HERANÇA E RENEGAÇÃO

“La virtud y la costumbre
en el corazón pelean
y el corazón agoniza
en tanto que lidian ellas.”
Sor Juana Inés de la Cruz

Jodorowsky já era um autor cultuado ao realizar Santa Sangre (Itália/México, 1989). Entretanto, o universo simbólico de Fando e Lis e o esoterismo de El Topo e A Montanha Sagrada não se encontram presentes nessa produção. Verdade seja dita, como em toda produção artística jodorowskyana (ou seja, não apenas em seus filmes), nele podemos identificar elementos próprios à sua concepção do mundo e da arte. Porém, Santa Sangre é, de todos os filmes de Jodorowsky, exceto os encomendados (Tusk e O Ladrão do Arco-Íris), o que mais se aproxima de um “cinema de gênero”. E esse diálogo de Jodorowsky com a tradição dramático-narrativa deste cinema, sobretudo o latino-americano, é sumamente enriquecedor.

A história é povoada por estranhos personagens, que habitam um universo que beira a irrealidade, uma vez que é a relação entre o sonho (que, às vezes, se transforma em pesadelo) e o real o fator-chave que condensa o filme. Santa Sangre expressa o poder que a ilusão exerce sobre os homens, mas, não em um sentido totalmente pejorativo. Jodorowsky não é um racionalista. Muito pelo contrário, o sonho e o lúdico são fundamentais em nossa relação, cognitiva e afetiva, com o mundo. No entanto, é com o peso das relações familiares que devemos buscar romper, para que possamos ser pessoas melhores. Por certas razões (explicáveis ou não, e é por essa via que a “psicogenealogia” de Jodorowsky se envereda), somos, emocional e espiritualmente, marcados por nossos pais e antepassados. Deste modo, podemos afirmar que o personagem principal de Santa Sangre é um caso clínico exemplar e, por tal motivo, se aproxima de um amplo leque de narrativas, cinematográficas e literárias, de personagens transtornados e divididos psiquicamente.

O filme narra as desventuras de Fênix (Axel Jodorowsky), interno em um hospital psiquiátrico. É um ser totalmente não-humano, já que se comporta como se fosse uma ave. Não fala, não se locomove nem come feito uma pessoa. Por intermédio de um flashback, voltamos à sua infância e, assim, conhecemos o seu passado traumático. O garoto Fênix (Adan Jodorowsky) é filho de um estranho casal: Orgo (Guy Stockwell), um opulento atirador de facas e dono de circo, e Concha (Blanca Guerra), uma trapezista e fanática religiosa, fundadora de uma seita devota de uma virgem mártir, cujos braços foram cortados por seus violadores e assassinos. O menino Fênix também atua no circo, como mágico. Caso seja possível dividir o filme em duas partes, a primeira retrataria a infância de Fênix, criado nesse ambiente circense, com anões, palhaços e malabaristas. Em um universo à la Fellini, assistimos uma plêiade de exóticos personagens e situações incomuns. Entretanto, trata-se de um circo um tanto decadente. Após ver o pai bêbado, Fênix é consolado por seu amigo, o anão Aladín (Jesús Juarez), que diz que o pai não pode mais voltar aos EUA, por ter matado uma mulher nesse país. Por sua vez, o circo se encontra em uma região de baixo meretrício da Cidade do México (onde o filme foi realizado, ou seja, trata-se de cenas “documentais”). Assim, de um modo extremamente interessante, os personagens do circo são inter-relacionados com autênticas figuras urbanas, como putas, clientes e bêbados. É no meio dessa “fauna humana” que Fênix se vê dividido entre a pujança do pai e a religiosidade da mãe. Ambos tentam inculcar no garoto valores e preceitos, cada um ao seu estilo. Porém, a única pessoa, além de Aladín e dos palhaços do circo, que Fênix busca manter uma relação efetiva é com a menina surda-muda Alma (Faviola Tapia), cruelmente tratada pela voluptuosa Mulher Tatuada (Thelma Tixou). E, eis que, em uma noite, advém o fato traumático: Concha flagra Orgo com a Mulher Tatuada. Ela joga ácido nos órgãos genitais do marido, que, antes de morrer, decepa os braços da esposa, tal qual como a sua adorada mártir. Fênix testemunha impotente essa cena, por estar trancado em um trailer. E, assim, voltamos ao hospício, onde Fênix se encontra internado, agindo como uma águia (tal qual a tatuagem que porta no peito, feita à ponta de faca por seu pai, que também possuía a mesma tatuagem, no mesmo lugar).

A segunda parte do filme retrata o tortuoso processo de “cura” de Fênix. Após a tentativa de socialização por parte dos médicos com outros internos, Fênix foge do hospital, resgatado pela mãe. Subitamente, retoma a memória e passa a viver e a trabalhar com a mãe, no meio artístico. Fênix empresta os seus braços e mãos à mãe, vivendo em função de seus caprichos. Desse modo, a narrativa se volta para o gênero “terror”, criando um ambiente típico dos filmes do produtor Claudio Argento. Todas as mulheres com quem Fênix tenta manter alguma relação são assassinadas pela mãe, que as mata através das mãos de Fênix. Tomado pela opressiva figura materna, Fênix não consegue manter a sua individualidade e sonha com o seu herói, o “Homem invisível”. Entretanto, Alma reaparece, agora transformada em uma linda mulher (Sabrina Dennison), desafia Concha e liberta Fênix, que descobre que a terrível presença materna era um macabro delírio, encarnado por um boneco sem braços.

Concordamos com a ressalva de que essa trama não possui nada muito de original. Por outro lado, não podemos deixar de afirmar que é fascinante a bizarra figura da personagem sem braços. Próximo ao ser mitológico, tal personagem é mais um no bestiário do universo jodorowskyano, assim como o homem sem braços que conduz em seus ombros um anão sem pernas em El Topo . Jodorowsky, em suas entrevistas, afirma o seu fascínio por tais figuras “monstruosas”, que denotam o quanto a natureza é criativa e procura se auto-prolongar a qualquer custo. Tampouco podemos deixar de citar a vasta presença de anões nos filmes mexicanos, que deita raízes da cultura espanhola. Entretanto, mais do que o aspecto físico, o mais fascinante é o conceito da “mãe sem braços completada pelo filho”. E é por esse viés que Santa Sangre pode sofrer interpretações psicanalíticas, filosóficas, religiosas, esotéricas, antropológicas, ou o que for. Estas leituras se enriquecem ao sublinhar que Fênix não apenas foi dominado pela mãe, mas, inicialmente, pelo pai. O rito de passagem conduzido pelo pai ao tatuá-lo com a águia estadunidense (e, neste item, quem quiser fazer interpretações políticas, também se sente à vontade), em um típico ritual na qual a lei é escrita no corpo pela dor, marca (literalmente) o menino que, assim, se transforma em homem. A masculinidade se caracteriza pela mistura de domínio e risco, resumida na figura do “atirador de facas”. Orgo possui o dom de hipnotizar as pessoas, que, deste modo, cedem ao perigo de estar na mira de suas facas. É graças a esse dom hipnotizador que ele tenta controlar Concha. Fênix, no início do filme, está “transformado” em águia, pois “ser homem”, conforme lhe ensinou o pai, é “ser águia”: é ter boa pontaria, é ser preciso, é ser galante e opulento e, com seus agudos olhos, exercer fascínio sobre os outros. Entretanto, devido ao seu transtorno mental, Fênix não apenas assume os atributos da águia, como age, literalmente, feito uma. Em suma, na primeira parte do filme, Fênix sofre a opressão paterna.

Por outro lado, é graças à mãe que Fênix se liberta do pai. Lembremos que a mãe castrou o pai. Entretanto, Fênix apenas troca de opressor. Movida por seu ciúme doentio e por sua devoção cega, a mãe repele toda e qualquer mulher que se aproxime de seu filho. Assim, a mulher que manifestar algum interesse afetivo e sexual por Fênix, se assume, imediatamente, como “manchada”; é impura, diferente da sua cultuada mártir. É a sofrida e inocente Alma que, graças ao seu amor, consegue reverter a situação. E assim, definitivamente, Fênix consegue realizar o ato mais difícil: ser ele mesmo, e não o que seus pais queriam que ele fosse. Fênix, conforme seu nome, “renasce”, torna-se ele mesmo. Em suma, Santa Sangre também é, ao lado de Fando e Lis, El Topo e A Montanha Sagrada, uma narrativa sobre uma peregrinação iniciática em direção ao autoconhecimento, porém, sob uma outra forma.

As seqüências do mundo circense oferecem a Jodorowsky a possibilidade de criar personagens e situações visualmente ricas, como a morte e o enterro do elefante. Porém, a zona de baixo meretrício, com a sua gama de personagens, também torna isto possível. Portanto, a realidade, mesmo que seja soturna e pervertida, não está tão distante do fabuloso e fantástico mundo do circo. Em suma, o real e o ilusório não são tão dicotômicos. Jodorowsky não está preocupado em denunciar os malefícios da ilusão, mas, antes de mais nada, afirmar que a realidade, de um modo ou de outro, é também ilusão. Assim, o circo do pai não é tão diferente da igreja da mãe. Ou seja, a religião está no mesmo patamar que o espetáculo, no sentido de que ambos exercem fascínio, pelo seu caráter lúdico e “mágico”. Para quem crê, a tinta vermelha é, de fato, o santo sangue vertido pela virgem martirizada. Eis, talvez, o mais relevante do cinema jodorowskyano: um filme é apenas um filme (conforme o próprio Jodorowsky demonstra no final de A Montanha Sagrada). Em suma, um filme, como toda e qualquer narrativa, funda as suas próprias regras de verossimilhança. Caso o espectador (ou o cineasta) quebre esse acordo tácito (o que ocorre em A Montanha Sagrada), somos subitamente conduzidos a um outro tipo de relação com a “realidade” diegética; assim como, teoricamente, o esoterismo faria com a nossa percepção imediata do mundo que nos cerca. Portanto, a fé se funda na crença em uma “realidade” para além das aparências, que, por sua vez, se encontra enraizada no próprio mundo empírico. Ou seja, somente podemos aceder a esse nível “supra-real” graças a elementos “reais”: o sangue “é” tinta, o Corpo de Cristo “é” trigo (hóstia), etc. Exatamente como no circo: um malabarista “é” uma pessoa além do normal, um mágico “faz” mágicas, um atirador de facas “domina” as pessoas... O que queremos dizer é que o “supra-real” (ou seria, o “surreal”?) se encontra nada mais nada menos do que na própria realidade, comum e banal de todos os dias. A diferença se deve apenas ao fato de mudarmos a nossa relação com essa realidade banal, i.e.: o “supra-real” (ou o “surreal”?) é apenas um outro modo de interagir com o “real”, e não um outro espaço-tempo radicalmente distinto do nosso. A profundidade das coisas se encontra em sua superfície.

Entretanto, Santa Sangre, diferente de A Montanha Sagrada, é um filme que deseja “enganar” o espectador; exercer, constantemente, um fascínio. Em suma, emocioná-lo. Trata-se de uma trama que, em si, não evoca nenhuma originalidade (aliás, podemos afirmar que a trama de todos os filmes do Jodorowsky são bem simples; não há nada de tão rebuscado, como ele mesmo reconhece), mas cuja estrutura forja elementos que transcendem essa banalidade aparente, ao estabelecerem outras relações. Por exemplo, tudo muda quando a “personagem sem braços” é “vista” através do conceito da “mãe incompleta”. E essa mudança, no caso deste filme, se deve ao que é considerado negativo em Jodorowsky: o fatídico peso da tradição nas relações humanas. Porém, o mais fascinante de Santa Sangre se deve, justamente, ao fato de como o cineasta utiliza a tradição cultural para rejeitá-la. Jodorowsky odeia o vínculo com a tradição: qualquer tradição, qualquer identidade, seja ela cultural, nacional, religiosa ou étnica. Desse modo, para poder negar, ele absorve elementos típicos do “cinema de gênero”, mais especificamente, do melodrama e do terror. Mas, mesmo assim, trata-se de um filme autoral, uma vez que essa relação com os elementos narrativos “genéricos” se define como a fundação de uma plataforma comum com o espectador, através da qual ele estabelece outros vínculos. Diferente de um filme “experimental” (como Fando e Lis, por exemplo), Santa Sangre está entranhado de clichês e elementos constitutivos do cinema clássico-narrativo, mas cujo objetivo é forjar outras relações a partir deles.

Vários cineastas latino-americanos se caracterizam por sua “revisão” ao melodrama. Podemos citar o venezuelano Román Chalbaud (principalmente o seu mais importante filme, El pez que fuma) e o mexicano Arturo Ripstein. E é difícil não relacionar Santa Sangre com vários aspectos do melodrama latino-americano, a começar por seu visual kitsch, presente na religiosidade popular e no ambiente arrabalero da prostituição e das lutas livres. Contudo, diferente de Chalbaud e de Ripstein, Jodorowsky não anseia por realizar um profundo receituário das estruturas do melodrama, mesmo que seja para subvertê-lo. Jodorowsky mantém uma relação, digamos, “transversal” com a tradição melodramática. É lícito afirmar que o tom trágico das relações familiares, ponto central do melodrama, é o leitmotiv de Santa Sangre: a opressiva figura patriarcal, típica do melodrama clássico – e nesse aspecto, tampouco podemos deixar de mencionar a figura do huacho, caro à cultura chilena1 –, o apego ciumento da mãe, o incesto, as delicadas relações entre a norma e a transgressão, entre o Bem e o Mal, etc. Entretanto, Jodorowsky utiliza tais elementos em seu caráter universal, apesar de, no filme, eles estarem extremamente impregnados de aspectos regionais, seja pelo tipo físico dos atores, pela música, ou, simplesmente, pela geografia urbana da capital mexicana. (Talvez quem não tenha maior intimidade com a cinematografia latino-americana não se sinta tão interpelado por tais signos.) A mudança de estilo ao longo da narrativa (o tom “de terror” da segunda parte) também ajuda a quebrar um vínculo explícito e direto com a tradição melodramática. O que é relevante em tais elementos é o manejo de suas funções na narrativa (a “função pai”, a “função mãe”, etc), para que, a partir delas, seja possível emocionar o espectador, graças ao seu imaginário cultural, e, assim, superá-lo, no sentido de ir além de sua mera afirmação. Nesse sentido, é possível “compreender” várias seqüências (como as mencionadas da morte e do enterro do elefante), muito fortes visualmente, cujo objetivo é desarmar o espectador, que, graças ao exagero e barroquismo, se recusa a “crer” na narrativa. Dito de outro modo, não se trata de uma função plena e opaca, como no melodrama clássico, e tampouco de uma explícita ironia e citação metalingüística, como no “melodrama revisitado” (Chalbaud e Ripstein). Talvez trata-se de um imponderável meio-termo, que, conforme já mencionamos, abre espaço para interpretações as mais variadas, ao gosto do freguês...

Fabián Núñez

1. Termo popular chileno, que designa “órfão”. De origem quéchua (huachuy), na cultura chilena, significa o “filho de mãe solteira”, “não reconhecido pelo pai”. Termo carregado de um forte tom pejorativo e bastante presente na literatura chilena, sendo classicamente empregado para o personagem fruto da relação ilegítima entre o patrão e a empregada.

 
 





Santa Sangre (1989):