METAFÍSICA E PSICODELIA NO VELHO OESTE

Faroeste lisérgico, psicodélico, surrealista. Todas essas designações que podem ser colocadas ao lado do termo Western para descrever El Topo (1969), se resultam insuficientes para realizar tal feito com precisão. Afinal, como descreveremos El Topo? Qual é a sua relação com o Faroeste e com os adjetivos e classificações acima mencionados? O contato que o filme estabelece com o "gênero cinematográfico norte-americano por excelência", como dizia André Bazin, é extremamente peculiar. El Topo flerta diretamente com o que já é uma derivação, uma interpretação e uma releitura da fórmula original, o chamado  spaghetti werstern. O flerte, a aproximação e o diálogo com esse específico conjunto de filmes italianos produzidos ao longo da década de 60, não adota o registro paródico ou o de uma homenagem. Jodorowsky não utiliza o humor como ferramenta crítica de um modelo discursivo que se pretende desconstruir e também não eleva o referencial antecessor enaltecendo de forma acrítica os seus códigos e iconografias. Da mesma forma é lícito frisar que o realizador chileno não penetra no gênero Faroeste com o intuito de transitar por suas linhas e ao mesmo tempo tentar sutilmente subvertê-las. A relação travada por Jodorowsky e o cinema de gênero difere e muito da que foi levada a cabo por Luís Buñuel anos antes na mesma cinematografia. O diretor espanhol foi incorporado à indústria cinematográfica mexicana, então em sua Época de Ouro, e para se expressar da forma que desejava, optou por "aceitar" as fórmulas e os rígidos padrões morais do melodrama para assim transgredi-las.

Jodorowsky
, ao contrário, se “insere” na História do Cinema Mexicano quando a sua indústria já se encontrava em franca decadência. O melodrama, outrora um genero popular e prestigiado, símbolo do “melhor” cinema mexicano, em aquele momento estava completamente desgastado. Outros gêneros menos considerados como o Terror, as Comédias Eróticas, o Cinema de Lutadores, os “filmes para jovens” e o Faroeste começaram a dominar as telas mexicanas. Estando inserido em uma distinta lógica e em um outro sistema de produção (indenpendente, desvinculado ao severo sindicato cinematográfico), o autor descarta a possibilidade de obedecer (mesmo a de obedecer desobedecendo) o mecanismo e a roupagem moral do "velho oeste" que conhecemos.

Aqui, constatamos diretamente a instalação de uma outra moral e de um diverso código de ética. O Werstern para o cineasta é mais um palco pré-estabelecido, uma iconografia enraizada em nosso imaginário. Certa vez, lembrando das experiencias cinematográficas de sua infância em Tocopilla, afirmou que as séries de bang-bang que assistia nas matines representavam mais do que nada um “mundo mágico”. O território do Velho Oeste  para o menino Jodorowsky não pertencia a um determinado  estado nacional e sim a um universo fantástico e encantado. Os cowboys nao eram homens de carne e osso e sim seres etéreos como os duendes e as fadas. A visualidade, a atmosfera, a ambiência, as sensações emanadas pelas paisagens características do gênero são mais importantes do que a sua lógica interna. A plasticidade do Faroeste é apropriada enfaticamente enquanto os seus resquícios morais padronizados são esvaziados.

Partindo dessas premissas, Jodorowsky esculpiu um Wersten metafísico, simbólico e sensorial. O deserto que visualizamos é circular, portanto, o personagem precisará percorrer a sua jornada em espiral. O trajeto do justiceiro se desvirtua assim como a sua própria figura se transforma. No início, levemente percebemos o herói como se ele tivesse saído da mesma fôrma em que foram moldados os típicos justiceiros do gênero.

Aos poucos, constatamos que o personagem El Topo não pertence a essa linhagem tradicional.  No começo, valente, destemido e austero, o protagonista deseja transformar o filho em um Homem. O faz enterrar na areia, o seu primeiro brinquedo e o retrato de sua mãe. Para a criança ser independente e entrar na vida adulta, é necessário que ela se desvencilhe da figura materna, é preciso que ela ande com os seus próprios pés e que tome as suas decisões com coragem e determinação. O pai entrega o revolver para o filho, para que ele mesmo execute a tarefa de sacrificar um homem que se encontra na beira da morte ardendo em dor. A vida é dura e cruel e para enfrentá-la, é urgentemente necessário ser frio e preciso. Baseando-se nisso, El Topo deixa seu rebento em um mosteiro para que "ele nunca dependa de ninguém" e segue à cavalo, tendo agora sua amante na garupa.

Mara, assim batizada por El Topo, impõe ao seu amado uma prova de amor: ele terá que enfrentar os quatros mestres do deserto, respectivamente: o mestre hindú, o mestre sufista, o mestre xaman pré-colombiano e o mestre taoísta, vencendo um a um. O nosso herói então aceita o desafio, visando provar a sua virilidade e coragem para a sua esposa e para si mesmo. No entanto, os duelos e as lutas que se seguem se transformam em uma busca pelo auto-conhecimento e pela espiritualidade jamais encontrada. “Deus, porque me deixaste tão desamparado”. Ao término do último duelo, El Topo cruza uma ponte clamando desesperadamente pela presença de Deus. Ele que ao derrotar um autoritário caudilho, castrando-o, afirmava ser Deus, agora se encontra frágil e desprotegido. As suas tentativas de alcançar a onipotência foram infrutíferas. A sua angustia é o resultado da constatação de que ao fim de sua jornada, as suas perguntas permanecem sem respostas e que as suas inquietações continuam sendo as mesmas. O quarto mestre morreu, mas não foi pelo intermédio de suas mãos. O velho sábio taoísta se matou para provar que não temia a morte. El Topo mesmo vencendo, tinha fracassado. A sua derrota como ser que busca "algo" se completa com o seu fracasso como macho. Mara o abandona para se juntar à mulher vestida de couro negro. Essa mulher nada mais é que o alter ego de El Topo, a sua parte feminina. As duas fêmeas copulam, se unem, se rebelam e atiram no antigo macho. Ele vê a sua força e a sua potência de outrora ser esvaziada.

A última parte de El Topo o mostra completamente modificado. A negação de seu status de macho ocasionada pela rejeição e traição de sua mulher e a constatação do vazio de sua busca o fez se recolher em uma caverna. Nessa gruta úmida e subterrânea se encontram os seres marginalizados e cuspidos pelo mundo. Podemos visualizar aqui tanto a materialização de um imaginário profundamente arraigado na cultura espanhola (os monstros e as figuras bizarras de Velásquez, Goya e Picasso) quanto a influência de um filme bastante celebrado por Jodo: Freaks (Tod Browning, EUA, 1932). A escória da escória, os rejeitados e desprezados pela sociedade, os filhos do amor proibido se reúnem nesse imenso buraco escuro. Os mutilados, aleijados e disformes seres almejam um dia cruzar o túnel que os levará à superfície.

Após o passar dos anos, El Topo, junto com uma companheira anã, retorna ao mundo oficial. Estando nele, eles terão que, em um exerccío de humildade, limpar latrinas e mendigar como artistas de rua. Aqui, Jodo deixa vir  à tona toda sua velha experiência adquirida em seu trabalho como palhaço e mímico. Se a sua primeira manifestação artística foi  a pantomima, uma arte essencialmente corpórea e sensorial, vemos de certo modo ela refletida em seu cinema. O cinema de Jodo é acima de tudo visceral, orgânico, sensitivo e corporal.  

No mundo de fora é encontrado: violência, injustiça e hipocrisia. O vilarejo típico do Velho Oeste em suas edificações: uma igreja, um bordel, um bar e uma praça, é o reduto de uma brutal intolerância. As senhoras carolas de boa índole estupram um escravo e depois o condenam à morte. O universo do lado de fora, povoado por pessoas "civilizadas" e "perfeitas" fisicamente, é pior do que o universo recluso do lado de dentro da caverna. Está tudo errado, está tudo invertido e é preciso que uma verdadeira Revolução ocorra. Mas que Revolução seria essa? Política? Social? Também, mas nao só. O cinema de Jodorowsky está a servico de uma Revolução planetária, uma Revolução cósmica.

El Topo é um filme revolucionário em todos os sentidos. Universal, local, transgressor, atemporal, uma obra que rompe com todos os vasos sanguíneos e que ejacula vitalidade. Uma obra direcionada para o futuro. O futuro é o filho de El Topo, prosseguindo a procura iniciada pelo pai. O filho de El Topo, a legítima mulher de seu progenitor e o irmão recém nascido na garupa do cavalo, unidos como um corpo único, se misturam à paisagem, rumo a um caminho que aponta para o infinito, como as linhas de uma espiral.


Estevão Garcia


 
 

 

 

El Topo (1970):