ELIZABETH - A ERA DE OURO
Shekhar Kapur, Elizabeth: The Golden Age, Reino Unido/França/Alemanha, 2007

Há um grande tratado a ser feito aí (ou talvez não tão grande, nem lá tão necessário) sobre a relação entre o cinema comercial britânico de fundo histórico e seu amor pelos figurinos. Nesse tratado imaginário, Elizabeth – A Era de Ouro certamente ocuparia um lugar de destaque. Capitalizando em cima de uma figura mítica real da mesma maneira que os produtores da Marvel têm feito com seus heróis de quadrinhos, Shekhar Kapur reencontra a estrela do filme de 1998 em mais um momento de desafio moral e superação engrandecedora. Elizabeth cresceu, muito mais que o devido para que suas aparições sempre gloriosas não percam o brilho francamente divino que se quer atribuir a elas, e por isso a Rainha Virgem, que tinha 52 anos na época que A Era de Ouro a retrata, surge esplendorosa numa Cate Blanchett aparentando no mínimo 20 anos menos. Era fundamental para o projeto de Kapur que esta e todas as inúmeras incorreções históricas do filme saltassem aos olhos mesmo dos mais desavisados, uma vez que pouca (ou nenhuma) História interessa aqui, e tanto mais esse direito sagrado da ficção, da participação atrevida de uma câmera nos salões em que os destinos do mundo eram traçados, na recriação livre e, neste caso, radical, de personagens e situações em nome de uma idéia.

Aqui, uma idéia simples. De um lado, Kapur investe no grande-filme-de-caserna. O que se passa em A Era do Ouro é uma espécie de teatro de salão proto-shakesperiano, onde tudo o que se precisa para a encenação é de um grupo de bons atores, roupas de época e o aluguel de antigos castelos e igrejas restauradas. Não se trata de uma peça de intrigas palacianas (até haverá algumas, de fundo político, mas A Era de Ouro abomina qualquer idéia de política). A Rainha Virgem, seu séqüito de damas de companhia, conselheiros e pretendentes formam um curioso grupo de mundanos metidos na realeza, onde uma ameaça de guerra santa precisa brigar muito para ter algum espaço dramático em meio às crises existenciais da soberana, suas idas ao astrólogo, seu flerte com um pirata camarada, sua paixão maternal para com a dama de sua preferência. O roteiro habilmente retira dos diálogos toda a empostação sagaz e elegância lingüística de que os filmes de época sempre estão cheios, e aposta numa versão quase moderna dos costumes reais. Tudo isso tem um motivo, para lá de evidente: por mais que esteja no auge de seu poder, é hora de mostrar uma rainha mais humana, mais próxima de seu povo, mais conectada aos princípios de uma liderança que é forte, mas também se emociona, chora, se fragiliza no escuro do quarto ou no banho de sais à luz de velas. Todo esforço de direção de Kapur nestes momentos de caserna são realmente interessantes, com seus planos de viés, suas constantes quebras-de-eixo, tomadas por trás de cortinas, espelhos e colunas, coisa de alguém que se viu com orçamento reduzido para filmar um grande épico e correu rapidamente à locadora para ver como Orson Welles fazia com suas adaptações de Shakespeare de ainda pior orçamento.

E, ao mesmo tempo, toda tentativa de aproximar Elizabeth do solo se opõe à exuberância extra-mundo de seus figurinos. Kapur talvez devesse investir na carreira de fotógrafo de moda, uma vez que seu cuidado na filmagem dos mais diversos vestidos da rainha superam em quilômetros toda a preguiça com que trata os vilões da Espanha, ou ainda a sub-trama do planejamento do assassinato da rainha, com masmorras escuras e católicos fanáticos que nos fazem sentir saudade do monge albino de O Código Da Vinci. Um vestido, um arranjo de cabeça, um lenço, são encarados como verdadeiros objetos de composição da imagem, manifestações palpáveis de uma divindade que todo o tom de comédia romântica espertinha do filme escamoteia. São planos de uma cafonice sem igual, mas eles aparecem numa escalada tão consciente e bem programada que fazem pensar que este talvez até pudesse ser um bom filme abstrato sobre uma clínica de reabilitação para os doentes de extravagância. Primeiro, a rainha respeitável, em trajes que a fazem desaparecer no meio dos adereços do palácio e das damas de companhia. Uma vez que o amor seja despertado (o pirata que já citamos), Elizabeth finalmente encara vestidos mais berrantes. Quando está prestes a ser assassinada, veste um branco tão ofuscante que nem a câmera-lenta do filme é capaz de capturá-lo sem deixar a imagem estourar. O tiro falha, culpa daquela brancura toda, é claro. É então que começa a guerra contra a Espanha, e nada tira o roxo do corpo de Elizabeth.

Postada nos cenários a partir dos ângulos mais estranhos e aleatórios, Kapur quer de Cate Blanchett o poder de uma manequim com sentimentos (e esta grande atriz está cheia deles), para poder brincar de preenchimento de quadro com a super-heroína poderosa e virgem que construiu para si mesmo. Não será à toa que, uma vez ameaçada de perder a guerra, Elizabeth vista uma suntuosa armadura metálica, num plano cheio de violinos e auto-importância. O filme que Kapur tinha no coração era esse: a ascensão de uma mulher, do vestido pastel à armadura de guerreira, da peruca quatrocentista aos longos cabelos ruivos soltos ao vento. E, por isso mesmo, todo o resto da trama, sem um trapinho sequer para jogar sobre o corpo, acaba sendo tratado com total desprezo.

Rodrigo de Oliveira

 

 






Elizabeth sobre o mapa da guerra: entre o filme histórico
e a fotografia de moda