ANTES QUE O DIABO SAIBA QUE VOCÊ ESTÁ MORTO
Sidney Lumet, EUA, 2007

O paraíso de sombras

Na abertura de Antes que o Diabo Saiba que Você Está Morto, um homem e uma mulher fazem sexo. Não é uma cena de amor, é mais um choque de corpos do que qualquer outra coisa – corpos sem cadência, uma massa se batendo contra a resistência da outra. Eles estão encobertos por sombras, mal conseguimos ver seus rostos. O ambiente da cena é carregado, denso. Ao final da transa, os personagens – Andy (Philip Seymour Hoffman) e Gina (Marisa Tomei), marido e mulher – conversam e, para nossa surpresa, afirmam estarem no paraíso, enfeitiçados pelo Rio de Janeiro onde passam férias. E então nos perguntamos: que espécie de paraíso é esse, feito de sombras pesadas, sonhos em fuga, rostos atravessados por más lembranças?

Lumet, conforme teremos mais e mais certeza ao longo do filme, limitou-se a narrar uma trajetória rumo ao inferno: o que um grupo de pessoas precisa fazer para lá chegar. Esse grupo de pessoas são os homens de uma mesma família: Andy, seu irmão mais novo Hank (Ethan Hawke) e o pai Charles (Albert Finney). A tragédia familiar de Antes que o Diabo Saiba que Você Está Morto será levada justo ao extremo, sem meio-tom. O curioso, no entanto, é que o andamento do filme retarda a queda mais acentuada. A energia vai sendo poupada, para ser despejada numa estarrecedora seqüência de mortes nos minutos finais. A maior parte da narrativa, que Lumet filma com a simplicidade de um teledrama, instala uma lenta asfixia. A mise en scène dessa progressiva falta de oxigênio é de uma lucidez assustadora, que nos prepara gradativamente para a cena final.

A despeito do constante acréscimo de fatores complicantes da intriga e do drama, o plot deste filme é no fundo bastante simples, mesmo sua cadeia de ações pode ser resumida em poucas palavras. Um roubo desastroso, uma família em completa decadência, três gerações efetuando uma reprodução inelutável de escolhas erradas. Lumet já tinha filmado isso antes, em um de seus melhores filmes, Negócios de Família, mas agora ele torna tudo mais sombrio. Havia um horizonte positivo nos roubos elegantes e na charmosa filosofia de vida do personagem de Sean Connery, no filme de 1989, que nada nem ninguém em Antes que O Diabo Saiba que Você Está Morto pode repetir. A salvaguarda moral do patriarca da família também se perdeu. O que restou para o novo filme de Lumet foi um mundo sem salvação.

Uma cena em particular reterritorializa a tragédia aqui em foco: no ambiente lounge do apartamento em que Andy toma heroína, a câmera desliza de um cômodo a outro até enquadrar o personagem em frente a uma janela panorâmica de onde se vê o Empire State Building (único ícone nova-iorquino mostrado no filme, mesmo assim através da janela, reforçando a predominância de interiores). Nesse momento, Lumet inscreve seu drama familiar numa esfera de decadência mais ampla e ambiciosa. O apartamento do jovem traficante oriental, melhor ilustração da inteligência cenográfica do filme, é a locação chave, onde se condensa a grande virada da narrativa: aquela atmosfera blasé e requintada deixa de ser o lugar onde Andy tenta reconquistar sua paz perdida e vira palco de uma possessão demoníaca, quando ele entra lá alucinado e atira gratuitamente no traficante e num de seus clientes. Não é nada improvável que Andy tenha matado aquele homem gordo, que dormia ali entorpecido, inofensivo, menos para eliminar possível testemunha do que para exorcizar (inutilmente) uma projeção de si mesmo.

Andy passa o filme todo a sonhar com o paraíso, mas pensa que sua via de acesso é o dinheiro, e este por sua vez é o grande agente diabólico da trama. A angústia paralizante de Andy cresce à medida que sua ambição de paz e repouso se torna distante, mítica, inalcançável. O ápice é quando sua mulher está saindo de casa e ele fica estático, incapaz de reagir, sem ódio e sem amor. O problema é que, para escapar do fracasso social e familiar, para escapar do inferno e atingir o paraíso, ele havia corrido atrás do dinheiro e este, por sua vez, havia participado da estrutura de fundação do mesmo inferno de que queria fugir. Esse é o terrível paradoxo de Andy. Poucos filmes recentes mostram um lado tão destruidor do dinheiro. Lumet, que sempre contestou a moral frouxa da era corporativa (cf. Rede de Intrigas), retoma o assunto: o dinheiro, fonte de bem estar, acesso ao paraíso, é também a boca do inferno. Mais do que uma tragédia familiar, Antes que O Diabo Saiba que Você Está Morto é a tragédia de toda uma sociedade fundada sobre o dinheiro.

As idas e vindas da história nada têm de truque narrativo. Pelo contrário: elas tornam o filme mais enervante, mais desagradável. Cinqüenta anos atrás, em um de seus filmes mais famosos, Doze Homens e uma Sentença, Lumet concentrou toda a narrativa dentro da sala onde os membros do júri tentavam chegar ao veredito e explorou: 1) pela decupagem, todos os ângulos possíveis do espaço cênico; 2) pelos diálogos e confrontos verbais, todos os ângulos possíveis da reconstrução do crime em julgamento. Assim como o personagem de Henry Fonda no filme, Lumet sabe que a questão – condenar ou não um homem à morte – só deve ser concluída uma vez esgotadas as hipóteses. Não podem restar detalhes em aberto. Em Antes que O Diabo Saiba que Você Está Morto, um efeito similar é alcançado, a montagem insiste em retornar aos mesmos acontecimentos variando os pontos de vista. Lumet quer mostrar a tragédia de todos os ângulos possíveis, até não restar dúvida de que o mal está feito.

Luiz Carlos Oliveira Jr.