ENTREVISTA COM ALEJANDRO JODOROWSKY

Apesar de já ter perambulado por várias partes do mundo, Alejandro Jodorowsky nunca tinha vindo ao Brasil. Em novembro de 2007, o cineasta veio ao país para acompanhar de perto o Festival Jodorowsky ocorrido no Centro Cultural Banco do Brasil do Rio, de São Paulo e de Brasília. Jodo aqui realizou uma série de palestras sobre as suas principais atividades: cinema, quadrinhos e tarô. Também deu workshops e participou de noites de autógrafos. Sua agenda no Brasil estava realmente cheia de compromissos, mas eu e Fabián Núñez conseguimos agendar um encontro com o grande artista. Fomos ao hotel onde ele estava hospedado e fizemos esta entrevista, na qual Jodo nos conta um pouco sobre a sua trajetória e sobre a sua arte. (EG)

Estevão Garcia: Você saiu do Chile com 23 anos e foi à França com o objetivo de estudar pantomima com Marcel Marceau. Depois desta experiência você desenvolveu sua carreira de diretor de teatro e cinema no México. Como se deu essa passagem, o que te levou a viver e trabalhar no México?

Alejandro Jodorowsky: Primeiro foi o idioma. Teria mais facilidade em me expressar lá do que na França. Surgiu a oportunidade de assinar um contrato para dar uma série de aulas de teatro no México, aí eu fui para realizar essas atividades e acabei ficando. No México encontrei muitas possibilidades para trabalhar com teatro. Eu fiz muito teatro, que foi o instrumento para a criação do meu mundo; só depois disso comecei a fazer cinema. Demorei um certo tempo; dirigi por volta de 100 peças e elas foram a minha preparação para o cinema.

EG: E como foi a transição entre essas diversas montagens e a realização de Fando e Lis?

AJ: Foi um escândalo. O teatro mexicano estava muito primitivo, não havia teatro de vanguarda. Ionesco e Beckett eram desconhecidos, eu fui o primeiro a montar as peças desses autores no país.  Esse tipo de teatro causava uma polêmica muito grande. Depois vieram as efemérides, os happenings; tentaram fechar os teatros que faziam esses espetáculos, foi uma guerra, foi tudo muito difícil. Nessa época eu conheci um rapaz que era meio mongolóide, um idiota, ele tinha problemas mentais. Eu o coloquei como meu assistente de direção e motorista. Ele foi muito feliz, se divertia muito. Mas, certo dia, ele teve uma espécie de surto, se atirou pela janela e se matou. Aconteceu que o seu pai era muito rico, um joalheiro judeu. Disse-me que, por eu ter ajudado tanto o seu filho, queria me retribuir produzindo uma peça de teatro minha. Eu disse que não precisava fazer uma peça, e sim dirigir um filme. Eu acreditava que era muito barato fazer cinema. Ele então produziu o meu filme, mas não foi tão barato assim.

EG: Nos conte um pouco como foi a recepção de Fando e Lis no México.

AJ: Quando fiz Fando e Lis, eu era jovem. Naquela época, os diretores jovens tinham que pedir permissão ao sindicato dos diretores para dirigir. Você era obrigado a entrar no sindicato. Eu não fiz nada disso. Uma vez entrando no sindicato, eles lhe colocavam cem técnicos para trabalhar no seu filme. Cem! O diretor sindicalizado então tinha que pagá-los. Eu como não tinha dinheiro, peguei um fotógrafo, e pronto. Eu fiz o filme sem nenhuma permissão, totalmente fora da legislação cinematográfica mexicana. Quando finalizei o filme, o organizador do Festival de cinema de Acapulco o assistiu, gostou muito e o selecionou. E a sua exibição foi um estrondo! Quiseram me linchar... Quiseram me matar... Foi um escândalo tão grande que nunca mais teve outra edição desse festival.

EG: Há a famosa história de que o Emílio “Índio” Fernández estava na platéia e furioso sacou de sua cintura um revolver para matá-lo.

AJ: Sim, é verdade. Mais tarde, eu o vi no coquetel e perguntei ao garçom que uísque ele gostava. Pedi para o garçom lhe servir duas garrafas por minha conta. Emílio Fernández tomou uma, e na segunda garrafa já me chamou à mesa, e logo virou meu amigo. E, totalmente embriagado, declarou à imprensa que queria ser assistente de direção do meu próximo filme (risos). E acabou sendo! Porque, em Santa Sangre, ele já havia morrido, mas a sua filha me alugou a sua casa. Filmei na mansão de Emílio Fernández. Então, de uma certa maneira, ele foi meu assistente de direção, né? Então, para poder escapar dos sindicatos, dos sindicatos de cinema, havia um sindicato de curta-metragistas. Me sugeriram dividir o filme em quatro partes e alegar que eram quatro curtas-metragens. E assim, me salvei, porque o meu filme é dividido em capítulos. Cada capítulo tem um título diferente. Todos os meus filmes dessa época são assim. Era um truque para não pagar os sindicatos.

EG: O México é um país que apresenta uma forte tradição surrealista. Entre os surrealistas que viveram ou passaram pelo México estão Antonin Artaud, André Breton, Wolfgang Paalen, Alice Rahon, Eva Sulzer, Benjamin Péret, Leonora Carrigton, Esteban Frances, Gordon Onslow Ford, Edward James, Luís Buñuel. Breton teria dito aquela célebre frase: “o México é o lugar surrealista por excelência”. Como foi para você, travar contato com essa tradição?

AJ: A pintora Leonora Carrighton foi uma grande amiga minha. Com ela, fiz uma peça de teatro chamada Penélope. Com ela conheci e pratiquei tarô. Fui muito amigo dela, por isso voltei ao país. Porque eu fui primeiro ao México e de lá retornei à França, e depois voltei, por causa da minha amizade com Leonora. Eu conto isso em um dos meus livros, em Maestro de la magia. Nele, eu descrevo como a conheci e tudo. Então, havia uma tradição surrealista lá, e a contatei imediatamente.

EG: E você teve contato com Buñuel?

AJ: Claro, estive em seu aniversário de oitenta anos. Eu estive lá. Sim, o conheci. Ele gostava dos meus filmes e eu gostava dos filmes dele (risos). Eu o admirava muito. No começo eu tinha muito ciúme, muita inveja de Buñuel. Para mim, Buñuel era o maior. Ele estava fazendo um cinema fantástico e eu ainda nem tinha começado a filmar. Certa vez, em uma de suas conferências, estavam na platéia todos os jovens diretores. Eles o adoravam, o seguiam. Nessa ocasião eu me sentei bem do lado dele. Buñuel tinha um bolso em forma de sexo feminino. Era surdo. Eu fiquei lá e enquanto ele falava, eu enfiava os dedos no bolso, e comecei a violar o bolso dele... Todos os outros ficaram verdes; era algo do tipo “como ele pode fazer isso com o nosso ídolo?”. E, então, eu disse a mim mesmo: eu vou fazer cinema do meu jeito. E fiz Fando e Lis. Buñuel era um diretor muito consagrado, muito apreciado. Era um cinema incrível, muito honesto. O surrealismo de Buñuel é honesto. Eu o admirei de verdade. Mas nunca imitei ninguém em meu cinema. Decidi que se eu não posso ser o melhor, posso ao menos ser diferente. Fiz um cinema meu, que é diferente, a partir do cinema dele.

EG: Quais são os outros diretores que você admirava nessa época?

Tod Browning, de Freaks. Eric von Stroheim. Eram os dois que mais admirei, Tod Browning e Eric von Stronheim. Os outros eram Fellini, Buñuel, Pasolini... De Pasolini, gostei muito de Teorema. Também gostava muito do cinema de Hong Kong. O bem do inicio. Os filmes chineses, que chegavam, que não se entendia nada, pois não eram traduzidos. Eram como um sonho, era algo só formado por imagens. Todos os personagens voavam pelo ar... Eu via muito cinema fantástico chinês nessa época. É o que eu me lembro. Mas, não posso dizer que os peguei como mestres. Eu gostava, e só. Eu gosto muito de me entreter. Todo dia vejo um filme porque me diverte. Mas eles não me marcam.

EG: Se poderia dizer que nessa época os seus mestres estavam mais no teatro do que no cinema?

AJ: Do teatro, era Antonin Artaud, sem dúvida. Era o que mais me marcava. Não como teatro, mas como teoria. Seu livro O Teatro e Seu Duplo era como uma bíblia para mim. Eu gostava. Agora, já não acredito mais nisso. Naquela época, eu acreditei.

EG: No Teatro da Crueldade.

AJ: Sim, no Teatro da Crueldade. Agora não acredito mais na crueldade.

EG: Em El Topo e A Montanha Sagrada ele é bem presente.

AJ: Sim, é verdade. O Teatro da Crueldade, tudo isso está lá... Sim. Já em Fando e Lis comecei com a alquimia. A influência da alquimia era mais forte do que a do cinema. A influência da alquimia era predominante. Já em El Topo me influenciou o budismo, o budismo zen. E o hinduísmo, o sufismo, o taoísmo. Cada mestre do deserto era uma influência de uma filosofia oriental. Isso me influenciou mais do que o cinema. Já em A Montanha Sagrada me influenciou uma biblioteca inteira! Mas sempre segui o meu caminho de maneira independente. Nunca pertenci a nenhum grupo religioso ou político. Sempre afirmei que não acreditava na revolução política, mas sim na re-evolução poética. Havia dois caminhos, a gente escolhia o caminho político ou o caminho poético. Eu constatei que o caminho político se amarra muito à sua época. Com os anos, as obras políticas envelhecem, perdem o seu valor artístico, se convertem em documentos de época. Tornam-se antigas. Quero fazer filmes que não percam validade. Não me prendi a nenhuma moda, política ou época.

Fábian Núñez: Bom, já que você falou da questão política, geralmente, sua obra é difícil de ser situada no cinema latino-americano, uma vez que, geralmente, se associa o cinema latino-americano a um cinema político.

AJ: Olha, vou lhe dizer. Eu sou muito contestador. Eu estou muito adiantado à minha época. Então, eu evolui. Quando eu cheguei era o realismo mágico de Márquez, Vargas Llosa. E todo o boom literário latino-americano. E logo virou folclore! E logo veio a pátria! Eu não pertenço a nenhum lugar. Nasci no Chile, mas eu não atuo como chileno. Nem como judeu. Nem como russo. Nem como mexicano. Nem como francês. Sou um terrestre. E às vezes ainda me sinto um extraterrestre, porque isso é difícil, não? Eu não quero saber nada de política. Porque me parece que a política é uma máscara do econômico. A política é uma máscara. A democracia é a máscara da ditadura. Porque tudo é dinheiro. Não me meto nisso. Então, os meus amigos me diziam “pronuncie-se” em relação ao comunismo. “Pronuncie-se”. Glauber Rocha também era político, eu o conheci. “Pronuncie-se”, porque senão você não triunfa, não vão te aceitar nunca. Mas, eu digo “não me pronuncio”, eu não tenho por quê. Não me importa Fidel Castro. Nem contra, nem pró. Não me importa Allende. Nem contra, nem pró. Não me meto! Eu estou na poesia. Em um mundo estético, mas não superficial. Em um mundo de alma, que é intemporal e sem definições políticas, nem de raça, nem de nacionalidade e nem de folclore. Odeio o folclore! Simplesmente, digo “não faço folclore”. A tradição é um veneno. E o folclore é outro veneno. Se eu quero expandir o meu cérebro, eu não me meto em folclore. Sei que o carnaval do Rio é fantástico. É folclore, mas ele é feito pelo povo, pelas pessoas. Um artista, não... Eu não me vejo com plumas, com o rabo no ar, dançando samba... Eu não me vejo assim! E nem dançando cueca e nem de charro, com pistolas. Não me vejo! E, bom, eu sempre digo que se você quer fazer política tem que ser político. Che Guevara, por exemplo, ele é político. Mas a arte somente política vai atrair a quem? Vão te ver os que crêem na política que você defende. E, para os que não crêem, não lhes servirá de nada essa arte. Eu estou convencendo a convencidos. Para quê? Inútil. Eu adorei Pablo Neruda quando ele fez Residencias de la tierra, toda aquela poesia, a poesia surrealista, a poesia verdadeira. Mas, quando começou com “eu me chamo Juan, eu sou o povo...” São prédicas comunistas, é de péssima poesia. Talvez, ele tenha razão em suas idéias. Claro que ele tinha razão, que as pessoas têm fome, que as pessoas sofrem. Em tudo isso, ele tem razão. Mas a maneira de lutar contra isso não é através da arte. Se luta de outra forma.

EG: Você falou de Glauber Rocha. Quando você o conheceu?

AJ: Bom, o que aconteceu é que Glauber Rocha exibiu Antônio das Mortes ao mesmo tempo em que exibi El Topo nos Estados Unidos. Lá El Topo foi recebido com um êxito muito louco. Não sei por que, mas se converteu em um cult. Mas como Glauber Rocha era tão político, o sistema americano caiu em cima. O apagaram. Não podia. Não era certo. Não era justo, porque eu tinha visto Terra em Transe e tinha adorado. Vendo esse filme percebi que Glauber era um verdadeiro poeta.

EG: Deus e o Diabo na Terra do Sol, você viu?

AJ: É que tinha outro título. Se chamava Antônio das Mortes.

FN: Não, o outro título de Antônio das Mortes é O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro.

AJ: Não, só vi esses dois. Então, ele me conhecia. Éramos cineastas e em várias ocasiões nos falamos. Mas depois não pude falar com ele, porque estava completamente em outra dimensão. O seu cérebro já... Não quero dizer o que era, mas já não era uma pessoa normal, não estava normal. Parecia que não havia jeito. Estava em seu mundo, não se podia mais estabelecer nenhuma conversa com ele. Eu lamentei muito, porque assim parecia que ele ia morrer. Diga-me uma coisa. Eu não sei nada da vida do Glauber. Eu o vi muito drogado. Estou errado ou não? Ele estava muito drogado. Estava já à beira do coma, não? Me assustei, de tão drogado que estava.

EG: E quando foi isso? Você se lembra?

AJ: Ah, isso eu não me lembro. A última vez que o encontrei foi no México. Ele já estava mal. Não pude, simplesmente não pude, ter uma conversa como tive antes, e pensei que ele ia morrer. Ele estava se autodestruindo de alguma forma. Agora, não sei o que aconteceu. Suponho que tenha morrido disso, não? Não sei o que foi. Imagino que tenha sido o desespero de lutar contra um sistema. O desespero. Mas como você vai aceitar um sistema que você ataca? É absurdo. Você destrói o sistema e quer que o sistema te aceite. A única maneira é ignorar o sistema. Ainda que o sistema te ignore, ele não te destrói. Porque se você o ataca, o sistema te arrebenta. Isso é uma opinião muito superficial. Talvez, eu esteja errado. Talvez eu erre, não sou crítico de cinema, não posso estar falando... No entanto, a mistura de literatura que fazia Rocha, a mistura de literatura com ficção, fora do estilo norte-americano, a poesia, as idéias, tudo isso, era um grande cinema. Para mim, era digno de se admirar. Verdadeiramente. Mas, não me influencio por ninguém. Só gostei, nada mais.

EG: No artigo que eu escrevi para o catálogo da mostra, faço uma relação entre A Montanha Sagrada e um filme muito pouco visto de Glauber, Cabeças Cortadas...

AJ: Sim, eu li o texto, mas infelizmente ainda não vi esse filme.

EG: Há uma relação muito forte entre esses dois filmes, pois, nessa época, a partir de Cabeças Cortadas, Glauber concebe de uma outra forma a política e o que seria uma arte política revolucionária. A sua visão sobre o cinema político, que ao longo dos anos 60 era afinada à dos cinemas novos latino-americanos, no inicio dos 70 se transformou. Essa transformação aparece nitidamente em Cabeças Cortadas e no manifesto A Eztetyka  do Sonho.  Nesse filme há uma força mística e sagrada. Um anseio de perceber o cinema como uma escritura sagrada, que é muito similar à sua obra.

AJ: Claro. Sim, sim.  Eu não vi o filme. Espero que me dêem o filme em DVD para vê-lo. Não o vi. Tenho que vê-lo.

EG: Como você, que fala em uma arte para sanar, em uma arte para curar, creio que Glauber sempre teve uma visão de cinema como algo salvacionista. Um cinema para salvar. Creio que há aí uma outra semelhança.

AJ: Creio que sim. Gosto muito de Glauber Rocha. Mas não que tenha me influenciado, porque eu não sou influenciável. Glauber Rocha era ele. E eu sou eu. Mas creio que pode ter ocorrido uma coincidência, fruto de um mesmo anseio, de uma mesma vontade.

EG: Creio que talvez uma coincidência de contexto.

AJ: É possível, sim. Mas eu creio que a própria política o tenha feito sofrer muito, certo? Por ter seguido o caminho político. E isso é muito decepcionante. Vê o que aconteceu com os comunistas quando caiu a Rússia, por exemplo. Uma catástrofe, não? E logo as pessoas crêem na democracia. Se converteu em ditadura. É muito decepcionante. E todos os que apoiaram Fidel Castro, não? E ele deu volta à força. A revolução... Creio que as revoluções acabam por decepcionar, por fracassar. O que temos que defender é a mutação do ser humano. Não a revolução política, mas sim a mutação espiritual, e, por que não, física. Por que não? Às futuras gerações. Só a mutação vai salvar a humanidade, nenhuma política a salvará.

FN: E sobre os outros cineastas dessa geração, quais você conheceu?

AJ: Brasileiros? Não conheci.

FN: Raul Ruiz, Aldo Francia...

AJ: O último filme que, realmente... Porque os filmes me entretêm, muito me diverte o cinema feito pelos negros dos Estados Unidos, atualmente. Coréia do Sul, claro, eu gosto muito. Creio que na Coréia do Sul está o máximo da técnica. Há coisas. Ou de Takashi Miike, alguns detalhes. Não tudo, porque é uma merda, mas há cenas geniais. E isso basta. Ou Taxidermia, esse foi um filme que me interessou. É o último que me interessou. Creio que é húngaro. Não sei como puderam fazer esse filme... Há um cineasta na Espanha que é bom, eu gosto dele; não é meu mundo, é meio estranho, ele se chama Menem. Não sei se vocês viram, mas fez dois ou três filmes que para mim são muito interessantes. Mas, para mim, te digo; estou em outro mundo, ele fez um filme estranho, mas é outro mundo. Eu gosto muito de Menem.

EG: Conte-nos um pouco de como foi a realização de A Montanha Sagrada.

AJ: É uma história longa…Vou te contar como consegui o dinheiro. Tive um milhão de dólares.

EG: De Allen Klein, não?

AJ: Claro, através de John Lennon. Então, eu podia fazer o que eu queria. Também com Santa Sangre pude fazer o que eu queria. Porque é muito difícil fazer o que se quer, por conta dos produtores e, em seguida, os atores... É que eu não agüento os atores! No meu próximo filme, eu vou dizer “nesse filme não se emprega nem atores e nem animais”.

Nem atores famosos e nem animais. Hoje em dia, para se fazer qualquer filme tem que ter um ator famoso, não? Só assim você pode fazer. Se você não tem um ator famoso, fica impossível. O problema do cinema é os atores famosos. Em La Montaña Sagrada não tinha atores. Uma puta era uma puta. Um nazista era um nazista. Um milionário era um milionário. Assim o fiz. Eles interpretavam eles mesmos. Não precisava de ator. Então, nessa época, eu queria fazer uma experiência. Eu dizia: “por que o cinema não pode ser tão importante quanto um sutra, um evangelho, um texto sagrado? Por que não faço o cinema como um milagre?” Até contratei um guru, e tudo. Fiz experiências... Peguei gente de um bar dos Estados Unidos... Cheguei a alugar uma casa. Dormindo apenas quatro horas por dia, das doze da noite às quatro da manhã. Na alimentação, proteína não tinha (risos). E ainda realizei um curso, estudando como poderia me iluminar e tudo isso. Com um guru. Então, comecei essa experiência. E, ao mesmo tempo, foi uma experiência plástica, de imagens, com símbolos. Realizei um trabalho para essa gente, para iluminá-los. Mas, compreendi que eles queriam apenas atuar, me entende? Eles fizeram uma corrente para trabalharem como atores do filme. E o drama aconteceu quando estávamos numa ilha e nos disseram que ia aparecer a polícia. E eu mandei jogar ao mar toda a droga. Os quilos de droga que haviam trazido sabe-se lá de onde. E logo ficaram sem nada na ilha. E, aí, foi terrível! Já desejavam a minha morte. Foi terrível. Brigavam porque não tinha um bom café da manhã, e sei lá... Porque não se iluminaram (risos). Não se iluminaram... E, assim, decidi terminar o filme, dizendo “Isso é Maya. Isso não é verdade. É tudo ilusão”. Mas, o maior problema não foi esse. Porque um dos sócios fugiu com o dinheiro. Ele fugiu para Israel com trezentos mil dólares. E, por isso, fiquei parado. E eu tinha um ajudante. Se você vê o filme, você vê “produtor associado Robert Tascher”. Era um rapaz americano que chegou a mim e cuidava das cocas-colas, dos limões, e me disse: “precisa de um assistente?, eu posso me ocupar de tudo”. E quando fugiu o sócio, todo mundo ficou lá. E me perguntaram “o que você vai fazer?”. Eu creio em milagres. Alguém vai me trazer sessenta mil dólares, em bolsas, enrolados em papel de jornal, e vamos terminar o filme. Porque Buda quando quis ter um discípulo, na China, se pôs a meditar contra uma muralha. Esperou que o discípulo chegasse, não o buscou. E o discípulo chegou, e assim se transmitiu o zen, não? Alguém vai chegar com os sessenta mil dólares, envolvidos em papel de jornal. Aí está o milagre! (risos) E o rapaz disse  “eu vou embora”. E voltou aos Estados Unidos. E estavam todos loucos: os travestis, as putas e tudo isso. Estavam loucos. Eu dizia: “Esperem! Esperem!”. E, ao cabo de três semanas, voltou Tascher, com os sessenta mil dólares, envolvidos em um papel de jornal.

FN: E como ele conseguiu o dinheiro?

AJ: Ele era filho do maior fabricante de sapatos dos Estados Unidos. Hiper-hiper milionário! Eu não sabia que ele era um milionário. Ele me deu os sessenta mil e assim terminei o filme. Foi como um milagre.

FN: - Em A Montanha Sagrada há uma seqüência em que você, o Alquimista, ensina tarô ao discípulo, o Cristo ladrão. Mas as imagens que aparecem girando não são as do tarô. Que imagens são essas?

AJ: Eu inventei essas imagens, eu fiz essas cartas. Naquela época, eu estava começando a estudar tarô, e acreditei que cada pessoa tinha que inventar um tarô. Agora estou convencido que o tarô é perfeito, não tem nada que acrescentar. Mas, nessa época, eu quis inventar um tarô. Assim, se você detém imagem por imagem dessa seqüência em especial, se alguém fizer isso algum dia, verá que todas essas cartas dizem alguma coisa. Um dia, eu gostaria de explicar...

FN: Bem no começo do filme aparece um anão com uma carta pendurada nas costas.

AJ: Sim, sim. É o desenho de uma mão. O anão não tem mão. Isso é uma gravura religiosa mexicana, onde cada dedo tem um santo. Cada dedo corresponde a um santo. O anão leva essa carta nas costas. Um santo mexicano. E ele não tem dedo. Como é isso? É para pensar... Então, para mim, o personagem do anão é como o ego do herói. Para mim, o Ladrão e o Alquimista são a mesma pessoa, eu os dublei com a mesma voz. São a mesma pessoa. O Alquimista e o Ladrão são um só. Falo de algo que fiz há anos! E ainda continuo falando disso depois de tantos anos! (rindo)

FN: Mas, e a sua arte hoje?

AJ: Eu tive um filho de vinte e quatro anos que morreu. Eu fiquei em choque durante dois anos, com depressão. E comecei a me perguntar: “para que serve a arte?” Tudo perdeu valor. Até que, ao cabo desses anos, vim à tona, e passei a pensar que a única arte que me interessa, a partir de agora, é uma arte que sirva para curar, para sanar. Já fiz arte para falar de meus problemas, de tudo isso. Agora, a humanidade está doente, não? A arte deve servir para curar o ser humano. O que é curar o ser humano? É levá-lo à felicidade. Solucionar os seus problemas psicológicos. Então, converti em terapia, converti a arte em terapia, como a psicomagia e coisas assim. Fui procurar uns curandeiros mexicanos, chilenos. A relação com as pessoas. Tarô. Abri uma outra via, não? E continuo fazendo teatro, agora fiz muitas peças de teatro, fiz HQs, escrevo. Continuo fazendo arte. Poesia. Mas, ao mesmo tempo, tenho uma grande atividade terapêutica. O filme que eu quero fazer agora se chama Psicomagia. Eu vou pagá-lo do meu bolso. Lentamente, eu fui superando esse dilema de poder perder dinheiro. Eu quero fazer um filme não para ganhar dinheiro, mas sim para perder dinheiro. É a minha nova revolução.

Entrevista realizada Estevão Garcia e Fabián Núñez no dia 28 de novembro de 2007 no hotel Othon Rio Palace. (Traduzido do espanhol por Estevão Garcia e Fabián Núñez.)