Um Beijo Roubado é, em
essência, um filme “pós”. Pós a consagração de um estilo, pós a absorção de uma
individualidade autoral pelo mercado, pós a exploração profunda de um universo
temático. Após assistir a 2046, de fato nos perguntamos: o que Wong
Kar-wai fará depois deste filme? 2046 trazia em si uma aura de fim de ciclo,
uma grandiosidade operística catártica desejosa de abranger o máximo de tudo o que
ela se dispunha a trabalhar: o máximo do sentimentalismo, o máximo das cores, o
máximo do enquadramento virtuosístico, o máximo do fetichismo do olhar
apaixonado, o máximo do trabalho dos atores, e por aí vai. Vem então a pergunta
já colocada certa vez por nosso Ruy Gardnier em forma de artigo: o que fazer
após a perfeição atingida?
Para Wong, a resposta pareceu
antecipar-se através de um contrato para realizar três filmes nos Estados
Unidos. Outro cenário, outros tipos humanos. Mas o nome Wong Kar-wai já havia
se tornado uma marca. E talvez o realizador por trás dela tenha se tornado por
demais refém do consumo de signos que afeta de forma um tanto violenta a
produção audiovisual. De uma forma ou de outra, o que vemos em Um Beijo
Roubado é um autor tentando lidar com o peso de sua própria obra no
imaginário cinéfilo e com a carga “mercadológica” adquirida à sua revelia por
sua estética imponente.
E talvez ele não tenha se saído tão
mal assim. Instalando-se nesta nova paisagem cultural que é o EUA, Wong escolhe
re-editar seus próprios clichês, agora com outros atores e outra língua. O
mundo continua o mesmo: encontros e desencontros, afetos e desafetos,
felicidades e tristezas, perdidos na aceleração cotidiana da cidade. E
estranhamente “o mesmo”: personagens trabalhando em lanchonetes e bares, que em
sua vivência diária testemunham fatos marcantes de relacionamentos alheios, como
em Felizes Juntos ou Amores Expressos; o jogo como triste
escapismo e metáfora para o acaso que rege a vida, como em Amor à Flor da
Pele e 2046; medidas numéricas de tempo e espaço como ironia em
relação à completa abstração dos sentimentos, como em Amores Expressos e 2046, e por aí vai.
Mas onde estaria o sentido de
repertoriar a si mesmo, se não apenas na criação de um objeto vendável portando
uma marca? A resposta está na própria forma como Wong trabalha a visualidade de Um Beijo Roubado: a obstrução do da visão do objeto em diversos planos, para
além do desenquadramento e dos ângulos voyeurísticos (que marcam o magnífico
trabalho com o cinemascope de 2046); a multiplicação injustificada das distorções
de movimento pela câmera lenta e pela alteração da velocidade do obturador; a
exacerbação do fetichismo ao ponto do esvaziamento de sentido, tanto materialmente,
com as chaves e a torta, quanto visualmente, com os signos urbanos saturados de
cores e formas. Tudo isto parece apontar para um auto-questionamento do
registro estilizado. Não à toa somos surpreendidos pela súbita revelação de que
o ângulo em contra-plongée da lanchonete de Jude Law é o “ponto de vista” de
uma câmera. Uma câmera com defeito, que altera instavelmente as cores como se
aplicasse filtros à imagem. Não, não se trata de uma câmera de vigilância no
sentido a que estamos acostumados (já que ela não pode impedir nem prevenir
roubos ou brigas), mas de uma câmera de “vigilância afetiva”, que registra tudo
para garantir que gestos e rostos escolhidos possam ser re-vistos. Mas como tudo
em Wong carrega a marca do tempo, a medida do desejo de revisão é a do
apagamento: depois de muito assistir a uma fita, ela vai perdendo a imagem, até
restarem apenas borrões e chuviscos.
E não seria Um Beijo Roubado um filme de diluição da imagem no sentido contrário ao de 2046, que era
o da abstração progressiva? Diluição por saturação barroca. Na América saturada
de signos e de produtos, em que a alma volta-se invariavelmente para o consumo,
os sentimentos parecem um pouco fora de lugar, tornam-se adereços de espaços e
ambientes característicos e bens equivalentes a carros. Resta então à crônica
sentimental perder seus traços de originalidade do acontecimento e se dedicar à
apresentação das coisas. A estética se divorcia do intuito narrativo; desvia-se
da tradução de situações emotivas para uma pura intensificação dos efeitos. O
resultado é um filme em que os relacionamentos ocupam ainda um lugar central,
mas mais como dado a ser levado em conta do que como intensidade de momentos e
interações. E os malabarismos visuais roubam a cena e afirmam sua primazia.
Em suma, Um Beijo Roubado é
um filme de plástico, no que isto tem de positivo e de negativo. Ao mesmo tempo
em que assistimos a um verdadeiro pot-pourri bem embalado do repertório do
autor, em que o real sentido das coisas foi esvaziado, temos a impressão de que
Wong tentou (talvez com um quê de ironia) transformar seu estilo em gênero,
para melhor lidar com o universo americano e com sua nova posição no mercado
cinematográfico. Tudo se encontra mais leve e mais palatável, a tristeza e a
agressividade das pessoas estão aliviadas, a distância é mais um elemento de
jogo do que uma inevitabilidade da vida, as pessoas vão e vêm sem muita dor, o
beijo tem mais valor de celebração do que de contrato afetivo, e um final feliz
aguarda os personagens ao fim da projeção...
Tatiana Monassa
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