Há um grande tratado a ser
feito aí (ou talvez não tão
grande, nem lá tão necessário) sobre a relação entre o cinema comercial
britânico de fundo histórico e seu amor pelos figurinos. Nesse tratado
imaginário, Elizabeth – A Era de Ouro certamente ocuparia um lugar de
destaque. Capitalizando em cima de uma figura mítica real da mesma maneira que
os produtores da Marvel têm feito com seus heróis de quadrinhos, Shekhar Kapur
reencontra a estrela do filme de 1998 em mais um momento de desafio moral e
superação engrandecedora. Elizabeth cresceu, muito mais que o devido para que
suas aparições sempre gloriosas não percam o brilho francamente divino que se
quer atribuir a elas, e por isso a Rainha Virgem, que tinha 52 anos na época
que A Era de Ouro a retrata, surge esplendorosa numa Cate Blanchett
aparentando no mínimo 20 anos menos. Era fundamental para o projeto de Kapur
que esta e todas as inúmeras incorreções históricas do filme saltassem aos olhos
mesmo dos mais desavisados, uma vez que pouca (ou nenhuma) História interessa
aqui, e tanto mais esse direito sagrado da ficção, da participação atrevida de
uma câmera nos salões em que os destinos do mundo eram traçados, na recriação
livre e, neste caso, radical, de personagens e situações em nome de uma idéia.
Aqui, uma idéia simples. De um lado, Kapur investe no grande-filme-de-caserna.
O que se passa em A Era do Ouro é uma espécie
de teatro de salão proto-shakesperiano, onde tudo o que se precisa para a
encenação é de um grupo de bons atores, roupas de época e o aluguel de antigos
castelos e igrejas restauradas. Não se trata de uma peça de intrigas palacianas
(até haverá algumas, de fundo político, mas A Era de Ouro abomina qualquer
idéia de política). A Rainha Virgem, seu séqüito de damas de companhia, conselheiros
e pretendentes formam um curioso grupo de mundanos metidos na realeza, onde uma
ameaça de guerra santa precisa brigar muito para
ter algum espaço dramático em meio às crises existenciais da soberana, suas idas
ao astrólogo, seu flerte com um pirata camarada, sua paixão maternal para com
a dama de sua preferência. O roteiro habilmente retira dos diálogos toda a
empostação sagaz e elegância lingüística de que os filmes de época sempre estão
cheios, e aposta numa versão quase moderna dos costumes reais. Tudo isso tem
um
motivo, para lá de evidente: por mais que esteja no auge de seu poder, é hora
de mostrar uma rainha mais humana, mais próxima de seu povo, mais conectada aos
princípios de uma liderança que é forte, mas também se emociona, chora, se fragiliza
no escuro do quarto ou no banho de sais à luz de velas. Todo esforço
de direção de Kapur nestes momentos de caserna são realmente interessantes, com
seus planos de viés, suas constantes quebras-de-eixo, tomadas por trás de cortinas,
espelhos e colunas, coisa de alguém que se viu com orçamento reduzido para filmar
um grande épico e correu rapidamente à locadora para ver como Orson Welles fazia
com suas adaptações de Shakespeare de ainda pior orçamento.
E, ao mesmo tempo, toda tentativa de aproximar Elizabeth do
solo se opõe à exuberância extra-mundo de seus figurinos. Kapur talvez devesse
investir na carreira de fotógrafo de moda, uma vez que seu cuidado na filmagem
dos mais diversos vestidos da rainha superam em quilômetros toda a preguiça com
que trata os vilões da Espanha, ou ainda a sub-trama do planejamento do assassinato
da rainha, com masmorras escuras e católicos fanáticos que nos fazem sentir saudade
do monge albino de O Código Da Vinci. Um vestido, um
arranjo de cabeça, um lenço, são encarados como verdadeiros objetos de
composição da imagem, manifestações palpáveis de uma divindade que todo o tom
de comédia romântica espertinha do filme escamoteia. São planos de uma cafonice
sem igual, mas eles aparecem numa escalada tão consciente e bem programada que
fazem pensar que este talvez até pudesse ser um bom filme abstrato sobre uma
clínica de reabilitação para os doentes de extravagância. Primeiro, a rainha
respeitável, em trajes que a fazem desaparecer no meio dos adereços do palácio
e das damas de companhia. Uma vez que o amor seja despertado (o pirata que já citamos),
Elizabeth finalmente encara vestidos mais berrantes. Quando está prestes a ser
assassinada, veste um branco tão ofuscante que nem a câmera-lenta
do filme é capaz de capturá-lo sem deixar a imagem estourar. O tiro falha, culpa
daquela brancura toda, é claro. É então que começa a guerra contra a Espanha,
e nada tira o roxo do corpo de Elizabeth.
Postada nos cenários a partir dos ângulos mais estranhos e
aleatórios, Kapur quer de Cate Blanchett o poder de uma manequim com sentimentos
(e esta grande atriz está cheia deles), para poder brincar de preenchimento de
quadro com a super-heroína poderosa e virgem que construiu
para si mesmo. Não será à toa que, uma vez ameaçada de perder a guerra, Elizabeth
vista uma suntuosa armadura metálica, num plano cheio de violinos e auto-importância.
O
filme
que
Kapur
tinha
no
coração era esse: a ascensão de uma mulher, do vestido pastel à armadura de guerreira,
da peruca quatrocentista aos longos cabelos ruivos soltos ao vento. E, por isso
mesmo, todo o resto da trama, sem um trapinho sequer para jogar sobre o corpo,
acaba
sendo tratado com total desprezo.
Rodrigo de Oliveira
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