O primeiro e o último plano
de Falsa Loura são
idênticos: de um ponto bastante alto, a câmera gira em panorâmica sobre um bairro
da periferia paulistana, uma paisagem amarronzada, com as casas se misturando
indistintamente, uma arquitetura de ocasião moldada sobre um morro qualquer.
Ao mesmo tempo em que estes dois planos emprestam ao filme um tom de realidade
(de certo modo, até lembram a abertura de Rio 40 Graus, o
anúncio de um ambiente geral, em plano aberto, como se fosse o mapa de uma
localização que o filme não quer conhecer inteira, mas apenas buscar uma rua
específica – ou no caso, uma história específica, personagens que um plano aberto
não dá conta de perceber), a maneira como a câmera paira sobre esta periferia
sugere também uma certa suspensão no ar, como se o filme inteiro fosse se nutrir
desse ambiente sem nunca exatamente tocar o seu chão, mas sempre dois palmos
acima, num espaço intermediário entre o mundo real e sua
abstração completa.
Nada que Carlos Reichenbach já não tenha feito antes, é verdade.
Este espaço intermediário é a própria casa de seus filmes, é onde nasce seu
cinema – e podemos dizer com bastante certeza que é um espaço que ninguém ocupa
de maneira semelhante no cinema brasileiro atual. Este é um lugar que abraça
o
clichê como a manifestação espontânea do modo de relação que certas pessoas estabelecem
com a vida, e por isso mesmo sua transformação em cena, em imagem,
não pode se dar pela exposição de sua tautologia, mas sim na tentativa de impregnar
o clichê desta espontaneidade. A pergunta a se fazer a Falsa Loura não é,
por exemplo, sobre o tipo de repertório musical e visual que as operárias paulistas
experimentam em seu dia-a-dia, os cantores românticos, os ídolos
inatingíveis, a iconografia que as cerca. A questão é saber o que há nesse universo
que consegue preencher estas mulheres (e mais, esta mulher em especial, a protagonista
Silmara) de tanta matéria-prima para seus sonhos, para seus desejos, de como
a experiência do sublime pode se dar ali onde ninguém podia imaginar que existisse
mais que um punhado de cafonices. Aquela suspensão
no ar não é, portanto, mero traço de demarcação autoral: é a dois palmos do
chão que Reichenbach encontra seus personagens, e é ali, e só ali, que pode existir
essa sintonia entre pensamento e representação, entre o velho conhecido transmutado
em surpreendente novidade. É como a seqüência em que Silmara (Rosanne Mulholland)
sonha com seu ídolo maior, o cantor Luis Ronaldo (Maurício Mattar), num clipe
musical que lembra os números de estúdio que Carlos Manga
filmava na Atlântida. Enquanto a canção é dublada pelo cantor, caracteres com
a
letra da música aparecem na tela ao estilo karaokê, com uma bolinha acompanhando
o andamento dos versos: cinema sing along, é preciso cantar (e viver)
junto, embarcar no mesmo mar simulado com tecido azul.
Sobretudo quando se trata de um drama do destino como este
aqui. O peso é histórico, as razões são socráticas, e não há qualquer saída aparente
para esta sinuca entre o traço social (operárias que se imaginam Cinderelas,
mas só até o expediente seguinte começar e o uniforme de trabalho substituir
o vestido de cetim) e a própria condição feminina e sua insistência, ao mesmo
tempo ingênua e firme de propósitos, em projetar na figura masculina verdades
que o próprio homem sabe não compartilhar. Silmara começa o filme num regime
de franca imunidade a isto que considera como desvios de sua
independência e caráter. O tom adotado por Rosanne Mulholland quando Reichenbach
nos apresenta a protagonista é o de uma espécie de vamp suburbana, devoradora
de homens e incapaz de aceitar a submissão feminina, a pouca
dedicação de uma colega em parecer sempre linda e radiante, a sujeição ao mais
grosseiro flerte masculino. É uma postura que dura pouco menos de dez minutos.
Talvez esteja aí aquilo que o diretor tem mencionado sempre como a contribuição
de Mulholland à Falsa Loura: da mulher que inicialmente soa arrogante,
preconceituosa, cheia de certezas que a colocam num patamar superior ao das pobres
e feias companheiras de trabalho, só precisamos que finalmente chegue em casa,
encontre o pai (primeira das cinco figuras masculinas que condicionam e revolucionam
seu mundo) para que toda a máscara se desmonte. A figura
fantasmagórica do pai, um ex-incendiário que carrega no rosto uma cicatriz que
nunca o deixa esquecer seu passado (signo tomado de Howard Hawks, como bem observou
nosso Luiz Carlos Oliveira Jr. na entrevista que fizemos com o diretor), de quem
Silmara pacientemente cuida sozinha, está sempre por perto para
anunciar que é de marcas como aquela que a filha viverá. Dignidade, é o que tem
dito Reichenbach, trazida por Rosanne a uma personagem que todos pensam ser puta,
e que o filme sabe que não pode reagir simplesmente elegendo-a santa: dar a esta
mulher a representação visual de todas as fábulas que ela imagina para si, e
quando finalmente o destino anunciado se apresentar, implacável, enxergar
também esta dor como fábula, como espaço para o onírico mesmo diante da mais
cruel realidade.
É preciso dizer que essa operação, recorrência no trato de Reichenbach com todas
as mulheres que já retratou, chega em Falsa Loura algo modificada. Em
uma das várias citações presentes no filme, aparece o
fordianamente famoso “entre a verdade e a lenda, espalhe-se a lenda”. Carlão
está aqui lidando com a sua própria lenda. Um dia, o diretor já foi conhecido
como o realizador daquelas “pornochanchadas esquisitas”, em que se citava uma
máxima de Proudhon no meio de uma transa (“a propriedade é um roubo!”, no ponto
alto de Império dos Desejos). Em Falsa Loura, despido do pudor/culpa/asco
que tem envolvido a imagem sexual no cinema brasileiro
contemporâneo, um personagem dizer à protagonista um “beija meu pau” toma o mesmo
caráter das máximas anarquistas contrabandeadas no meio de um filme da Boca do
Lixo. É um cineasta único, que ligou a si uma série de imagens que sabemos pertencer
só a ele. Quando, insuspeitadamente, virmos uma vestal de calcinha rosa e cabelos
longos cobrindo os seios ao mesmo tempo em que recita
um texto de Sócrates sobre a relação indissociável entre o prazer e a dor, não
haverá espanto, mas uma espécie de conforto, um “ah sim, estamos num filme de
Carlos Reichenbach”. Esta é uma condição ao mesmo tempo merecida e perigosa,
e
o diretor parece saber disso. Falsa Loura, por exemplo, tem um apelo urbano
claro, mas será sempre no interior (aquele mesmo para aonde já fomos em Dois
Córregos ou Bens Confiscados, para ficar nos anos recentes) que suas
situações mais dramáticas ocorrerão. Mas há algo novo aqui. Muito porque,
tanto quanto o prazer do reconhecimento, Falsa Loura nos preenche com
doses iguais de pura descoberta.
A relação com Rosanne Mulholland é realmente especial, e em dois planos de seu
rosto, closes em câmera lenta que mostram opostos de sua vida (um orgasmo, no
auge do idílio, e a ressaca do sonho destruído), Reichenbach realizou duas das
imagens mais impregnantes de toda sua carreira. E se fossem
só os tributos à protagonista, eles já bastariam para colocar o filme entre seus
melhores, mas há ainda um cuidado todo especial com os homens que a cercam e
usam, justamente estes que o cinema brasileiro contemporâneo não cansa de vigiar
e punir, mas que Reichenbach percebe como manifestações merecedoras de igual
dignidade – há um plano aberto do show da banda de Cauã Reymond que vai se fechando
no rosto do ator, até que percebamos em seus olhos uma fúria e uma intensidade
que nunca imaginamos possível, e um outro, do filho do personagem
de Maurício Mattar, uma descoberta de elenco incrível, que por pouco não tornam
o filme porções iguais de falsas louras e louros também.
E não poderia ser diferente. Nesse universo que parece eternamente reprodutor
de uma lógica de exploração do sonho feminino em nome da saciedade do desejo
masculino, onde esses olhos tão inocentes de um menino que
está prestes a perder a virgindade ecoam inevitavelmente nos olhos raivosos daquele
cantor jovem e inconseqüente, como se fossem pontas distantes de uma mesma corrente,
a ordem das encenações se inverte. Instalado neste peso
histórico, já condenado de princípio a mercantilização do sentimento (“eu sou
um contratado avulso, como você”, diz o motorista de Luis Ronaldo à Silmara),
como uma verdade tácita e irrevogável que, no entanto, parece escapar da visão
francamente encantada que a protagonista tem do mundo – uma visão conquistada,
não-automática, cujo despertar percebemos ao longo do filme – Falsa Loura é mágico
por pura necessidade de reação. Abusar do direito de ficcionalizar, ir a fundo
na dramatização, tornar todo traço psicológico um traço físico, aparente, uma
imagem, enfim, já não é apenas uma marca registrada de
Reichenbach: é o único jeito de reverberar no filme aquilo que o prólogo escrito
na tela logo no começo anuncia. Contra a insistência da dor, doses cavalares
de puro prazer. Prazer em acompanhar uma trajetória de vida, mas
também em filmá-la em toda sua singularidade. Quando finalmente retornarmos ao
plano geral da periferia paulistana, sobreposto ao rosto de Silmara, cabelos
ao
vento, lágrimas borrando a maquiagem, a alquimia entre a ilusão e o pragmatismo
estará finalmente completa. De quantos filmes, atualmente, se pode falar que
não
só tratam, mas materializam em imagem, árdua e conscientemente, aquilo que chamamos
de Vida, com letra maiúscula e todas as implicações aí conhecidas? Não
são muitos, não.
Rodrigo de Oliveira
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