ENCARNAÇÃO DO DEMÔNIO
José Mojica Marins, Encarnação do Demônio, Brasil, 2008

São dois desafios:

1) Evitar o sério risco de cair no conservadorismo que rege a atual crítica brasileira, completamente moldada pelo gosto médio e, salvo raras (cada vez mais) exceções, muito mal acostumada com o dejeto que as distribuidoras vêm despejando em nosso circuito.

2) Fazer uma crítica de um filme que já está em sua segunda semana, e que já rendeu textos primorosos de Inácio Araujo e Francis Vogner dos Reis.

O primeiro desafio é até fácil de ser vencido. Começar o texto dessa forma é um bom sinal. Ele pode até ser ruim, mas conservador, jamais. O segundo só é possível de ser contornado. Já que tudo, ou quase, disseram sobre este filme notável, restam alguns tiros no escuro, algumas parcas tentativas de se apreender o jorro de imagens furiosas e represadas que Mojica colocou nas telas de cinema.

Porque Encarnação do Demônio é isso: energia represada. Esporro violento de cenas desafiadoras, deflagadoras de uma notável distinção: o cinema brasileiro ainda existe, escondido debaixo de plim-plins e favelas, driblando leis de incentivo e dinamitando padrões de bom gosto com bichos escrotos, leitão escondendo mulher nua e banhos de sangue na hora da transa.

Como Serras da Desordem, Cão sem Dono, Falsa Loura, e mais uns poucos, a nova estripulia do Zé do Caixão ignora que certo tipo de cinema está praticamente banido do interesse dos freqüentadores de multiplexes – falo em freqüentadores porque se falar em cinéfilos serei obrigado a falar de gueto, e não quero falar disso agora. Pois é justamente neles que o filme se sujeita ao vaticínio de alguns, superiores demais para enxergar alguma originalidade, soberbos ao extremo, e, por isso, incapazes de perceber onde está o desafio, onde pecam pelo conservadorismo.

O filme de Tonacci desafia quem queira rotulá-lo, e nesta terra de caolhos quem não é rotulado dificilmente é compreendido; na verdade, dificilmente recebe a atenção necessária para ser compreendido. O de Brant consegue furar alguns bloqueios, mas não sai ileso do precipício a que se atira. E o de Carlão é a prova definitiva de que o gosto popular encolheu, ficou pior, e já não pode mais abrigar ousadias estéticas ou citações filosóficas.

Agora vem o novo Mojica para tentar desbravar a barreira da bilheteria. E vêm os comentaristas do pós-tudo analisar o que foi feito de errado na estratégia de marketing, na escolha do dia de estréia, nas capitais escolhidas para receberem o filme em primeira mão. Não consegue desbravar tal barreira, não tem como conseguir. Mas houve mesmo um erro? Ou o erro foi apostar na coragem de um público cada vez mais distante do que é diferente? Zé do Caixão, fosse um homem da vida, e não um personagem, desaprovaria todos os risinhos de deboche com unhas enfiadas na cara. Mas felizmente ele é só um personagem, e suas torturas ficam restritas à tela.

Não pretendo com estas palavras dizer que quem não gostou do filme é conservador, ou pouco entende de cinema. Mas é inevitável observar que as críticas negativas são carregadas de um tipo de preconceito que parece abalizado por alguma instância que também dita as escolhas das distribuidoras: procurar obras que mantenham o espectador com suas certezas, e não estraguem o jantar que se segue ao filme.

Outra coisa, destinada a quem já deve se perguntar "onde está a crítica?". Não, isto não é uma crítica. É uma resposta. Resposta? Sim, ao que se disse por aí, ao que se pensa nas esquinas, ao que se pode ler. Se ainda existe um espaço para que um jorro desgovernado de cinema seja respondido com um jorro desgovernado de palavras, e se este despautério seja encarado como um fruto sincero e inseguro de uma paixão ainda pulsante – sim, uma paixão que é sabotada, dia a dia, por 90% do que estréia em nossos cinemas –, então que se encare este texto como algo possível no cenário crítico brasileiro.

Menos uma carta de intenções do que uma provocação, muito menos um não ter o que dizer do que o reconhecimento de que outros já disseram-no bem, e de que chover no molhado é a pior forma de reverência crítica. Enfim, um suicídio crítico, se quiserem alguns, um desesperado grito por mudanças, se sintonizarem a mesma faixa. Sobretudo, um tapa na cara – desajeitado, trem doido, mas com paixão – da cartilha crítica, como o tapa dado por Mojica no bom gosto vigente.


Sérgio Alpendre