O ESCAFANDRO E A BORBOLETA
Julian Schnabel, Le Scaphandre et le papillon, EUA/França, 2007

Lentamente, uma pálpebra se abre por sobre o olho da câmera. Vemos o mundo: luzes, cores, figuras desfocadas, formas distorcidas que se confundem com seu fundo. A pálpebra oscila vacilante, e durante um tempo alternamos essas visões confusas com a escuridão completa. Pouco a pouco, no entanto, tudo vai se tornando mais nítido: o foco se ajusta e distinguimos pessoas, que se alternam diante da câmera, interpondo-se umas na frente das outras. Ouvimos suas vozes que, de burburinhos, passam a frases articuladas diretamente para o personagem que se esconde atrás da câmera. Abrindo caminho, uma delas se aproxima para nos explicar, ainda em meio a leves jogos de foque/desfoque, o que se passa exatamente: após permanecer em coma por três semanas, vítima de um acidente vascular cerebral, nosso personagem finalmente acorda, muito embora seu corpo, descobriremos depois, tenha ficado inteiramente paralisado.

Como boa parte das cenas de todo o filme, esta primeira seqüência de O escafandro e a borboleta é narrada em um plano ponto-de-vista do personagem principal. Partilhamos com ele não apenas seu campo de visão, mas também alguns fenômenos de confusão ótica (representadas por jogos como o foco e distorções aplicadas sobre a imagem) e as piscadelas de suas pálpebras, que oscilam diante da lente da câmera, ora abertas, ora fechadas. Desde já é possível observar toda a gama de recursos que serão empregados por Julian Schnabel para aproximar personagem e registro: mais do que simplesmente abraçar o plano ponto-de-vista como procedimento-base na tarefa de se filmar um personagem completamente paralisado – uma resposta quase que natural ao próprio desafio de se incorporar este personagem à mise-en-scène do filme –, o que o diretor tentará aqui é justamente explorar determinadas propriedades formais deste dispositivo.

De alguma forma, O escafandro e a borboleta pode ser visto como um filme que se equilibra em um paradoxo de representação: de um lado, a busca pelo rigor físico na construção do plano subjetivo, enquanto que de outro, a própria impossibilidade intrínseca ao cinema de reconstituir o campo de visão humano – em um nível muito básico de análise, parece muito óbvio que este é bastante diverso em sua forma do retângulo de dimensões limitadas que compõe o quadro cinematográfico. Toda a luta do filme se passa justamente aí, neste paradoxo de representação que o filme procura contornar, em seu desejo de reconstruir, se não o próprio ponto de vista, ao menos uma imagem que o simule analogamente. E é exatamente nesta luta, na construção deste análogo, que o filme de Schnabel demonstra sua fraqueza, pois de onde se espera uma crueza de registro, um mundo de imagens não processadas, câmera à flor dos sentidos, tem-se justamente o contrário – uma profusão de imagens belas, de cores saturadas e formas distorcidas artificialmente fabricadas.

O filme passa, e é como se jamais olhássemos o personagem frente a frente, como se jamais adentrássemos verdadeiramente em seu drama. Ficamos sempre numa espécie de plano superior de representação, consumindo imagens fortemente estilizadas que nos trazem belas mulheres e situações cômicas, e acompanhados de uma narração em off que faz questão de jamais deixar o astral cair. De ferramenta dramática tradicional, o plano ponto-de-vista passa a ter aqui, ao contrário, a função de justamente escamotear o drama, desviar nossa atenção para a plasticidade dos enquadramentos – talvez mesmo, poderíamos dizer, tornar o drama suportável. Um desvio de olhar que se dá na mesma proporção do desequilíbrio dos enquadramentos (em quanto? 180º?), e que parece se atestar na presença constante de imagens simbólicas que volta e meia adentram na narrativa do filme (um iceberg rachando, nosso personagem descendo mar afundo preso em um traje de mergulho, simbolizando o “escafandro”). Pois o que dizer de um filme que se pretende tão “realista” mas que precisa, ao mesmo tempo, de metáforas visuais para dar conta dos sentimentos do personagem?

Se há um adjetivo para definir a viagem que Julian Schnabel nos propõe aqui, este adjetivo é “pueril”. Existe um momento, no entanto, em que o filme parece querer se justificar. É quando, passados o choque e a confusão inicial e tendo assimilado sua situação, o personagem pensa alto: “Decidi não pensar mais em mim mesmo. Me dei conta de que há duas coisas em mim que não estão paralisadas: minha imaginação e minha memória”. Talvez se queira sugerir aqui que o mundo que nos é oferecido em O escafandro e a borboleta não passaria afinal de um mundo de sonhos, um real fortemente idealizado pelo próprio personagem, cabendo ao filme apenas acompanhá-lo. Mas em sonho ou não, no real ou no irreal, nada justifica a superficialidade reinante – especialmente quando constatada em planos cujo desequilíbrio não nos faz tombar em lugar algum.

Calac Nogueira