Ao vermos a trajetória artística de Alejandro Jodorowsky
desde a sua estréia no cinema com Fando e Lis (1967) à realização da
obra prima A Montanha Sagrada (1973), nos deparamos de súbito com um
cineasta extremamente singular e original. Se essas características atribuídas
ao realizador já são possíveis de serem detectadas quando pensamos nos seus
filmes de maneira prioritariamente estética e formal, ou seja, excluídos de
qualquer aproximação com o seu entorno cultural-histórico-social, elas se
ampliam se por ventura levamos em consideração o contexto nacional e
continental em que suas obras foram realizadas. Jodo foi tido como muito
“vanguardista” para o cinema mexicano e muito “colonizado” e alienado” para o
latino-americano. E a maior parte da crítica internacional o viu como um
cineasta estranho e raro. E, é preciso ressaltar, a principal razão que motivou
essa percepção não foi o seu radical experimentalismo estético ou sua predileção
por imagens-choque, e sim o seu esoterismo. A pretensão, assumida por Jodo, de
fazer um cinema essencialmente sagrado, não foi percebida com bons olhos. O
autor almejava converter a experiência cinematográfica em uma experiência
religiosa grandiosamente transformadora. O seu desejo era que os seus filmes
fossem uma verdadeira fonte de iluminação para o público. Se era normal admitir
a escritura de livros sagrados como os evangelhos, o Sutra, o Al Corão, porque
não poderia haver um filme sagrado? O cinema não era uma forma de expressão inferior
a literatura ou a linguagem escrita, portanto, se é possível alcançar o divino
pelo intermédio das palavras, também podemos fazer o mesmo através das imagens.
Essa postura adotada por Jodo o fez prosseguir em seu empreendimento de sentir
o cinema como um veículo de busca e pesquisa rumo ao autoconhecimento e à
iluminação.
Mas, para alcançar a sua meta de realizar um cinema sagrado,
Jodorowsky foi atrás de diversas fontes místicas e artísticas. Se Fando e
Lis, ao ser comparado a El Topo (1969) e a A Montanha Sagrada pode nos parecer menos místico e mais vinculado a tradições artísticas (o surrealismo,
o Teatro da Crueldade de Antonin Artaud, o teatro do absurdo, o happening)
do que esotéricas, essa impressão se desmonta ao constatarmos no filme uma
onipresente influência da alquimia. De fato, há entre Fando e Lis e os
dois filmes posteriores de Jodo uma visível mudança de tom, ou melhor dizendo,
uma nítida absorção de novas referências. Fando e Lis, no momento em que
foi filmado, aparentava inevitavelmente ser um objeto anacrônico. Mais
conectado às vanguardas cinematográficas dos anos 20 (Cocteau e Buñuel) e às
vanguardas teatrais dos anos 40 e 50 (Beckett, Ionesco e o próprio Arrabal) do
que a qualquer referência estética contemporânea, Fando e Lis foi por
muitos sentido como algo que já nasceu com o prazo de validade vencido. El
Topo e A Montanha Sagrada marcariam então o definitivo encontro de
Jodo com o “seu tempo”. Mas que “tempo” seria esse? Todas as fontes
vanguardistas presentes em seu primeiro longa permaneceriam, porém, se
misturariam e se amplificariam com os ventos da contemporaneidade. Mas que
contemporaneidade seria essa? A resposta vale para as duas perguntas: a cultura pop.
Não correndo atrás da moda, mas sendo elemento integrante
dela, Jodo se insere no contexto de incorporação do misticismo pela cultura de
massa ocorrida no final dos anos 60. Nesse momento, podemos citar como alguns exemplos
a incursão dos Beatles pelo misticismo oriental e sua famosa viagem a Índia,
o estouro dos bestsellers de Carlos Castañeda. Grupos de rock como Led
Zeppelin e Black Sabbath, também nesta época, se enveredaram pelo
ocultismo e elegeram o mago Aliester Crowley como guru. Jimi Hendrix e Jim
Morrison no auge da popularidade se declaravam à imprensa como autênticos místicos.
Hendrix se aproximaria da linha hindu e Morrison da iconografia indígena
pré-colombiana. Se fosse o nosso objetivo enumerar todos os casos de diálogo
entre os ícones da cultura pop sessentista com as ciências místicas,
esse artigo se converteria em um gigantesco tratado. O que nos parece
importante frisar aqui é que a postura contracultural mais atuante nesse
período adotava fundamentalmente a simbiose estabelecida entre experiências
religiosas-sagradas e o consumo de substâncias alucinógenas. O imperativo máximo
era alcançar a transcendência, era sair da limitação material e desbravar novas
dimensões. Era atingir o “ser essencial” e se desvencilhar de prisões como família,
sociedade, nação e cultura. Mesmo tendo surgido antes dessa “explosão mística”
e de sua absorção pela indústria cultural, Jodo nela se infiltra, só que pela
via do underground. Muitos historiadores afirmam que a guinada para o
misticismo ocorrido na passagem dos anos 60 para os 70 foi acima de tudo uma
resposta ao engajamento político-ideológico da década anterior. Assim sendo, Jodo
não faria parte dessa “ressaca” aos “anos engajados”, porque ele sempre foi
desvinculado a qualquer vertente “politizada”. Jodorowsky dirige o seu primeiro
filme já com 37 anos de idade, em uma época em que o “cinema jovem” ou os “Cinemas
Novos” já dominavam os quatro cantos do globo. O autor, de maneira provocadora,
declarava fazer parte de um mundo eminentemente estético, poético e sublime.
Fazer com que a sua arte flertasse com questões políticas seria limitá-la,
podar suas asas e impedi-la de realizar grandes saltos. Jodo nunca quis fazer
um “cinema político” ou ser considerado um “cineasta político”, pelo menos não
na conceituação tão em voga na década de 60.
A idéia de arte política, tal como foi propagada naqueles anos
em todo o mundo, era rechaçada por Jodorowsky com veemência. O cinema político
produzido na América Latina ou o Nuevo Cine Latinoamericano (NCL)
obedeceu as principais características componentes do conceito então dominante
de “Cinema Político” e as premissas promulgadas pelos Cinemas Novos, porém
apresentou peculiaridades próprias. O cinema político latino-americano foi
diferente do cinema político europeu nas suas duas vertentes. Foi também
distinto do cinema político praticado dentro do circuito comercial, como é o
caso do Cinema Político Espetacular de Francesco Rossi, Costa-Gravas e Elio
Petri, e do cinema político de vanguarda feito à margem do circuito
cinematográfico usual, como é o caso do grupo Dziga Vertov de Godard e da Intentona
Situacionista de Guy Debord. No primeiro caso, o ponto de divergência foi a
adesão feita pelo cinema político “comercial” à linguagem e aos códigos do
cinema dominante. No segundo, a divergência estava na inoperância política e na
carência de perspectivas comunicativas que caracterizaria o cinema político
“experimental”.
A necessidade de bradar contra a institucionalidade
industrial do cinema – espetáculo Hollywoodiano –, comum aos cinemas novos, teve
na América Latina o seu enfoque centralizado na busca por uma identidade
cultural própria e não somente na negação do modelo hegemônico estabelecido.
Criar um cinema autenticamente latino-americano, totalmente desvinculado do
norte-americano, implicava em mais que um mero rechaço ao sistema dominante,
implicava em uma incessante investigação na busca de uma nova estética. Essa
nova estética não se ancorava na repetição ou no mimetismo do modelo
dramatúrgico tradicional e na linguagem cinematográfica clássica, como se fazia
no velho cinema nacionalista produzido no continente, para o NCL,
nacionalismo temático não poderia estar desassociado de um nacionalismo
estético. Forma e conteúdo precisariam estar organicamente entrelaçados e
formar uma só substância coerente. Essa forma e esses conteúdos originais seriam
encontrados nas raízes da cultura popular de cada país. A cultura popular seria
o local de onde se tentaria extrair os elementos responsáveis para a construção
desse novo cinema.
Ao compararmos o NCL aos demais cinemas novos
eclodidos nos anos 60, percebemos que seu elemento diferencial está focalizado
sobretudo nas questões que giram em torno do tema da identidade. As sociedades
latino-americanas, como todas as do mundo neo-colonizado, são marcadas pelo subdesenvolvimento
e pela miséria. Esse quadro social fez desembocar nesses cineastas, que também
pertenciam a uma determinada elite cultural, interrogações e objetivos
diferentes dos de seus colegas europeus. Aqui foi destacada a função
estratégica da cultura como uma poderosa ferramenta de resistência perante a
dominação estrangeira. A cultura e o cinema tornam-se elementos transformadores
e didáticos cujos objetivos centrais são: chegar em um patamar completamente
independente dos padrões impostos pelo imperialismo cultural e estabelecer uma
relação direta e orgânica com a sociedade.
Constatamos que a principal diferença entre o NCL e
Jodo é: a necessidade de auto-afirmação identitária. O NCL almejava
construir um cinema autenticamente nacional e latino-americano e para isso não
abria mão de utilizar a cultura popular de seus respectivos países, o que Jodo recusa
de maneira incisiva. Ele alega odiar o folclore e tudo que seja percebido como
exótico e particular de um país. O tema da identidade nacional não se constitui
como uma questão para o seu cinema. Porém, podemos afirmar que algo em comum há
entre Jodo e o NCL: o desejo de mudar o mundo. A utopia de enxergar no
cinema uma arma potencialmente transformadora era compartilhada por ambos.
Tanto Jodo quanto o NCL viam no cinema um instrumento libertador, um
agente de salvação do mundo. Porém a diferença está no mundo que se deseja
salvar. Ou em que esfera ou níveis do mundo que essa salvação precisa ser
operada. No caso do NCL, a realidade a transformar era a política, econômica
e social dos países do continente latino-americano. A esfera trabalhada é essencialmente
a material. Já Jodorowsky busca uma outra chave, compreendida por ele como mais
abrangente e totalizante: a mental e simbólica. Para Jodo, a transformação
completa do Homem e da humanidade só seria concretizada pela escolha de um caminho
mais além. A sua compreensão do termo “política” ultrapassa as lições
oferecidas pelas ciências econômicas e sociais, abraçando o Homem através de
seu inconsciente e não apenas pela superação de uma realidade material
desfavorável. Sem levantar nenhuma bandeira e sem escrever nenhum manifesto,
Jodo executa um outro tipo de cinema comprometido. Uma outra apreensão , uma
outra concepção de cinema político é aqui forjada. Jodo em seu cinema
“iniciático” acaba por realizar em nossa percepção um grande salto.
Estevão Garcia
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