Lentamente, uma pálpebra se
abre por sobre o olho da câmera. Vemos o mundo: luzes,
cores, figuras desfocadas, formas distorcidas que se
confundem com seu fundo. A pálpebra oscila vacilante,
e durante um tempo alternamos essas visões confusas
com a escuridão completa. Pouco a pouco, no entanto,
tudo vai se tornando mais nítido: o foco se ajusta e
distinguimos pessoas, que se alternam diante da câmera,
interpondo-se umas na frente das outras. Ouvimos suas
vozes que, de burburinhos, passam a frases articuladas
diretamente para o personagem que se esconde atrás da
câmera. Abrindo caminho, uma delas se aproxima para
nos explicar, ainda em meio a leves jogos de foque/desfoque,
o que se passa exatamente: após permanecer em coma por
três semanas, vítima de um acidente vascular cerebral,
nosso personagem finalmente acorda, muito embora seu
corpo, descobriremos depois, tenha ficado inteiramente
paralisado.
Como boa parte das cenas de todo o filme, esta primeira
seqüência de O escafandro e a borboleta é narrada em
um plano ponto-de-vista do personagem principal. Partilhamos
com ele não apenas seu campo de visão, mas também alguns
fenômenos de confusão ótica (representadas por jogos
como o foco e distorções aplicadas sobre a imagem) e
as piscadelas de suas pálpebras, que oscilam diante
da lente da câmera, ora abertas, ora fechadas. Desde
já é possível observar toda a gama de recursos que serão
empregados por Julian Schnabel para aproximar personagem
e registro: mais do que simplesmente abraçar o plano
ponto-de-vista como procedimento-base na tarefa de se
filmar um personagem completamente paralisado – uma
resposta quase que natural ao próprio desafio de se
incorporar este personagem à mise-en-scène do filme –, o que o diretor
tentará aqui é justamente explorar determinadas propriedades
formais deste dispositivo.
De alguma forma, O
escafandro e a borboleta pode ser visto como um
filme que se equilibra em um paradoxo de representação:
de um lado, a busca pelo rigor físico na construção
do plano subjetivo, enquanto que de outro, a própria
impossibilidade intrínseca ao cinema de reconstituir
o campo de visão humano – em um nível muito básico de
análise, parece muito óbvio que este é bastante diverso
em sua forma do retângulo de dimensões limitadas que
compõe o quadro cinematográfico. Toda a luta do filme
se passa justamente aí, neste paradoxo de representação
que o filme procura contornar, em seu desejo de reconstruir,
se não o próprio ponto de vista, ao menos uma imagem
que o simule analogamente. E é exatamente nesta luta,
na construção deste análogo, que o filme de Schnabel
demonstra sua fraqueza, pois de onde se espera uma crueza
de registro, um mundo de imagens não processadas, câmera
à flor dos sentidos, tem-se justamente o contrário –
uma profusão de imagens belas, de cores saturadas e
formas distorcidas artificialmente fabricadas.
O filme passa, e é como se jamais olhássemos o personagem
frente a frente, como se jamais adentrássemos verdadeiramente
em seu drama. Ficamos sempre numa espécie de plano superior
de representação, consumindo imagens fortemente estilizadas
que nos trazem belas mulheres e situações cômicas, e
acompanhados de uma narração em off que faz questão
de jamais deixar o astral cair. De ferramenta dramática
tradicional, o plano ponto-de-vista passa a ter aqui,
ao contrário, a função de justamente escamotear o drama,
desviar nossa atenção para a plasticidade dos enquadramentos
– talvez mesmo, poderíamos dizer, tornar o drama suportável.
Um desvio de olhar que se dá na mesma proporção do desequilíbrio
dos enquadramentos (em quanto? 180º?), e que parece
se atestar na presença constante de imagens simbólicas
que volta e meia adentram na narrativa do filme (um
iceberg rachando, nosso personagem descendo mar afundo
preso em um traje de mergulho, simbolizando o “escafandro”).
Pois o que dizer de um filme que se pretende tão “realista”
mas que precisa, ao mesmo tempo, de metáforas visuais
para dar conta dos sentimentos do personagem?
Se há um adjetivo para definir a viagem que Julian Schnabel
nos propõe aqui, este adjetivo é “pueril”. Existe um
momento, no entanto, em que o filme parece querer se
justificar. É quando, passados o choque e a confusão
inicial e tendo assimilado sua situação, o personagem
pensa alto: “Decidi não pensar mais em mim mesmo. Me
dei conta de que há duas coisas em mim que não estão
paralisadas: minha imaginação e minha memória”. Talvez
se queira sugerir aqui que o mundo que nos é oferecido
em O escafandro
e a borboleta não passaria afinal de um mundo de
sonhos, um real fortemente idealizado pelo próprio personagem,
cabendo ao filme apenas acompanhá-lo. Mas em sonho ou
não, no real ou no irreal, nada justifica a superficialidade
reinante – especialmente quando constatada em planos
cujo desequilíbrio não nos faz tombar em lugar algum.
Calac Nogueira
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