bases, naquela em que ele se incluirá no meio dos injustos que se devem
descobrir justos para sobreviver. Não à toa, quando sabe que sua mulher mentiu
para ele ao “comer uma sobremesa” com um colega de trabalho, ele conta que
“quase comprou um xarope para a tosse de US$ 6” ao ver que uma atendente de
farmácia era interessante. Não é tanto a verdade que importa, mas o jogo de se estar
entre os humanos, os seres fracos que erram. Até por isso, explica-se o símbolo
da cena do abraço na estrada: ele está no meio das plantas. No fundo, ele
também é parte da natureza.
O que só reforça o momento do “enunciado da lei científica” como
o grande turning point dramático do filme: ali, o casal e a menina,
afastados por um gramado, comunicando-se à distância, dão-se ao supremo experimento.
E se dão não pela descoberta, pelo menos não a descoberta da verdade, mas mais
por uma descoberta outra, a do outro.
No fundo, é sempre isso que se revela nos filmes de
Shyamalan: se o psicólogo Malcom Crowe (Bruce Willis) está morto e, portanto,
invisível, isso não será descoberto por se saber que há alguém no mundo que o
pode ver, o menino Cole (Haley Joel Osment). Se Ivy (Bryce Dallas Howard) é
cega, será sem enxergar que ela conhecerá o mundo e descobrirá a humanidade. Se
Cleveland (Paul Giamatti) não consegue mais andar com sua vida, é por incluir
os vizinhos em seu drama que ele será capaz de salvar sua biografia. Aqui, o
jogo de Shyamalan é apenas mais intricado no sentido de construir o
ocultamento: o que está em segredo é aquilo que está mais perto. A chave para a
salvação é justamente aquele que está ao lado, aquele que mais se conhece,
aquele de quem só falta conhecer um traço: o fato de ele ser indispensável, de
ele ser família.
A família que foge do
mundo, eis “o acontecimento”.
Alexandre Werneck
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