CARTA DE UM DESCONHECIDO
Retrospectiva Manoel de Oliveira/ A situação da crítica de cinema nos Estados Unidos

Saudações de Nova York, cuja população acaba de pegar aquela rara, mas intoxicante, febre de Manoel de Oliveira. A única cura? Mais Oliveira. E eu devo pegá-la também – este fim de semana trará exibições de Vou Para Casa e Inquietude, entre outros, para encerrar a incrível retrospectiva de um mês inteiro na Brooklyn Academy of Music. Mas antes que eu mergulhe mais fundo no trabalho do mestre português, imagino que devo me apresentar primeiro.

Sou R. Emmet Sweeney, um nomezinho pretensioso decidido durante minha breve passagem pela New York University, onde obtive um pedaço de papel incrivelmente caro que diz que recebi um diploma de mestrado em Estudos de Cinema. Eu imagino que recebi, mas a maior parte do meu aprendizado veio das discussões pós-sessão com amigos apaixonados e visões na madrugada de alguns noir empoeirados (Moeda Falsa, talvez?) no maior tesouro cultural da América: o canal a cabo Turner Classic Movies. Os professores estudados ajudaram, claro, mas as imagens de John Alton ficaram zunindo pela minha cabeça por muito mais tempo que qualquer aula.

Consegui transformar aquele zunido numa carreira, fazendo freelances para algumas boas revistas e ganhando o bastante para pagar as contas mais urgentes (gasolina é barata). Mas a vontade de escrever, e dividir meu entusiasmo por trabalhos que considero ignorados (as obras selecionadas de Jason Statham) ou pouco vistas (tudo feito por Johnny To) geralmente excedia os limites daquilo que eu conseguiria que publicassem. E é por isso que aceitei prontamente a oferta do sábio Luiz Carlos Oliveira para escrever uma coluna semi-regular, reportando a cena de cinema em NY. Há uma quantidade avassaladora de películas que se revelam por aqui todo dia, portanto meu recorte será seletivo e idiossincrático... o que me leva de volta à Manoel.

Até agora já assisti seis de seus longas-metragens, mas dois se destacam sobre o resto, e cimentariam seu status de mestre: Amor de Perdição (1978) e Francisca (1981). Um reflete e informa o outro, e estabelecem uma série de códigos narrativos com os quais Oliveira jogará e que desconstruirá pelo resto de sua carreira. A chave é a palavra falada e como ela guia a narrativa. Amor é contado através de vozes em off que duelam, uma é masculina e expositiva, outra é feminina e poética. Neste filme, a palavra guia a ação ao invés do contrário. O estilo de atuação preferido por Oliveira é performático e abertamente teatral, uma vez que faz com que seus atores muitas vezes falem diretamente para a câmera, destruindo qualquer idéia de "suspensão da descrença". Seus filmes são sobre interrogar a construção de histórias no momento em que elas ainda cedem a seu encanto. Amor de Perdição é um caso arquetípico dessa auto-reflexividade ainda produzindo um forte golpe de emoção. Nele, os dois amantes destinados, Simão e Teresa, são continuamente separados por forças que escapam de seus controles - principalmente seus vingativos pais. Neste trabalho de 4 horas e meia, feito para a tevê, Oliveira destila a paixão do casal através das vozes em off, que descrevem ações que nunca vemos, e evocam emoções que os atores (e Oliveira) se recusam a encenar para a câmera. Elas requerem o trabalho do espectador.

Se Amor de Perdição é sobre o amor purificado pela separação e santificado pela morte, Francisca fala de um amor envenenado pela decadência, disposto desta forma depois que o Brasil alcança sua independência, e a aristocracia portuguesa mergulha em vaidade e auto-destruição. José Augusto é o torturado protagonista, propenso a olhares vagos em direção a câmera, acompanhando-o, sarcasticamente e em ironia distante, o escritor Camilo Castelo Branco (cujos últimos dias foram lindamente retratados no subestimado O Dia do Desespero, de 1992). Apaixonando-se como uma espécie de jogo, José experimenta os impulsos do desejo até que eles o derrubem definitivamente. O elemento-chave da trama, sem surpresas, é uma carta. Em Oliveira, as palavras matam mais que as ações.

Em resumo, esta mostra tem sido uma revelação, bem como um revigorante aviso a respeito do quanto segue não-visto em terras americanas. Esta é a primeira grande retrospectiva de Oliveira no país, e isso para um sujeito que vem realizando um trabalho essencial há, o quê, 70 anos, agora? O que manteve seu nome vivo nos círculos cinéfilos aqui foi o trabalho diligente de críticos como Jonathan Rosenbaum, que quase por conta própria trouxe seu nome à alguma medida de reconhecimento para o cenário da cinefilia.

O que me leva ao assunto da siuação da crítica de cinema aqui nos Estados Unidos, que é calamitosa. Nas últimas três semanas, três grandes críticos de cinema de NY (Jan Stuart, Gene Seymour e Nathan Lee) se aposentaram ou foram demitidos, expandindo uma tendência das publicações impressas ao redor do país. O crítico de cinema local é uma espécie em extinção, com a compra de textos via agências e a contratação de freelancers sendo tão mais baratas. Estamos testemunhando o fim de uma era, e o incerto começo de uma nova, com a internet trazendo um coral de vozes apaixonadas, como a minha, mas derrubando os valores dos salários ao longo do processo. Como o escritor Matthew Zoller Seitz diz em seu blog The House Next Door, nós estamos chegando ao ponto em que a crítica de cinema se tornará mais uma devoção que um trabalho - cujo benefício maior é justamente a diversidade de vozes, e as negativas são, bem, a falta de seguro de saúde. Boa parte das discussões interessantes em torno deste assunto estão se dando, sem surpresas, nos blogs. Eu direcionaria as pessoas ao já mencionado House Next Door, mas também ao site de Dave Kehr, onde cinéfilos meros mortais, como eu, podem entrar em arranca-rabos nos comentários com profissionais como Rosenbaum e Kent Jones. O futuro é brilhante. Só exigirá uma fonte de renda secundária.

Até a próxima!

R. Emmet Sweeney
(tradução do inglês por Rodrigo de Oliveira)

 

 






Francisca (Manoel de Oliveira, 1981)