A tecnologia é uma construção de mundo e uma ilusão de
mundo. E o surgimento do cinema tornou evidente o uso da tecnologia para a
construção e disseminação de ícones. Ícones, antes de seu sentido espiritual,
são construções artísticas – “a poesia antecede todas as religiões e sobrevive
a elas” (essa é de Paz). Se a tecnologia nos permite vislumbrar o mundo com
novos olhos, capazes de enxergar o que antes não podiam, também nos faz crer
que podemos dominar as coisas. Mas as coisas são mais do que as coisas.
É isso que move A Montanha Sagrada: sempre sob a
sombra do profano, uma construção mítica (logo, poética) e visualmente
impressionante, dá a ver símbolos de diversas religiões e crenças (“todas as
religiões são uma”, segundo Blake). O que move o cinema é a chance de ver. Onde
outros propõem obras, este filme não pretende senão procurar o espírito.
A Montanha Sagrada estrutura essa sua busca com a estratégia
da apreensão (ou, diríamos aqui no Brasil, do sincretismo
antropofágico). Todos os símbolos apontam para um só caminho – tudo depende do
uso que se faz deles. A Montanha Sagrada, disse o diretor Alejandro
Jodorowsky, foi feito com a ambição de mudar os caminhos da espécie humana.
Como toda obra que concilia a poesia e a religiosidade, pretende unir fala e
mundo, palavras e coisas. “Se o cinema não for feito para traduzir os sonhos ou
tudo aquilo que na vida desperta assemelha-se ao domínio dos sonhos, o cinema
não existe” (para Artaud).
Não se trata apenas de digerir e reconstruir o universo
surrealista: o movimento de liberdade que faz A Montanha Sagrada vai
além da pretensão estetizante da atmosfera onírica; este movimento ambiciona
antes reorientar as ambições da criação cinematográfica. É um movimento que
antecede e sobrevive a contextualizações políticas e sociais – como um novo
totem, o filme ganha sentido por sua própria existência. É comum a todas as
crenças a fé na força espiritual da fala ou da manifestação: seja no candomblé
ou no cristianismo, as palavras e as imagens têm força própria. É isso que o
cinema pode ser e mostrar: “O espírito insurge-se contra toda representação.
Essa espécie de poder virtual das imagens vai buscar no fundo do espírito
possibilidades até agora não utilizadas. O cinema é essencialmente revelador de
toda uma vida oculta, com a qual nos coloca diretamente em contato. Mas essa
vida oculta, é preciso saber adivinhá-la. Existe algo muito melhor que um jogo
de superposições para fazer adivinhar os segredos que se agitam no fundo de uma
consciência. O cinema, em estado bruto, tomado tal qual é, no abstrato, libera
um pouco dessa atmosfera de transe muito favorável a certas revelações” (Artaud
de novo). E no final da A Montanha Sagrada a revelação é ela mesma, em
si.
Assim, quando imagens, sons e palavras podem ganhar
permanência para além de um instante, elas assumem a feição da força que as
criou: é o que assemelha a poesia ao totem. É isso o que altera os lugares e tempos,
segundo a fé. É desse modo que a própria existência de A Montanha Sagrada torna-o
uma empreitada bem-sucedida: o mundo e o cinema se tornam outros por sua
existência.
O efeito de sua conciliação apaixonada de beleza e humor
ecoa como uma prece a um só tempo autêntica e independente. Em favor de um novo
cinema – um novo mundo – para um novo olhar.
Daniel Caetano
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