CORPO
Rubens Rewald e Rossana Foglia, Brasil, 2008

É possível identificar em Corpo três frentes narrativas mais ou menos constituídas. A primeira delas se apresenta em toda uma rede de signos e jogos simbólicos de linguagem que recobre todo o filme, sempre surgindo como uma espécie de reflexo/analogia das situações experimentadas pelos corpos que vemos em cena – corpos que, por sua vez, constituem a motivação central do filme. A segunda frente, que talvez seja justamente a base de todo o filme, é a procura, pelos personagens, pela identidade de um cadáver misterioso que chega ao IML. A terceira, e esta talvez seja bem mais um potencial que um vetor narrativo plenamente desenvolvido, encontra-se na jornada de um homem enfadado com a vida que vê na história do cadáver não identificado – sem nenhuma razão aparente que não a mera curiosidade – uma chance para, se não transformar sua vida completamente, pelo menos abandonar sua rotina aborrecida de médico legista, voltando sua atenção para um objetivo temporário, algo a se tentar alcançar, perseguir. Três propostas conceituais habitando portanto o mesmo espaço narrativo, interagindo entre si e criando uma engrenagem flutuante movida a jogos de palavras recitados em off – que se servem dos jargões médicos do protagonista –, flashbacks, personagens misteriosos e uma atmosfera modorrenta no geral.

É curioso constatar como no fundo o filme de Rubens Rewald e Rossana Foglia talvez sofra de um mal comum a boa parte de uma certa produção cinematográfica contemporânea, uma dificuldade de aceitação, pelo filme, de seus personagens, sua história e as questões narrativas intrínsecas ao relacionamento entre essas duas partes. Pois é muito claro que Corpo possui uma história com início, meio e fim – como num manual de roteiro: proposição de um enigma, um drama que acompanha o protagonista na busca pela resolução do mesmo, e um final surpreendente. Como lidar com tudo isso? A resposta dos diretores foi fazer um filme pretensamente conceitual, narrativamente aberto – seja a intervenções do protagonista em off, seja a recursos de roteiro e direção, que se esforçam em criar cenas que reiterem a motivação central do filme (o corpo, objeto de fixação do protagonista, se reflete enquanto metáfora infinitamente, como em um jogo de espelhos). Fragmentada e ornamentada por versinhos pretensamente poéticos que metaforizam as situações mostradas, a linha narrativa básica do filme – a busca pela identidade do cadáver misterioso – perde sua força, e a luta de seu protagonista frente a sua rotina arrastada e aos novos acontecimentos que a transformam é varrida por um formalismo vazio, calcado em simbolismos que jamais se articulam, jamais vão além de seu próprio significado (o personagem se fere jogando paintball, cuida da mãe que se machuca após uma queda no banheiro, mas o que tudo isso verdadeiramente reforça ou acrescenta aqui?).

Talvez estejamos sendo injustos ao identificar na construção narrativa o grande problema do filme, pois mesmo no caso de assumir para si sua trama principal (a busca pela resolução de um enigma) como linha narrativa básica, Corpo teria ainda de enfrentar uma série de estereótipos urbanos – recorrentes num certo cinema brasileiro recente – francamente irritantes (a jovem maluquinha que vira ao avesso a rotina enfadada do sujeito de meia-idade solitário e desgastado, que vive em sintonia com a cidade grande). Vendo as coisas por aí, a busca pelos diretores em tentar se inserir num outro estatuto de produção da imagem – mais livre, aberto a tensões entre o som e o conteúdo visual – talvez não tenha sido uma escolha tão equivocada assim. O problema é o preço que se tem de pagar por essa liberdade – o preço do plano, da imagem, até mesmo do corte. E esse valor, Rubens Rewald e Rossana Foglia se mostram completamente incapazes de atingir, empilhando signos e metáforas que em nada nos ajudam a compreender aqueles seres como outra coisa que não meros objetos corpóreos.

Calac Nogueira