A melhor metáfora para definir 2 dias em Paris talvez
encontre-se na própria relação que seus personagens estabelecem com o espaço que
os cerca, idéia que fica clara logo no prólogo de abertura, em que vemos o
casal de protagonistas do filme dormir em um trem em movimento enquanto Julie
Delpy, atriz/diretora/personagem?, apresenta em voice over um breve
resumo do que precedeu a ida dos dois a seu lugar-destino, Paris: um passeio
turístico em Veneza, narrado em rápidos flashes de fotografias estáticas que
ilustram ao pé da letra o que é dito pela personagem em off – “vimos palácios, vaporettos, expressos”, diz ela, para então concluir entre mais uma
ou outra citação: “Isto é a Itália”. Desde já, portanto, uma opção por definir
o espaço ao invés de acompanhá-lo, uma lógica que será tomada como regra pelo
filme como um todo, não ficando restrita apenas à representação do espaço, mas
sendo ampliada aos próprios personagens e suas formas de relacionamento.
De Veneza a Paris, portanto, onde o filme finalmente começa,
já com uma duração previamente delimitada, desde o título. Por dois dias
acompanharemos Jack (Adam Goldberg) e Marion (Delpy), tempo exato da estadia do
casal na cidade. Ele é americano, e ela, francesa, natural de Paris. É a partir
desses dados que o filme trabalhará, em diversos níveis, relações entre os
indivíduos, o espaço e as culturas que a que estão respectivamente ligados.
Tudo por meio de modelos de representação previamente estabelecidos, o que não
deixa de ser coerente com o próprio contexto presente no filme, pois se o tempo
é exíguo para Jack e Marion – dois “cidadãos do mundo”, tão beneficiários
quanto vítimas da globalização – o que esperar do breve contato que travarão
aqui com a capital francesa? Em primeiro lugar, fotografias, dados visuais que
sintetizem o espaço vivo – pois se não há tempo para se relacionar com o
espaço, tratemos de nos relacionar com as imagens guardadas na câmera (como
acontece com aquelas referentes a Veneza, apresentadas no início do filme). Em
segundo, falsas impressões sobre a cultura local – traduzida aqui numa suposta
forma “tipicamente francesa” de se lidar com a sexualidade.
De diversas formas, consciente ou inconscientemente, 2
dias em Paris bate nesta mesma tecla, de uma nova forma de relacionar-se no
mundo contemporâneo – relacionar-se com as cidades, com os espaços, com os
outros homens. Um mundo fluido, virtualizado, marcado por relacionamentos que
atravessam e por vezes até mesmo se encerram em imagens. No final das contas, toda a leviandade com que Julie Delpy aborda aspectos de
determinadas nacionalidades (americana e francesa), todos os clichês desagradáveis
com que o filme se propõe a trabalhar, talvez possam estar justificados por uma
perspectiva mais ampla, voltada para a condição do olhar do homem
contemporâneo, que prioriza as impressões em detrimento do conhecimento. Por que
do que trata, afinal, o filme em seu texto mais básico? Qual a lição? Jack e
Marion chegam, ao final, à conclusão de que simplesmente não se conhecem, que
vivem há dois anos se relacionando com imagens no lugar da pessoa que acreditam
estar ali, tanto de um lado quanto do outro.
Mas quem são Jack e Marion, afinal? Quem eram e quem passam
a ser após concluída a discussão de identidade que o filme propõe? Este é um
dado que permanece incógnito, mesmo quando a voz em off de Julie Delpy –
ou, “para todos os efeitos”, de Marion – retorna novamente à narrativa,
suspendendo o diálogo num momento decisivo de tensão entre o casal, no clímax
conclusivo do filme. Na banda de imagem, os personagens discutem, brigam,
extravasam em gestos suas angústias sem que, contudo, possamos ouvir o que
dizem, pois ouvimos apenas a voz da narradora em off, que calmamente
estabelece contato conosco, procurando definir um estado de coisas referente
àquela situação. O que à primeira vista soa simplesmente como um uso covarde de
dispositivo – em que a potencialidade corpórea dos personagens é negada em
favor da conclusão moral, extraída de relações e conflitos simplificados,
verbalmente organizados pela narradora – talvez esteja associado, na verdade, a
uma dificuldade bem mais profunda do filme: como desencadear uma discussão
partindo de personagens precariamente desenvolvidos, sustentados por clichês
que sequer se inserem em seu campo de intimidade individual?
Ora, não conhecemos Jack e Marion – assim como eles não se
conhecem – simplesmente porque esses personagens não existem, porque não são
mais do que fruto de uma compilação de clichês dispostos de forma a arquitetar
supostas relações culturais que envolvam americanos e franceses. Em outras
palavras, a existência dos personagens criados por Delpy parece estar
justificada apenas por aquilo que eles são em relação a determinados aspectos
culturais que procuram representar, seja endossando-os diretamente
(corporificando-os, como Marion personifica a idéia da libertinagem francesa),
seja fixando seus limites na figura do outro, como acontece com determinados
“traços” culturais que ficam restritos a personagens coadjuvantes, como os
taxistas franceses e os turistas americanos. Não é de se espantar então que
tenha sido difícil para a diretora lidar com seu clímax narrativo, que é
justamente o momento em que os personagens se encontram e conflitam diretamente,
a despeito de tudo aquilo que até então vinham representando. Sua existência
simbólica, voltada para uma apresentação pretensamente divertida do clichê, não
é mais suficiente. Delpy se vê às voltas com dois corpos que dividem o mesmo
espaço e que de alguma forma precisam se expressar, como um verdadeiro casal de
namorados que após uma briga por algum motivo qualquer procura esclarecer suas
emoções e sentimentos. O artifício do voice over representa então uma
fuga deste mundo físico, em que os personagens precisam relacionar-se por si
mesmos, sem mediadores simbólicos. É a necessidade do filme em se resolver num
campo conceitual, de idéias, nem que para isso se tenha que substituir a
expressividade de seus próprios personagens pelo discurso organizado, sintético,
voltado para a construção moral.
Calac Nogueira
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