Um homem conhece uma mulher e para conquistá-la precisa tornar-se, ou pelo
menos aparentar-se, mais rico do que as possibilidades de sua família lhe
permitem. Seu irmão, um mecânico de automóveis, vive as inconstâncias da vida
de um jogador obsessivo que, entre ganhos e perdas, acaba endividado. O
primeiro homem é Ian, e sua garota, Angela, é uma atriz que sonha com maiores
oportunidades do que as oferecidas pelo teatro onde está atualmente em cartaz,
algo que Ian promete realizar assim que fechar um “grande negócio de hotéis na
Califórnia”, para onde os dois supostamente irão em seguida e onde Angela será
apresentada a pessoas importantes de Hollywood. Mas para que o sonho – ou a
ilusão – torne-se realidade, Ian precisará de mais dinheiro do por ora possui
em mãos, como também precisará seu irmão, Terry, cujas dívidas contraídas junto
a agiotas dificilmente serão quitadas com a renda oriunda de seu emprego em uma
oficina. Atados a sua condição social, os dois irmãos vêem na chegada de um tio
bem-sucedido à cidade a possibilidade de melhorarem de vida através de alguns
empréstimos familiares.
Estão arquitetadas aqui as relações com que Woody Allen trabalhará ao longo de O sonho de Cassandra. É partindo deste
universo marcado por questões materiais e financeiras que o diretor dará forma
a sua história, segundo um pressuposto básico: classe aqui quer dizer
impossibilidade de meios, limitação física para se alcançar um objetivo – o
amor de um lado e o pagamento de dívidas do outro. E é com esses limites
físicos, limites de sua condição material, que os personagens jogarão ao longo do
filme. Não por acaso a imensa maioria dos diálogos e situações aqui presentes
giram em torno exatamente de questões financeiras, e se isso não chega a chamar
atenção, é por um motivo muito simples: o verdadeiro foco de Allen aqui não é a
condição financeira dos personagens em si, mas a forma como eles reagem a ela. É
quando a física a que estas figuras estão submetidas, a física das
possibilidades materiais, se desdobra numa outra, de ação e reação. Centrar-se
na condição material dos personagens é sobretudo uma forma de concentrar
energia, que será necessária nos choques que acompanham os desdobramentos
dramáticos da trama.
Chega a ser assustador, para quem se acostumou às reviravoltas narrativas do
cinema contemporâneo, observar a simplicidade com que Allen fabrica situações,
encontros prosaicos, tecendo relações a partir daí. Numa estrada que liga
Londres a um balneário campestre, Ian conhece Angela, que tem problemas
mecânicos com o carro. Ian pára para ajudá-la, e a relação está feita. Alguns
minutos ou seqüências mais tarde, os dois estarão apaixonados – ou serão
amantes, no mínimo – e Ian terá de enfrentar os dilemas que se impõem junto com
sua condição financeira. O amor é um dado, que deve ser deixado para ser
destrinchado pelos filmes de amor. Como são dados também as próprias condições
familiares e de classe – deixemos este objeto de estudo para os filmes
políticos. Não há estudo de caso, mas apenas um constante articular de dados fechados
em si mesmos, impenetráveis, dispostos narrativamente de forma a arquitetar
relações. Se há um objeto a ser estudado em O
sonho de Cassandra, este objeto é a própria arte narrativa, que é o
verdadeiro motor do filme – daí as próprias referências feitas aqui às
tragédias gregas clássicas, que claramente servem de inspiração para o filme.
É óbvio que tudo isso perpassa um processo de construção de mise-en-scène: Allen trabalha com uma
espécie de mise-en-scène blindada, de
planos bem recortados, curtos, impenetráveis à polissemia subjetiva das imagens
– aspectos duplamente reforçados pela trilha sonora marcante. Esse rigor na
direção é curioso porque contrasta justamente com aquilo que o cinema de Allen
sempre foi, um cinema excessivamente lacunado, aberto a intervenções diretas da
persona do autor-personagem Allen sobre a realidade diegética dos filmes – os
filmes de Allen sempre soaram como uma forma de auto-propaganda antes de
qualquer outra coisa, mesmo quando o diretor se abstinha da aparição física. Match Point já apontava de alguma forma,
através dos recursos de direção, o caminho de exceção que seria efetivamente
trilhado por Cassandra, mas a própria
moral que fundava toda a história já entregava um traço tipicamente allieniano.
Era a forma de o filme respirar, algo que se refletia até mesmo na solução
visual encontrada para retomar esta moral no trecho final.
Em O sonho de Cassandra esse respiro
não existe. A busca pela “arte narrativa” se impõe a tudo: psicologia dos personagens,
traços de caráter, eventuais visões de mundo e das relações humanas. Os
personagens apenas são alguma coisa quando postos de frente a alguma situação.
O vigor do filme está neste método, e não é à toa que sua maior baixa está justamente
no exagero da caracterização que o personagem de Colin Farrel, Terry, recebe
após o assassinato – é justamente quando o filme tem de lidar com uma condição
psicológica sem uma causa imediata (de outra forma, digamos que o assassinato,
enquanto causa, explica mas não justifica em termos estéticos a perturbação do
personagem). No mais, O sonho de
Cassandra segue bem, eficiente enquanto um projeto estético rigoroso que
Allen constrói com uma admirável segurança na direção, mesmo saindo de seu
universo pessoal.
Calac Nogueira
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