O paraíso de sombras
Na abertura de Antes que o Diabo Saiba que Você Está Morto, um homem e
uma mulher fazem sexo. Não é uma cena de amor, é mais um choque de corpos do
que qualquer outra coisa – corpos sem cadência, uma massa se batendo contra a
resistência da outra. Eles estão encobertos por sombras, mal conseguimos ver
seus rostos. O ambiente da cena é carregado, denso. Ao final da transa, os
personagens – Andy (Philip Seymour Hoffman) e Gina (Marisa Tomei), marido e
mulher – conversam e, para nossa surpresa, afirmam estarem no paraíso,
enfeitiçados pelo Rio de Janeiro onde passam férias. E então nos perguntamos:
que espécie de paraíso é esse, feito de sombras pesadas, sonhos em fuga, rostos
atravessados por más lembranças?
Lumet, conforme teremos mais e mais certeza ao longo do filme, limitou-se a
narrar uma trajetória rumo ao inferno: o que um grupo de pessoas precisa fazer
para lá chegar. Esse grupo de pessoas são os homens de uma mesma família: Andy,
seu irmão mais novo Hank (Ethan Hawke) e o pai Charles (Albert Finney). A
tragédia familiar de Antes que o Diabo Saiba que Você Está Morto será
levada justo ao extremo, sem meio-tom. O curioso, no entanto, é que o andamento
do filme retarda a queda mais acentuada. A energia vai sendo poupada, para ser
despejada numa estarrecedora seqüência de mortes nos minutos finais. A maior
parte da narrativa, que Lumet filma com a simplicidade de um teledrama, instala
uma lenta asfixia. A mise en scène dessa progressiva falta de oxigênio é
de uma lucidez assustadora, que nos prepara gradativamente para a cena final.
A despeito do constante acréscimo de fatores complicantes da intriga e do
drama, o plot deste filme é no fundo bastante simples, mesmo sua cadeia de
ações pode ser resumida em poucas palavras. Um roubo desastroso, uma família em
completa decadência, três gerações efetuando uma reprodução inelutável de
escolhas erradas. Lumet já tinha filmado isso antes, em um de seus melhores
filmes, Negócios de Família, mas agora ele torna tudo mais sombrio.
Havia um horizonte positivo nos roubos elegantes e na charmosa filosofia de
vida do personagem de Sean Connery, no filme de 1989, que nada nem ninguém em Antes
que O Diabo Saiba que Você Está Morto pode repetir. A salvaguarda moral do
patriarca da família também se perdeu. O que restou para o novo filme de Lumet
foi um mundo sem salvação.
Uma cena em particular reterritorializa a tragédia aqui em foco: no ambiente
lounge do apartamento em que Andy toma heroína, a câmera desliza de um cômodo a
outro até enquadrar o personagem em frente a uma janela panorâmica de onde se
vê o Empire State Building (único ícone nova-iorquino mostrado no filme, mesmo
assim através da janela, reforçando a predominância de interiores). Nesse momento,
Lumet inscreve seu drama familiar numa esfera de decadência mais ampla e
ambiciosa. O apartamento do jovem traficante oriental, melhor ilustração da
inteligência cenográfica do filme, é a locação chave, onde se condensa a grande
virada da narrativa: aquela atmosfera blasé e requintada deixa de ser o lugar
onde Andy tenta reconquistar sua paz perdida e vira palco de uma possessão
demoníaca, quando ele entra lá alucinado e atira gratuitamente no traficante e
num de seus clientes. Não é nada improvável que Andy tenha matado aquele homem
gordo, que dormia ali entorpecido, inofensivo, menos para eliminar possível
testemunha do que para exorcizar (inutilmente) uma projeção de si mesmo.
Andy passa o filme todo a sonhar com o paraíso, mas pensa que sua via de acesso
é o dinheiro, e este por sua vez é o grande agente diabólico da trama. A
angústia paralizante de Andy cresce à medida que sua ambição de paz e repouso
se torna distante, mítica, inalcançável. O ápice é quando sua mulher está
saindo de casa e ele fica estático, incapaz de reagir, sem ódio e sem amor. O
problema é que, para escapar do fracasso social e familiar, para escapar do
inferno e atingir o paraíso, ele havia corrido atrás do dinheiro e este, por
sua vez, havia participado da estrutura de fundação do mesmo inferno de que
queria fugir. Esse é o terrível paradoxo de Andy. Poucos filmes recentes
mostram um lado tão destruidor do dinheiro. Lumet, que sempre contestou a moral
frouxa da era corporativa (cf. Rede de Intrigas), retoma o assunto: o dinheiro, fonte de bem estar,
acesso ao paraíso, é também a boca do inferno. Mais do que uma tragédia
familiar, Antes que O Diabo Saiba que Você Está Morto é a tragédia de
toda uma sociedade fundada sobre o dinheiro.
As idas e vindas da história nada têm de truque narrativo. Pelo contrário: elas
tornam o filme mais enervante, mais desagradável. Cinqüenta anos atrás, em um
de seus filmes mais famosos, Doze Homens e uma Sentença, Lumet
concentrou toda a narrativa dentro da sala onde os membros do júri tentavam
chegar ao veredito e explorou: 1) pela decupagem, todos os ângulos possíveis do
espaço cênico; 2) pelos diálogos e confrontos verbais, todos os ângulos
possíveis da reconstrução do crime em julgamento. Assim como o personagem de
Henry Fonda no filme, Lumet sabe que a questão – condenar ou não um homem à
morte – só deve ser concluída uma vez esgotadas as hipóteses. Não podem restar
detalhes em aberto. Em Antes que O Diabo Saiba que Você Está Morto, um
efeito similar é alcançado, a montagem insiste em retornar aos mesmos
acontecimentos variando os pontos de vista. Lumet quer mostrar a tragédia de
todos os ângulos possíveis, até não restar dúvida de que o mal está feito.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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