A recente “redescoberta” da obra de Alejandro Jodorowsky,
graças à disponibilidade de seus principais filmes em DVD (estrangeiros) ou
pela Internet, oferece as condições para uma revisão crítica e historiográfica
de sua obra. Nos livros de história de cinema latino-americano, Jodorowsky é apenas
mencionado em breves parágrafos, quase como uma nota de pé de página. Concordamos
que a então difícil acessibilidade aos seus filmes lhe envolveu com uma “aura”
de autor maldito e underground, cuja obra estaria reservada a poucos
iniciados. Entretanto, o conceito de “cinema latino-americano”, forjado pelos
preceitos do chamado “Nuevo Cine Latinoamericano” (NCL), também condicionou a
recepção dos seus filmes, seja através da mais clara rejeição, seja através de,
no máximo, um morno interesse. Sem maiores preocupações políticas –
aparentemente –, os seus filmes destoavam, uma vez que não se comportam de
acordo com o rígido classicismo da tradição melodramática ou musical nem conforme
o ideário do NCL do “filme moderno latino-americano”. Assim, seus filmes seguem
extremamente difíceis de “classificar”, apesar de sua aproximação a elementos
típicos de um “cinema moderno”, embora fora de qualquer tradição.
Aliás, o próprio Jodorowsky jamais se preocupou com essa
“falta” de identidade. Muito pelo contrário, trata-se de algo que ele mesmo
celebra, uma vez que faz questão de frisar a ausência de vínculos ou de
influências em sua criação artística. Jodorowsky se gaba de não reivindicar
para si nenhuma tradição ou filiação. Nesse sentido, ele se declara isento de
qualquer compromisso, isolando a figura do artista de seu meio social,
histórico e geográfico. É um ser que dirige a sua sensibilidade aos elementos
atemporais e utópicos (sem-lugar) da condição humana, mesmo que para isso precise
chocar, violentamente, as convenções sociais.
Por outro lado, esse “gosto pela polêmica”, esse anseio
histérico, que define a figura do artista, alinha Jodorowsky à “tradição
moderna”, à imagem do “artista moderno”: o “ser maldito” à la Rimbaud ou Jarry (ou, então, Lautréamont, tão cultuado pelos surrealistas). A proposta do Movimento
Pânico (um movimento que nunca existiu) é “prolongar”/“resgatar” do surrealismo,
justamente, o que este havia perdido: a profunda sinceridade na criação
artística como uma violenta irrupção dos impulsos (criativos e destrutivos) do
ser humano. E, para isso, a pujante necessidade de quebrar todos os códigos e valores
estabelecidos. Entretanto, esse insuperável anseio histérico, manifesto pela constante
necessidade de originalidade e de polêmica, culmina, em última instância, em um
niilismo radical, que auto-destrói os próprios princípios da proposta estética.
Cria-se, malgré lui, uma “tradição do novo”. Foi o que ocorreu com o
surrealismo, quando este se “aburguesou”. Entretanto, ao resgatar os princípios
mais autênticos da proposta surrealista, o Movimento Pânico se torna
auto-consciente da contradição da “tradição moderna” e, por conseguinte,
somente lhe resta a “farsa”. Ser um movimento artístico, mas sem sê-lo. Somente
desta forma, seria possível ser sincero na crença aos princípios surrealistas: é
“fingindo” em acreditar que, contraditoriamente, se “é” como os surrealistas
realmente foram. O deboche e o pastiche substituem o rigor da crença e a
vigilância nos princípios propostos pelo surrealismo. E essa postura, conforme
vários teóricos já assinalaram, define o caráter “vazio” e, por conseguinte,
perverso, da condição “pós-moderna”.
É talvez esse discernimento da contradição estrutural da
“arte moderna” (já presente nos “anos Pânico”), agudizado por seu interesse pelo
esoterismo, que encaminhou Jodorowsky a criar uma obra singular, mas não isenta
de ambigüidades. Diferente dos cineastas dos “cinemas novos”, Jodo não é movido
pela cinefilia, que instigou o cinema a dobrar-se sobre si mesmo e formar uma
metalinguagem que visa estabelecer um “diálogo” com os “clássicos” (melhor
dito, com o “cinema clássico norte-americano”). É alhures e não no cinema que
se encontram os interesses de Jodorowsky. Provavelmente, essa postura
“não-cinéfila” incomoda os mais obstinados cinéfilos que, por tal motivo,
jamais ousariam colocar Jodo em seu panteão de cineastas queridos. O cinema de
Jodorowsky visa estabelecer outras relações, que, com certeza, não são com o
imaginário consolidado pela história do cinema. Por outro lado, é claro que os
seus filmes não se encontram isolados de toda e qualquer referência
cinematográfica. Jodorowsky busca se apropriar de certos elementos visuais e
narrativos da linguagem cinematográfica. Assim, é possível vislumbrar no
poético Fando e Lis não apenas a evidente herança surrealista (com
Buñuel à frente), mas uma lista de filmes com amantes trágicos, talvez algum
Carné, ou, mais próximo aos anos 1960, A Estrada de Fellini. Por sua
vez, El Topo é declaradamente um western, não no sentido
original, mas em sua manipulação de todo um arsenal de signos e elementos
estruturais do gênero, conforme também podemos encontrar em seus coetâneos westerns-spaghetti – e, em suas versões mexicanas (chili-westerns) e espanholas (westerns-paella). A Montanha Sagrada quiçá seja, de seus filmes, o mais ímpar, embora siga
uma tradicional narrativa linear e se aproxime dos filmes épicos, tanto os de
temas religiosos quanto os de aventura. E, por último, podemos dizer que Santa
Sangre se apropria, de modo curioso, do melodrama e do terror.
Claro que essa interpretação pode ser acusada de simplista,
por tentar reduzir, a qualquer custo, toda a riqueza imagética e sobretudo simbólica
de seus filmes. Com certeza, esse viés fundamentalmente cinéfilo desagrada os
“esotéricos”, que adoram “brincar” de interpretar os filmes de Jodorowsky, tentando
reconhecer em cada um de seus planos, as pistas da alquimia, do tarô, do
xamanismo, das religiões orientais, etc. Eis o nó górdio da relação com a obra
jodorowskyana: vê-la com olhos de cinéfilo ou de esotérico? Portanto, o
incômodo lugar em que Jodorowsky foi tradicionalmente fixado, pela crítica e pela
historiografia, se deve fundamentalmente, a essa ambigüidade. E, conforme a
inclinação do espectador, os seus filmes são admirados, cultuados, odiados,
ignorados ou desprezados.
A consagração mundial de Jodorowsky nos anos 1970 se deu
graças ao “desbunde” pop-lisérgico da contracultura, que aproximou o
experimentalismo vanguardista com o hedonismo da cultura de massa. Não cabe
nesse artigo saber se este era, digamos, o público-alvo almejado pelo cineasta.
A questão é que os seus filmes encontraram, em seu tempo, um “nicho”, e foi
graças a esse restrito espaço de difusão que, felizmente ou não, seu nome foi
associado a um ideário combatido por segmentos mais politizados. É evidente que
o próprio Jodorowsky também é responsável por isso, na medida em que ele jamais
se interessou em vincular a sua obra e a sua figura pública de artista a algum
compromisso político. E, por isso, jamais poderia (e pode) estar relacionado ao
cinema latino-americano de seu tempo, articulado sob o ditame do NCL. Dessa
forma, seus detratores o relacionaram a um “cinema moderno apolítico”, ou seja,
um “cinema de autor” somente preocupado com veleidades estéticas e não
comprometido com princípios políticos. E, sem sombra de dúvida, o vínculo de
Jodo com a sua legião de fãs, defensores de uma libertação por via dos
costumes, consolidou essa leitura negativa. E, por último, podemos afirmar que,
não bastasse o “autorismo”, o seu esoterismo “agravou” mais ainda essa
interpretação.
Contudo, concordamos que é fácil julgar hoje, passados
trinta anos, essas interpretações da obra jodorowskyana. Devemos compreender o
que estava em jogo naquele tempo, para que um cinema, tão forte e impactante,
tenha sido rigorosamente descartado pelos mais radicais. Entretanto, voltamos a
frisar que, conforme mencionamos acima, a relação estabelecida com seus filmes,
geralmente, é disputada por um viés “cinéfilo”, e outro, “esotérico”. Talvez,
fundamentalmente, essa dicotomia entre “cinéfilos” e “esotéricos” seja apenas
mais um falso bipartidarismo. Os filmes de Jodorowsky exercem (e exerceram) um
fascínio justamente por tentar combinar aspectos de ambas as posturas. Ou seja,
o ideal é buscar assistir à sua obra, tanto como filmes como experiências
religiosas. Afinal, a cinefilia, no seu sentido original, não está tão distante
dessa experiência. Conforme indica Baecque, a cinefilia se define como um
sistema de organização cultural que engendra ritos de olhar, de palavra e de
escrita.1 Em suma, a cinefilia é um conjunto de regras, fundamentado em ver
e rever filmes; aprofundar essa experiência, através da escrita, seja privada
(os diários) ou pública (artigos e críticas); e, graças ao seu caráter gregário
inerente, constituir um grupo de interesse (cineclubes e revistas), forjando um
espírito de “igrejinha”, de “grupinho”, de “panela”, dos amigos que freqüentam,
conjuntamente, as salas de cinema e prolongam a fruição fílmica por intermédio
de discussões e conversas, após as sessões, em cafés e bares. Um grupo de
iniciados, que compartilha, afetiva e reflexivamente, os prazeres e os
mistérios da sala escura.
Entretanto, subitamente, de um momento para o outro, os
filmes de Jodorowsky saem do pequeno círculo dos admiradores para conquistar o
grande público. Após décadas de semi-obscuridade, a sua obra é veiculada pela
indústria cultural ao encontro de novas gerações. A hedonista sociedade de
consumo abre os braços para o cineasta cult e underground, para
as delícias de “neo-esotéricos” da new age e de compulsivos cinéfilos “conectados”,
ávidos em assistir um filme após outro, via emule ou youtube. Final
e felizmente, tais filmes estão ao acesso de quem quiser, para o agrado do
próprio Jodorowsky. A sua visibilidade detona a respeitabilidade reservada aos autores
“malditos”. Atualmente, a relação que Jodo busca estabelecer com o seu público
é para fins terapêuticos. Ou seja, mais do que nunca, Jodorowsky afirma, explicitamente,
que utiliza – e muito bem! – o cinema para fins alheios aos do próprio cinema.
Melhor dito: o cinema também pode ser uma experiência religiosa! Por que
não? E, graças a isto, seus filmes são tão impressionantes. Para o gozo dos
“esotéricos”, que agradecem tais experiências sensoriais. E, para a alegria dos
“cinéfilos”, por utilizar, justamente, o cinema, e não outra manifestação
artística. Ainda bem...
Fabián Núñez
1. BAECQUE, Antoine de. La cinéphilie: invention d’un regard, histoire d’une culture
1944-1968>. Paris: Fayard, 2003.
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