No país dos mortos-vivos:
é lá que Tim Burton e os irmãos Coen
sempre gostaram de situar seus filmes. Sweeney Todd e Onde os Fracos Não Têm Vez trazem poucas
novidades em relação a isso. Salvo o fato de que acabou
a graça. Penúltima cena de Onde
os Fracos Não Têm Vez: Chigurh (Javier Bardem) bate de carro e tem uma fratura exposta no antebraço,
dois garotos param de bicicleta, oferecem ajuda, ele
pede a blusa de um deles para improvisar uma tipóia.
Cena análoga ocorrera no meio do filme com o ingênuo
Llewelyn (Josh
Brolin), que pediu emprestada a blusa de um rapaz e este lhe
cobrou dinheiro. Na cena com Chigurh,
diferentemente, o garoto reluta em aceitar dinheiro
e diz que não se importa em ajudá-lo sem receber nada
em
troca. Embora sintetize uma volta completa
no circuito de maldade que conecta os homens (quem não
participa desse circuito – seja caçador ou presa –,
como o xerife, está condenado ao anacronismo, à incompreensão
e, pior de tudo, à inação), essa cena seria a típica
situação que provoca riso nos Coen. Seria aquela conhecida arte de auguras e de ironias,
por meio da qual eles nos convidam a rir da crueldade
do destino.
Mas agora não tem graça nenhuma. É assustador, é violento
– como quase tudo em Onde os Fracos Não Têm
Vez, filme raivoso como nenhum outro dos Coen.
O humor negro, o alívio cômico foi revisado, adquirindo
um tom inesperado, incômodo. É um filme sobre o Mal
e sua manifestação sistêmica, e eles não mais nos instalam
numa torre de marfim onde tudo está à vista e nada pode
nos atingir. Certas coisas não estão mais à vista, certas
outras já nos atingiram.
Em
Sweeney Todd, a raiva também
reina, porém de forma distinta. O barbeiro interpretado
por Johnny Depp retorna a Londres para se vingar, e sua cólera é incomensurável,
tão imensa que termina por cegá-lo aos fatos. Novamente
o elemento cômico está deslocado: as pessoas se deliciam
com bolos de carne humana, o alçapão pelo qual o barbeiro
se livra dos corpos de seus clientes é uma daquelas
engenhocas de parque de diversão macabro que Burton
tanto preza. Mas não há lugar para alívio cômico em
meio a um ressentimento tão brutal. Nada de efeito-Kill Bill no sangue que esguicha exageradamente das
jugulares cortadas, a violência gráfica (a expressão
pode inclusive ser equívoca) em
Sweeney Todd
é um condutor de ódio represado, que sai na pressão,
esguicha de uma vez por todas.
No fundo, mesmo nos filmes mais tresloucados (um Beetle juice, para Burton, um O Grande Lebowski,
para os Coen), esse país morto-vivente
escondia, sob o riso – mais ou menos sarcástico, dependendo
do filme –, a ansiedade mórbida que o animava. Essa
ansiedade é provocada por alguma coisa que retorna –
da literatura (americana ou inglesa), do desenho animado,
do filme B. O exagero do traço na construção de personagens
e situações pitorescos reflete o período em que esse
desejo de ficção ficou incubado, recalcado. O desencanto
derrisório é só uma conseqüência natural. Com que máscara
retorna o recalcado? Michael Jackson disfarçado de Willy Wonka, Benjamin
Barker disfarçado de Sweeney
Todd.
Há também algo mais distante que retorna. O lugar
central do cinema de Burton é desnudado em
Sweeney Todd:
um desejo profundo de reanimar o mundo romanesco do
século XIX, mais precisamente a Inglaterra vitoriana,
de Charles Dickens e dos estripadores. E de levar esse mundo, assim como a Disney e
a Broadway, ao encontro do pós-punk e dos visuais góticos
que lhe sucederam. Ele já tinha feito de Gotham
City o receptáculo desse universo, mas agora o projeto
parece mais apropriado. A Londres putrefata de Sweeney Todd é o Holocausto
do cinema de Burton. Seus clowns
são o flashback post-morten de uma cultura
européia sem nostalgia e sem seguidores, principalmente
no cinema, cada vez menos afeito ao romanesco, à tragédia,
ao herói.
Animar, ou reanimar: gesto que funda e define a obra
de Tim Burton. Sua dramaturgia está intrinsecamente
ligada a uma técnica de animação. Primeiro porque ele
se dedica a aplicar, a cada quadro, a cada plano, um
novo traço, um novo tique, um novo detalhe que incrementa
a caracterização do personagem (e do cenário, dos objetos
etc). Segundo porque sua orientação
criadora consiste em dar espessura aos fantasmas, carne
aos cadáveres. Alma aos inanimados. Todos os filmes
de Burton são animações no sentido em que ele acrescenta
uma qualidade de presença e movimento a quadros compostos
na inércia. Seus personagens são imagens fixas que devem
ser animadas – a mise en scène adquire,
mais que nunca, um sentido de dar vida a algo ou a alguém.
Com isso ele instaura a dúvida: os seres animados que
vemos estão mesmo vivos?
Assim como os irmãos Coen,
Tim Burton é um cineasta do retrato.
As principais aspirações de Sweeney Todd se definem
em torno do retrato grisalho, cadavérico, que Burton
compõe a partir de seus atores-fetiche, Johnny Depp
e Helena Bonham Carter. É, aliás, perfeitamente normal que um cineasta
do retrato tenha atores-fetiche: ele quer acompanhar
cada mudança, cada novo sinal no rosto. Em
Sweeney Todd,
o que está em causa é fazer morrer o homem que existe
em cada personagem, retirar a alma que dera movimento
ao quadro estático. Em outras palavras: retornar ao
desenho, para encontrar o retrato em estado puro, essencial.
Os cineastas do retrato privilegiam a arte da descrição
sobre a idéia de narrativa. O que lhes interessa, acima
de tudo, é uma maneira de descrever e aprimorar as figuras.
Mais do que a ação, eles devem sublinhar a máscara,
os jogos de aparência, os detalhes de vestimenta, os
maneirismos do personagem. Nessa perspectiva, Onde
os Fracos Não Têm Vez fornece uma excelente questão,
pois há uma considerável seqüência de fatos, há um road movie e um filme
de ação. Mas o filme é perfeitamente estático. O desenho
prevalece sobre a dinâmica narrativa. A trama de Onde
os Fracos Não Têm Vez, surpreendentemente simplificada
em relação às tramas habituais dos irmãos Coen,
conflui para o vazio, uma narrativa que apaga as pistas
que ela mesma deixou. Esse vazio, curiosamente, revela
o vazio do jogo narrativo quando entregue a si mesmo,
e serve de comentário sobre o vazio anterior, que parasitava
os filmes recentes dos Coen. O cinema deles vinha sendo criticado, entre outras coisas,
por renunciar a proposições fortes de escritura em favor
de artimanhas de roteiro, gags
maneiristas, virtuosismos estéreis. Eles agora se livram
do joguete de roteiro e se concentram na mise en scène. O resultado
é tão melhor quanto mais conciso, seco.
Burton e os Coen partilham
uma anarquia cartoonesca que, de Tex Avery a Blake Edwards
e Joe Dante, sempre arremessou
o cinema à saturação, à profusão, à desregulação
do mundo. O fato se torna mais notável se lembrarmos
que tanto os Coen quanto Burton começaram numa
década, a de 80, assombrada pelo reverso dos hiper-espetáculos
da era Spielberg/Lucas, ou seja, o pânico do vazio,
da lentidão e da imobilidade da imagem. Eles começaram
lá e souberam combater esse pânico através de nada menos
que a loucura, o caos. Mas chegaram agora num ponto
em que suas criaturas fogem ao controle (Sweeney
Todd e Chigurh
estão agindo totalmente além dos limites, como marionetes
que cortaram os fios que as ligavam a seus criadores/manipuladores).
É realmente uma questão de crise de espaço (e de fronteiras)
para um determinado tipo de personagem, como diz o título
do filme dos irmãos Coen.
De um lado, há um desacordo e uma defasagem entre figura
e fundo, e mesmo entre figura e contorno: um dilema
figurativo que pode ser enunciado como “fazer parte
ou não do quadro” (isso se coloca mais para Onde os Fracos Não Têm Vez e tem a ver com toda uma história do espaço
no cinema americano, sobretudo o espaço mitológico do
western). Do outro
lado, há uma cor transbordando os contornos das figuras,
não cabendo nos desenhos, escorrendo para fora da moldura
do retrato, como o sangue abundante que vaza ou esguicha
dos corpos em algumas cenas de Sweeney Todd e Onde os Fracos Não Têm Vez construídas sobre uma violência não atenuada, não estancada.
Ou como o osso escapulindo do braço de Chigurh:
o envelope da figura se rasga.
Seria uma separação violenta entre o corpo e sua imagem?
Seria a cor pedindo vingança? A imagem se emancipando
do corpo, já que não pode se emancipar do clichê?
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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