FIM DOS TEMPOS
M. Night Shyamalan, The Happening, EUA, 2008


O momento radical da lógica do filme: Imerso na vegetação, a mesma que, descobrirão, os está mantando, Moore acolhe Jess em sua família.


Disse mais o SENHOR: Porquanto o clamor de Sodoma e Gomorra se tem multiplicado, e porquanto o seu pecado se tem agravado muito, descerei agora, e verei se com efeito têm praticado segundo o seu clamor, que é vindo até mim; e se não, sabê-lo-ei. Então viraram aqueles homens os rostos dali, e se foram para Sodoma; mas Abraão ficou ainda em pé diante da face do SENHOR. E chegou-se Abraão, dizendo: Destruirás também o justo com o ímpio? Se porventura houver cinqüenta justos na cidade, destruirás também, e não pouparás o lugar por causa dos cinqüenta justos que estão dentro dela? Longe de ti que faças tal coisa, que mates o justo com o ímpio; que o justo seja como o ímpio, longe de ti. Não faria justiça o Juiz de toda a terra? Então disse o SENHOR: Se eu em Sodoma achar cinqüenta justos dentro da cidade, pouparei a todo o lugar por amor deles. E respondeu Abraão dizendo: Eis que agora me atrevi a falar ao Senhor, ainda que sou pó e cinza. Se porventura de cinqüenta justos faltarem cinco, destruirás por aqueles cinco toda a cidade? E disse: Não a destruirei, se eu achar ali quarenta e cinco. E continuou ainda a falar-lhe, e disse: Se porventura se acharem ali quarenta? E disse: Não o farei por amor dos quarenta. Disse mais: Ora, não se ire o Senhor, se eu ainda falar: Se porventura se acharem ali trinta? E disse: Não o farei se achar ali trinta. E disse: Eis que agora me atrevi a falar ao Senhor: Se porventura se acharem ali vinte? E disse: Não a destruirei por amor dos vinte. Disse mais: Ora, não se ire o Senhor, que ainda só mais esta vez falo: Se porventura se acharem ali dez? E disse: Não a destruirei por amor dos dez. E retirou-se o SENHOR, quando acabou de falar a Abraão; e Abraão tornou-se ao seu lugar.

Gênesis, 18, 20-33.

***

Uma das imagens mais impressionantes, se não a mais impressionante, de Fim dos Tempos é a do professor Elliot Moore (Mark Wahlberg) sentado à beira de uma estrada, com parte do corpo ocultada por uma camada alta de capim. Diante dele, a pequena Jess (Ashlyn Sanchez) se aproxima lentamente. Pára e vemos os dois de longe (como à distância veremos vários dos acontecimentos centrais deste filme). Soubemos antes que a menina “cochicha quando está com medo”. E é o que ela faz ao se dirigir ao adulto, em busca da confirmação do que desconfiava: então, eu não tenho mais pai?

Segue-se a explosão emocional que se previa desde o começo da história: Moore abraça a garota, fechando o elo que faltava da corrente, aberta por Alma (Zooey Deschanel): quando a indefesa e abalada esposa de cientista assumira a responsabilidade de tomar conta da criança na ausência de seu progenitor, Julian (John Leguizamo), ouvira dele: “Não pegue a mão de minha filha se não for para valer”. Foi. Assim, Moore fecha justamente imerso nas plantas que são a causa de seu suplício, o ciclo que cria o personagem central de The Happening, a família.

A citação ao Gênesis apresentada acima não é apenas epigráfica. Pelo contrário. A história de mais este mito de M. Night Shyamalan parece operar especularmente em relação ao bíblico. Assim como o patriarca hebreu, a ação de Moore é a de apresentação a uma entidade superior (no caso de Abraão, Deus; no caso do professor, a natureza) uma entidade que possa fazer face à sua busca por justificação para manter vivo um relacionamento. Na Bíblia, Deus quer encerrar o seu com uma sociedade, matando todos os seus seres viventes. No filme, é o Reino Vegetal, representando uma espécie de divindade, de ser todo-poderoso, quem quer encerrar essa relação com esses viventes, com essa sociedade. E nos dois casos é sempre uma questão de atribuição de responsabilidade: Deus deu livre arbítrio aos homens e pensa que eles merecem morrer. Na prática, eles é que se matarão se ele resolver matá-los. Igualmente, as plantas não envenenam os humanos: em vez disso, fazem com que eles simplesmente... se matem. É a sociedade a responsável por sua própria extinção.

O uso do termo sociedade aqui é chave: o problema lógico que Shyamalan coloca é de escala: as árvores estão matando grandes grupos, estão matando sociedades inteiras. Mas e se eu lhe apresentar cinqüenta homens justos? Talvez não. E quarenta e cinco? Talvez não. E trinta? E vinte? E dez? E cinco (e não é que vemos Moore, Alma e Jesse acompanhados por dois meninos?) E três? Toda solução da trama aqui está na construção de um relacionamento total: as árvores só respeitarão aquela forma de social em que as relações são desinterditadas, são de estabelecimento de algo que podemos chamar de familiaridade.

A familiaridade é composta por três elementos: 1) previsibilidade, a idéia de que aquele outro agirá sempre da mesma maneira em relação a você e que você deverá agir sempre da mesma maneira em relação ao outro; 2) inevitabilidade, a idéia de que a relação com o outro é inevitável, ditada por um laço superior, um bem maior (ou a natureza de uma relação de sangue ou a totalidade de uma relação amorosa, por exemplo); e 3) intimidade, manifestada em duas dimensões: a) uma intimidade actancial, da ordem das ações, ou seja, aquela em que o outro é alguém em relação a quem se pode agir sem limitações consideráveis (podemos, por exemplo, ver o ente amado nu, o que não será permitido a outros); e b) uma intimidade discursiva, ou seja, indicando que o outro é aquele de quem se pode tudo saber e que tudo pode saber de nós.

Daí a história de Fim dos Tempos ser marcada por duas formas de familiarização: a do reencontro de Elliot e Alma, um casal em crise, cuja familiaridade começa a se esgarçar (um bocado pela falta de coragem dela para amadurecer e assumir a vida adulta de família); e a da inclusão de Jess, menina que perderá o pai e encontrará nos dois companheiros de desespero uma nova possibilidade de previsibilidade (e, com ela, confiança), inevitabilidade (e, com ela segurança) e intimidade (e, com ela, conforto). E daí os momentos de maior aproximação da câmera serem momentos para mostrar que há intimidade (closes em mãos dadas ou cálidos beijos na testa), mas sem que nunca tenhamos acesso total a ela. A intimidade também será vista apenas de longe (mesmo o momento de revelação da gravidez de Alma, ao final, será um momento deles, íntimo, que não podemos presenciar senão à distância, já que nós não somos da família).


O momento que merece o plano fechado é o da demonstração de que as pessoas são comprometidas uma com a outra.

É trama recorrente do diretor: um acontecimento de ordem grandiosa, superior, se entrelaça em uma transformação pessoal, em especial na ordem da família. Em Olhos Abertos (1998), o luto da morte do avô é resolvido no meio de uma busca por um encontro pessoal com Deus; em O Sexto Sentido (1999), é a relação de um menino com sua mãe e a do marido com a esposa que estão em contraponto com a entrada do mundo dos espíritos no nosso; e a entre filho e pai é a de Corpo Fechado (2000); já em Sinais (2002), a perda da mãe será o sofrimento exorcizado diante da grandiosa descoberta do invasor alienígena. Mesmo em A Vila (2004) A Dama na Água (2006), filmes em que é o peso da comunidade diante da pressão do social são elementos já centrais, a família, ou pelo menos a familiaridade, ocupa um papel central. Diretor de filmes com algo a dizer, que faz filmes invariavelmente para dizer algo, M. Night Shyamalan cria sempre um problema do poder da união familiar como elemento à prova diante de uma provação superior.

Superior mesmo. Neste caso, o extermínio do social ele mesmo só poderá ser resolvido por uma base outra, uma base... amorosa. Não à toa, a cena clímax do filme, a da solução do problema, é aquela em que a família opta por enfrentar, junta, como família, como núcleo amoroso, como “célula-mãe da sociedade”, o absoluto. Ali, os três estão prontos a enfrentar a morte, certos de que o amor entre eles compensará. “Se ‘isso’ vai acontecer, eu tenho que estar com você”, diz Elliot a Alma no momento derradeiro de escolha.

Mas como o “a dizer” vem sempre depois do “filme com coisa” para Shyamalan, o que está em jogo em seu cinema não é apenas, claro, seu sistema de “moral da história”, que sempre está lá. Antes dele, constrói-se sempre um intrincado esqueleto lógico, visual e, sobretudo, lógico-visual, cinematográfico. A cena do clímax, aliás, representa o que de mais importante há nesse filme em relação a esses jogos de lógica e fotografia na filmografia do diretor. Se em todos os seus filmes até agora a discussão se estabelecia por meio de um jogo de ocultamento de um elemento da trama, um mistério a ser revelado por uma grande virada, neste exercício de gênero cinema-catástrofe – com toda uma recorrência ao Hitchcock de Os Pássaros (1963), deve-se observar, além de um considerável toque de séries de TV como Além da Imaginação (1959-1945; 1985-1989) –, o aparato é o da produção do mistério mais do que de sua revelação. Na verdade, as regras são todas bastante explícitas neste filme. O verdadeiro mistério consiste em como produzir a afetividade que parece ameaçada pelo medo, seja ele o mais essencial medo de uma jovem diante das possibilidades do futuro, seja ele o mais poderoso de uma jovem diante da possibilidade de não ter futuro.

O que aponta para a marca mais central de Shyamalan, mais uma vez exercitada aqui: a existência é produzida pelo olhar e validada por jogos de escamoteamento visual. Todo seu jogo dramatúrgico é produzido pela tensão entre o que se pensa ver e o que é revelado ao olhar. Em Fim dos Tempos, uma mesma mecânica acompanha e estabelece os acontecimentos: por um lado, constantemente, como disse acima, vemos as coisas de longe; por outro, são os personagens que são a isso obrigados (até por não poderem se aproximar devido ao medo de contaminação). Logo no começo, por exemplo, quando os trabalhadores começam a se jogar do prédio, vemos o colega, que os observa de baixo, olhos desesperados. E se a câmera sempre se aproxima para mostrar a violência das mortes (pernas quebradas, pulsos cortados, sangue que escorre dos crânios), isso não deixa de criar um afastamento: a ação dessas pessoas é sempre desumanizada. Eles agem como se fossem autômatos, verdadeiros fantoches da natureza que os executa por suicídio.


Os trabalhadores se matam vistos de longe...

Depois, veremos o mesmo olhar observador e desesperado nos rostos de Moore e Julian na estação, diante da TV. E, sobretudo, veremos essa expressão nos impactantes olhos de Alma. Suas expressões (o trabalho de Zooey Deschanel é memorável) serão uma espécie de catalisador de toda lógica dos olhares do filme. Ela estará sempre a mirar os acontecimentos. Estará sempre “ao longe”.




... enquanto os personagens sempre observarão de longe a ação, com olhares desesperados.

Essa distância também será a tônica de uma espécie de “ponto de vista divino” que marca a visualidade do filme. Há câmeras do alto que perseguem os personagens a correr, como se o olhar estivesse nas árvores, no vendo que carrega a toxina genocida. Essa câmera também será constantemente dissociada, apartada dos personagens. O detalhe aí é que não se trata de Shyamalan. Não é ele que olha de cima (como um Deus) para os seres que habitam seu roteiro. Sua operação é mesmo um “dar a câmera”. Ela pertence agora a um olhar que é ele mesmo lógica: o que está ao longe em relação à lente está incluído no jogo de oposição entre os familiares e os não familiares.

Pode soar como uma superficial metáfora ecológica em um primeiro plano (a natureza se vingará do homem) e, em um segundo, como igualmente simplista metáfora de baixo grau de solidariedade (já que o filme estaria pregando um considerável grau de isolacionismo em núcleos familiares, de confiança restringida nuclearmente). Mas a metáfora é antes de tudo analítica e daí o olhar ser central neste filme como em toda obra do cineasta: é pela redução ao núcleo básico que ele consegue fazer ver algo. Fazer ver é sempre sua operação. Se antes em seus filmes ele ocultava algo que estava lá o tempo todo, mas que por um jogo de escamoteamento não era visto, aqui ele reorganiza logicamente as situações para que se possa ver algo que só será visível se isolado.

Ora, não à toa, seu protagonista é um professor de ciências (um “sábio”, como Abraão) e que fica a recitar as regras do método científico clássico, justamente as regras que o diretor está seguindo: isolar o problema, colher dados etc. A construção do personagem dele é emblemática nesse sentido: vemo-lo na escola, professor e também professoral, mas, ao mesmo tempo, quase um colega de seus alunos. O Abraão de Shyamalan negociará com a divindade em outras bases, naquela em que ele se incluirá no meio dos injustos que se devem descobrir justos para sobreviver. Não à toa, quando sabe que sua mulher mentiu para ele ao “comer uma sobremesa” com um colega de trabalho, ele conta que “quase comprou um xarope para a tosse de US$ 6” ao ver que uma atendente de farmácia era interessante. Não é tanto a verdade que importa, mas o jogo de se estar entre os humanos, os seres fracos que erram. Até por isso, explica-se o símbolo da cena do abraço na estrada: ele está no meio das plantas. No fundo, ele também é parte da natureza.

O que só reforça o momento do “enunciado da lei científica” como o grande turning point dramático do filme: ali, o casal e a menina, afastados por um gramado, comunicando-se à distância, dão-se ao supremo experimento. E se dão não pela descoberta, pelo menos não a descoberta da verdade, mas mais por uma descoberta outra, a do outro.

No fundo, é sempre isso que se revela nos filmes de Shyamalan: se o psicólogo Malcom Crowe (Bruce Willis) está morto e, portanto, invisível, isso não será descoberto por se saber que há alguém no mundo que o pode ver, o menino Cole (Haley Joel Osment). Se Ivy (Bryce Dallas Howard) é cega, será sem enxergar que ela conhecerá o mundo e descobrirá a humanidade. Se Cleveland (Paul Giamatti) não consegue mais andar com sua vida, é por incluir os vizinhos em seu drama que ele será capaz de salvar sua biografia. Aqui, o jogo de Shyamalan é apenas mais intricado no sentido de construir o ocultamento: o que está em segredo é aquilo que está mais perto. A chave para a salvação é justamente aquele que está ao lado, aquele que mais se conhece, aquele de quem só falta conhecer um traço: o fato de ele ser indispensável, de ele ser família.


A família que foge do mundo, eis “o acontecimento”.

Alexandre Werneck