É possível identificar em Corpo
três frentes narrativas mais ou menos constituídas.
A primeira delas se apresenta em toda uma rede de signos
e jogos simbólicos de linguagem que recobre todo o filme,
sempre surgindo como uma espécie de reflexo/analogia
das situações experimentadas pelos corpos que vemos
em cena – corpos que, por sua vez, constituem a motivação
central do filme. A segunda frente, que talvez seja
justamente a base de todo o filme, é a procura, pelos
personagens, pela identidade de um cadáver misterioso
que chega ao IML. A terceira, e esta talvez seja bem
mais um potencial que um vetor narrativo plenamente
desenvolvido, encontra-se na jornada de um homem enfadado
com a vida que vê na história do cadáver não identificado
– sem nenhuma razão aparente que não a mera curiosidade
– uma chance para, se não transformar sua vida completamente,
pelo menos abandonar sua rotina aborrecida de médico
legista, voltando sua atenção para um objetivo temporário,
algo a se tentar alcançar, perseguir. Três propostas
conceituais habitando portanto o mesmo espaço narrativo,
interagindo entre si e criando uma engrenagem flutuante
movida a jogos de palavras recitados em off –
que se servem dos jargões médicos do protagonista –,
flashbacks, personagens misteriosos e uma atmosfera
modorrenta no geral.
É curioso constatar como no fundo o filme de Rubens
Rewald e Rossana Foglia talvez sofra de um mal comum
a boa parte de uma certa produção cinematográfica contemporânea,
uma dificuldade de aceitação, pelo filme, de seus personagens,
sua história e as questões narrativas intrínsecas ao
relacionamento entre essas duas partes. Pois é muito
claro que Corpo
possui uma história com início, meio e fim – como num
manual de roteiro: proposição de um enigma, um drama
que acompanha o protagonista na busca pela resolução
do mesmo, e um final surpreendente. Como lidar com tudo
isso? A resposta dos diretores foi fazer um filme pretensamente
conceitual, narrativamente aberto – seja a intervenções
do protagonista em off, seja a recursos de roteiro e
direção, que se esforçam em criar cenas que reiterem
a motivação central do filme (o corpo, objeto de fixação
do protagonista, se reflete enquanto metáfora infinitamente,
como em um jogo de espelhos). Fragmentada e ornamentada
por versinhos pretensamente poéticos que metaforizam
as situações mostradas, a linha narrativa básica do
filme – a busca pela identidade do cadáver misterioso
– perde sua força, e a luta de seu protagonista frente
a sua rotina arrastada e aos novos acontecimentos que
a transformam é varrida por um formalismo vazio, calcado
em simbolismos que jamais se articulam, jamais vão além
de seu próprio significado (o personagem se fere jogando
paintball, cuida da mãe que se machuca após uma queda
no banheiro, mas o que tudo isso verdadeiramente reforça
ou acrescenta aqui?).
Talvez estejamos sendo injustos ao identificar na construção
narrativa o grande problema do filme, pois mesmo no
caso de assumir para si sua trama principal (a busca
pela resolução de um enigma) como linha narrativa básica,
Corpo teria
ainda de enfrentar uma série de estereótipos urbanos
– recorrentes num certo cinema brasileiro recente –
francamente irritantes (a jovem maluquinha que vira
ao avesso a rotina enfadada do sujeito de meia-idade
solitário e desgastado, que vive em sintonia com a cidade
grande). Vendo as coisas por aí, a busca pelos diretores
em tentar se inserir num outro estatuto de produção
da imagem – mais livre, aberto a tensões entre o som
e o conteúdo visual – talvez não tenha sido uma escolha
tão equivocada assim. O problema é o preço que se tem
de pagar por essa liberdade – o preço do plano, da imagem,
até mesmo do corte. E esse valor, Rubens Rewald e Rossana
Foglia se mostram completamente incapazes de atingir,
empilhando signos e metáforas que em nada nos ajudam
a compreender aqueles seres como outra coisa que não
meros objetos corpóreos.
Calac Nogueira
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