São dois desafios:
1) Evitar o sério risco de cair no conservadorismo que rege
a atual crítica brasileira, completamente moldada pelo gosto médio e, salvo
raras (cada vez mais) exceções, muito mal acostumada com o dejeto que as
distribuidoras vêm despejando em nosso circuito.
2) Fazer uma crítica de um filme que já está em sua segunda
semana, e que já rendeu textos primorosos de Inácio Araujo e Francis Vogner dos
Reis.
O primeiro desafio é até fácil de ser vencido. Começar o
texto dessa forma é um bom sinal. Ele pode até ser ruim, mas conservador,
jamais. O segundo só é possível de ser contornado. Já que tudo, ou quase,
disseram sobre este filme notável, restam alguns tiros no escuro, algumas
parcas tentativas de se apreender o jorro de imagens furiosas e represadas que
Mojica colocou nas telas de cinema.
Porque Encarnação do Demônio é isso: energia
represada. Esporro violento de cenas desafiadoras, deflagadoras de uma notável
distinção: o cinema brasileiro ainda existe, escondido debaixo de plim-plins e
favelas, driblando leis de incentivo e dinamitando padrões de bom gosto com
bichos escrotos, leitão escondendo mulher nua e banhos de sangue na hora da
transa.
Como Serras da Desordem, Cão sem Dono, Falsa
Loura, e mais uns poucos, a nova estripulia do Zé do Caixão ignora que
certo tipo de cinema está praticamente banido do interesse dos freqüentadores
de multiplexes – falo em freqüentadores porque se falar em cinéfilos serei
obrigado a falar de gueto, e não quero falar disso agora. Pois é justamente
neles que o filme se sujeita ao vaticínio de alguns, superiores demais para
enxergar alguma originalidade, soberbos ao extremo, e, por isso, incapazes de
perceber onde está o desafio, onde pecam pelo conservadorismo.
O filme de Tonacci desafia quem queira rotulá-lo, e nesta
terra de caolhos quem não é rotulado dificilmente é compreendido; na verdade,
dificilmente recebe a atenção necessária para ser compreendido. O de Brant
consegue furar alguns bloqueios, mas não sai ileso do precipício a que se
atira. E o de Carlão é a prova definitiva de que o gosto popular encolheu,
ficou pior, e já não pode mais abrigar ousadias estéticas ou citações
filosóficas.
Agora vem o novo Mojica para tentar desbravar a barreira da
bilheteria. E vêm os comentaristas do pós-tudo analisar o que foi feito de
errado na estratégia de marketing, na escolha do dia de estréia, nas capitais
escolhidas para receberem o filme em primeira mão. Não consegue desbravar tal
barreira, não tem como conseguir. Mas houve mesmo um erro? Ou o erro foi
apostar na coragem de um público cada vez mais distante do que é diferente? Zé
do Caixão, fosse um homem da vida, e não um personagem, desaprovaria todos os
risinhos de deboche com unhas enfiadas na cara. Mas felizmente ele é só um
personagem, e suas torturas ficam restritas à tela.
Não pretendo com estas palavras dizer que quem não gostou do
filme é conservador, ou pouco entende de cinema. Mas é inevitável observar que
as críticas negativas são carregadas de um tipo de preconceito que parece
abalizado por alguma instância que também dita as escolhas das distribuidoras:
procurar obras que mantenham o espectador com suas certezas, e não estraguem o
jantar que se segue ao filme.
Outra coisa, destinada a quem já deve se perguntar
"onde está a crítica?". Não, isto não é uma crítica. É uma resposta.
Resposta? Sim, ao que se disse por aí, ao que se pensa nas esquinas, ao que se
pode ler. Se ainda existe um espaço para que um jorro desgovernado de cinema
seja respondido com um jorro desgovernado de palavras, e se este despautério
seja encarado como um fruto sincero e inseguro de uma paixão ainda pulsante – sim,
uma paixão que é sabotada, dia a dia, por 90% do que estréia em nossos cinemas –,
então que se encare este texto como algo possível no cenário crítico
brasileiro.
Menos uma carta de intenções do que uma provocação, muito
menos um não ter o que dizer do que o reconhecimento de que outros já
disseram-no bem, e de que chover no molhado é a pior forma de reverência
crítica. Enfim, um suicídio crítico, se quiserem alguns, um desesperado grito
por mudanças, se sintonizarem a mesma faixa. Sobretudo, um tapa na cara – desajeitado,
trem doido, mas com paixão – da cartilha crítica, como o tapa dado por Mojica
no bom gosto vigente.
Sérgio Alpendre
|