ENTREVISTA COM IVO LOPES ARAÚJO

Junto a entrevista com Carlos Reichenbach, o papo a seguir dá conta das duas grandes porções de cinema que se apresentaram mais nitidamente em Tiradentes. De um lado, o acúmulo de anos de experiência na realização que ainda consegue produzir filmes que aspiram a novos caminhos, a continuação de uma tradição de invenção que não cessa, apenas se renova (esteve por lá também Cleópatra, de Julio Bressane, para nos provar isso). E do outro lado, uma geração de jovens diretores, agrupados na Mostra Aurora, dedicada a primeiros longas-metragens, na qual Ivo Lopes Araújo foi o grande destaque (ao lado de Bruno Safadi e seu Meu Nome É Dindi). Entre essas duas gerações, uma que já passa dos 60 anos e outra que mal completou os 30, se desenham muito mais proximidades que diferenças. Carlão e Ivo dividem o mesmo entusiasmo e segurança para falar de seus filmes, dividem as mesmas crenças no processo de realização de um filme, onde todo o risco é bem-vindo, toda a idéia pode ser absorvida, sempre em nome da construção de sentidos, de universos próprios a cada filme, e que só poderiam existir ali no interior deles. A seguir, Ivo fala da concepção do dispositivo de Sábado à Noite, dá detalhes sobre a filmagem e montagem do filme, e comenta sua relação com os outros jovens realizadores cearenses, com o qual forma uma das mais pulsantes “turmas de cinema” do cenário brasileiro atual. (RO)

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Queria começar falando daquele grande plano que existe ali no Sábado à Noite, em que o técnico de som do filme aparece captando os ruídos em cima de uma passarela [mais detalhes sobre o plano podem ser vistos na crítica publicada sobre o filme, clicando aqui]. Você mesmo comentou no debate que acredita que esse plano é a grande virada do filme, então a pergunta é como vocês chegaram até ele. Como foi o processo de filmagem, e como é que na montagem se decidiu que ali existiria um ponto de transformação do filme?

O processo do filme é muito maluco. A gente sabia que ia pra rua, o projeto do filme era esse: ir pra rodoviária porque é por ali as pessoas chegam à cidade. A gente cogitou o aeroporto, mas a rodoviária era mais passível de coisas outras – até porque quem chega pelo aeroporto tem uma condição econômica melhor, e na rodoviária a gente também podia pegar pessoas do interior, gente que chegava do interior, o que era uma coisa que interessava a gente. No projeto, a gente tinha dez sábados pra fazer, pra sair pela cidade, partindo da rodoviária e seguindo até o amanhecer. Mas eu sempre achei que devíamos filmar num sábado só. Muito por conta dessa história do digital, de que é barato, e dessa facilidade do “ir filmando”, às vezes você dispersa uma energia fodida e acaba perdendo consistência e força. Quando eu cheguei na oficina do DOC-TV, era com a Cristina Grumbach, e ela disse “olha, tô com muito medo do seu projeto, acho que ele é muito aberto”, ela não acreditava de jeito nenhum do filme. E eu entendo: você lê um roteiro daquele, na verdade um roteiro que não existe, que é um projeto de dispositivo que quer abarcar a cidade inteira. E então ela disse que um passo pra que eu conseguisse fazer era filmar tudo num sábado, e eu disse que acreditava naquela mesma coisa. Daí conversei com a galera do filme, e todo mundo entendeu que era a coisa certa, e claro que todo mundo ficou tenso pra caralho – mas a idéia era essa, todo mundo ficar na tensão de ter que funcionar numa noite. A gente batia a claquete de começo de fita, e eu e o Danilo [Carvalho, técnico de som] escutávamos o que o Armando [Praça, entrevistador/abordador do filme] falava com as pessoas. Logo no começo, na rodoviária, a equipe chegava toda junta, mas aos poucos a gente se separou, e essa comunicação ajudava. O certo é que vários caminhos foram abertos realmente por personagens que o Armando abordava, vários outros a gente seguia com a câmera. Tem um plano que pra mim diz muito sobre o risco que a gente corria: a gente entrou numa Kombi, a Kombi sai de quadro e a câmera fica. Aí entra uma menina em quadro, entra um jornaleiro, e aí a gente escolheu, “vai ser o jornaleiro o nosso personagem!”, mas aí entram aquelas duas velhinhas, “vamos com as duas velhinhas agora”... A gente seguiu com esse caminho, e aí a coisa ficou muito absurda, umas conversas absurdas, na beira da praia uma meninada punk indo pra uma festa, coisa que misturava religião com coisa local, sabe quando você pega a juventude, mistura toda essa maluquice de informação que existe solta pelo mundo, da igreja evangélica ao universo rock’n’roll, tipo “rock’n’roll é paz, amor e amizade, heavy metal é aqueles caras que bebem sangue de gato no cemitério”: os caras falavam isso! Essa seqüência eu jurava que ia entrar, a gente na beira da praia com a molecada andando. Os caras todos de preto, um cara com sobretudo – no Ceará... E eu decupei a cena da mesma maneira que uma outra que acabou entrando no corte final: eu fazia o quadro, os caras cruzavam ele, eu saia correndo com a câmera, refazia o quadro mais adiante, pra seguir o caminho dos meninos. Na hora que a gente filmou, era certo que isso ia entrar no corte final, essa decupagem mais aquelas conversas absurdas, mas acabou que não entrou.

E o plano do técnico de som aparece quando?


Esse plano aconteceu quando a gente estava esperando alguém passar, e o Danilo ficou ali captando o som ambiente daquela avenida. Como a gente estava rodando o tempo inteiro, a gente quase não se falava. Mas a gente tinha conversado muito antes, e era essa mesma a idéia. Pra mim foi muito bom filmar dessa maneira, porque no trabalho com outras pessoas eu sinto que às vezes a direção acaba dando, literalmente, uma direção muito definida pra coisa, e a gente queria experimentar uma direção mais diluída mesmo, onde cada um podia optar por uma coisa. Mas aí são pessoas em quem eu confio muito: a gente sempre trabalha junto, e são pessoas muito próximas, realmente. Danilo é meu vizinho, e o Armando é amigo de conversar todo dia. A gente ia assistindo um monte de filme, conversando, conversando, chegava à conclusão que a gente não sabia exatamente o que ia ser, não dava pra ter nenhuma certeza, e a idéia era essa mesmo: a gente conversava pra poder ficar tranqüilo diante do acaso completo. Nesse dia da passarela, a gente estava ali há algum tempo e o Armando não conseguia pegar ninguém pra conversar. Enquanto isso o Danilo estava ali captando o som. Eu vi aquilo e falei, “vou filmar esse negócio”. A galera passando, e o Danilo captando. Na hora eu senti que aquilo era um troço muito forte, agora, onde e como ia entrar, não dava pra saber. A gente queria mesmo era seguir esse fluxo, seguir pessoas pela cidade, cada um com a sua intuição, com a sua sensibilidade. Quando a gente começou a montar o filme, a partir da definição de qual seria o primeiro plano, a gente já sabia para onde aquele fluxo ia correr. Começou a se construir na edição aquele clima que um amigo meu chama de “subaquático” – eu adoro essa definição –, de um tempo, uma densidade que está ali, e eu queria construir isso. E tudo o que a gente escolheu era em nome dessa densidade, dessa unidade do filme. Claro que tem muita coisa que eu queria ter colocado no filme, e que talvez o deixassem até “mais interessante”, que tinham mais apelo. Mas quando eu colocava diálogos, por exemplo, sempre se perdia esse registro de um outro mundo, essa atmosfera “subaquática” caia muito, acabava caindo em alguma questão social, e a gente viu que não cabia.

Essa atmosfera, a idéia de encaminhar o filme por aí, surge então na montagem, ou era algo que vocês já planejavam antes?

Tem uma coisa fundamental, uma pergunta que o Armando fez logo no começo do processo, que é: esse filme é de descoberta ou reconhecimento? Aí nós fomos assistindo um monte de filme, conversando sempre, e chegamos à conclusão que era um filme de descoberta. Tem dois planos no filme que são planos de reconhecimento, e que na maioria das vezes, quando as pessoas não sabem o que falar, elas vem falar desses planos, que são os que elas reconhecem. Um é o plano da banca de revista [num plano frontal, vemos uma banca repleta de jornais e revistas, montados de maneira a emoldurar, bem no centro do quadro, no único espaço livre, o rosto do jornaleiro], que é uma leitura sociológica fácil, e outro é aquele plano dos manequins na vitrine da loja. A descoberta tinha que ser nossa, e também de quem estava assistindo. A idéia era que a gente se desapegasse dos nossos conceitos, da nossa moral, e isso é uma das coisas que mais dificulta a recepção do filme, porque não há muito no que se apegar. Não é um filme sobre isso ou sobre aquilo, e a gente optou por isso, um filme onde não houvesse muitos conceitos a que se agarrar, onde nenhuma leitura fosse óbvia.

Mas o que eu acho curioso nesse plano do Danilo captando o som é que ele realmente marca uma diferença, uma divisão em duas partes do filme. Na primeira, mesmo que a gente se surpreenda com uma série de coisas – é uma cidade diferente, que a gente ainda não conhece (pelo menos não em filme), vão se armando uma série de estratégias bastante reconhecíveis. Uma câmera parada que espera os carros entrarem no quadro, o movimento disforme das pessoas – há uma certa cartografia do documentário de observação urbana que a gente reconhece ali. E aí um filme “difícil” vai ficando cada vez mais próximo, e quando a gente está próximo de entender a lógica dele, entra o plano do técnico de som (mas, na verdade, toda a seqüência, depois a tela preta que vai misturando o som dos carros com o barulho das ondas do mar). E a partir dali o filme vai apontar para caminhos completamente diferentes. Um filme aparentemente de externas, por exemplo, de repente entra numa casa – e passa um longo tempo lá – uma casa onde está tocando Nina Simone no meio da madrugada. Ao longo do processo vocês perceberam essa diferença, que o próprio fazer do filme foi transformando certas idéias estéticas mesmo, de como observar certos fenômenos que vocês sabiam que iam encontrar de noite? Isso em algum momento foi transtornado, e o filme vira outra coisa?


Na verdade foram duas noites, a gente fez uma primeira que ficou tão boa que a gente não resistiu em fazer a segunda. E foi bom – acho que no material final tem mais coisa da segunda noite que da primeira. A gente tinha mesmo essa idéia de tentar chegar à casa de alguém justamente pra sair dessa idéia das externas, parar de lidar com a cidade como um todo e partir para um momento mais íntimo, e ver como a gente ia lidar com isso. A primeira experiência com isso foi traumática. A gente encontrou dois caras e fomos à casa da irmã de um deles. Estava lá todo mundo em casa, super à vontade, e a gente entrou. Cara, foi horrível... A gente não sabia o que fazer com aquela câmera, como me relacionar com aquelas pessoas, me sentindo invadindo aquela intimidade. Num segundo momento, com essa senhora, a coisa foi diferente. Ela convidou a gente pra ir, e chegamos lá todos muito cansados, já acabados mesmo, todo mundo meio desarmado. E foi um processo diferente: a gente entrou, ela fez um café pra gente, ficamos lá conversando besteira, e só depois a gente começou a filmar umas coisas. Foi um momento de se render: uma trégua pro mecanismo, pro filme. Esquecer um pouco do filme e embarcar na figura, seguir com ela. E pra mim é o momento mais bonito do filme, mais poético – não de linguagem, mas de relação. É quando o filme acontece: a gente entrar às 4 horas da manhã na casa de uma figura que estava trabalhando na beira-mar, que abriu as portas da casa dela pra gente, que acordou todos os filhos dela pra nos apresentar. Foi um momento onde a relação foi possível, onde houve uma generosidade entre pessoas. O plano do técnico de som surgiu na montagem mesmo. A gente foi seguindo o caminho natural da própria filmagem. Rodoviária, Kombi, mulher, jornaleiro, ônibus, parada de ônibus, em cima da parada tem uma passarela, plano do Danilo captando o som: e agora, pra onde a gente vai a partir daqui? A gente não tinha pra onde ir. Era um plano de som, e aquele som tinha a ver com aqueles encontros na praia – daí pronto, corta pra tela preta, funde os dois ruídos, e segue o filme. E da praia a gente já tinha um caminho a seguir, aquele cara na moto, e daí para a casa da senhora. Então foi muito tentar equilibrar essa atmosfera que a gente queria com o percurso que a gente tinha feito, e aí não importava muito se externas ou internas, desde que esse espírito fosse mantido. Se dentro da casa daquela senhora a gente conseguisse imprimir a mesma sensação dos exteriores, então valeria a pena. Por exemplo, a gente tem muita fala dela, mas tiramos tudo, deixamos só a música, a televisão, aquela filha dela que vem andando na direção da câmera, se senta. E acaba mesmo sendo surpreendente. Porque como o acaso era algo que a gente queria na filmagem, isso também teria que valer na montagem.

E esse acaso acaba valendo também pra recepção do filme, porque ele vai transtornando certas pré-concepções que se poderiam ter a respeito dele, e te levando para outros caminhos. Mas, ao mesmo tempo, o filme segue um arco – para usar a referência que você mesmo já declarou –, um arco bastante “sinfônico”, começa no entardecer e termina no amanhecer, e o amanhecer é o espaço de uma certa epifania, a câmera finalmente se perde, louca, espantando pombos – que me parece a referência mais direta aos filmes de sinfonia da cidade dos anos 20 e 30. Mas ainda que essa atmosfera esteja estabelecida, e uma idéia interior de mundo, do mundo do filme, esteja muito clara, ali dentro aconteceu coisas muito...

Absurdas, né...

Exato. Mas dá para perceber, e vocês deixam isso claro na única fala em off do filme [quando Armando aborda um grupo na rodoviária e informa que se trata de um documentário para a tevê e que o objetivo é percorrer a cidade pegando carona com desconhecidos], existia um dispositivo declarado. E ainda que ele tenha algum ineditismo – pegar carona e ver até onde o mundo vai levar o filme, aleatoriamente – existe também uma convenção. Vocês continuaram pegando carona com as pessoas, mas o dispositivo é abandonado em algum momento, talvez por uma rejeição à expectativa do que um documentário de dispositivo tão bem definido assim pode fazer. Ao mesmo tempo, vocês estão lidando sempre com uma bagagem do documentário poético contemporâneo, mas lidando de maneira arredia com ela. Mesmo quando você espera que seja um filme da observação dos movimentos desta cidade, de como Fortaleza não dorme, em algum momento a cidade pára, e então o filme tenta despertá-la (acossando os pombos, tentando enxergar movimento nas luzes dos postes de uma praça). Como se resolviam estas questões, de ao mesmo tempo negar estratégias clássicas, por exemplo, retirando os todos os diálogos, todas as falas, e de um outro lado lidando diretamente com uma bagagem muito próxima – e aí acho que entra não só a sua experiência como fotógrafo dos filmes dos outros, mas também a sua experiência de cinefilia, via filmes baixados na internet ou vistos em festivais – de ter contato com uma série de coisas que estão acontecendo no cinema do mundo inteiro, e mesmo aquilo que se tem feito, por exemplo, aqui mesmo em Minas, no que tange o documentário experimental. E o Sábado à Noite não me parece se filiar tão diretamente a essa corrente contemporânea. Como vocês viam isso, tanto na hora de conceber o filme quanto na hora de montar?

Eu adoro as coisas de Minas. Essa seqüência dos pombos, me vinha à cabeça o Cerrar a Porta, do Pablo Lobato, aquela seqüência em que ele corre no meio das árvores, é uma seqüência de total desespero, sabe? Correr atrás dos pombos em pleno amanhecer, para mim, é isso, total desespero. Eu adoro as coisas do cinema mineiro, mas pra mim tem uma coisa que é muito diferente. A gente vem aqui pra Minas e tá todo mundo muito bem vestido, todo mundo é bonito, tem um design, uma coisa... E em Fortaleza não é isso. Todo mundo veste pouca roupa, é mal-vestido, é muito quente, não tem esse design, esse acabamento. Então eu pensei: “não posso fazer um filme que seja todo no design, todo bem acabado”. Por exemplo, eu não fiz marcação de luz nesse filme. Se as imagens resultaram lindas, é porque elas foram concebidas na hora daquele jeito. Eu não pensei em dar uma contrastada, aplicar uma textura. Existe uma crueza ali, que é uma coisa muito nossa, e ao mesmo tempo tem uma poesia. E a idéia era essa: ver poesia naquilo que é duro, que é cru, numa cidade vazia, procurar a poesia ali. Eu tenho uma dificuldade imensa com falas, porque elas trazem essa impressão de mundo real que eu não sei se me interessa muito. Me interessa muito mais a construção de um possível mundo ali, que se relaciona com o mundo real mas que não é o real, onde se precisará cair num documentário clássico, no registro de uma conversa. Eu tentava colocar isso no filme e sentia que estava me enganando. Em relação ao dispositivo, a gente usou bastante. Mas a gente anunciou ele logo no começo do filme justamente pra não precisar se apegar a ele. Era possível fazer um filme sobre o dispositivo. Tem vários momentos de fala, se dá certo ou se não dá, entrar na aventura daquela equipe durante aquela noite. Mas, mais uma vez, isso trazia muito pra essa idéia de realidade, uma tentativa de reconstruir uma realidade a partir de uma experiência, e a gente queria muito mais essa coisa sensorial. A gente passou 12 horas direto filmando, era exaustivo. Naquela hora dos pombos, eu já estava cansado, era muito intenso. Então a idéia da edição era muito mais reconstruir essa sensação da noite, da passagem do tempo, de como você se relaciona com os sons, aquele lugar, aquelas pessoas que passam ali, do que dar conta de um mecanismo, ou da cidade com um todo, o que é impossível.

Aproveitando, pra falar da sua experiência como fotógrafo... Acho que você está envolvido de alguma maneira em todos os filmes cearenses exibidos aqui em Tiradentes, nem que seja nos créditos de agradecimento – no filme do Salomão [Santana, o vídeo Vidança], você aparece como orientador, ou algo assim – e são filmes muito diferentes entre si. Mesmo nos dois filmes da Mostra Aurora dos quais você participou – além do seu próprio, o filme do Petrus [Cariry, O Grão, do qual Ivo é diretor de fotografia] – filmes que vêem a coisa de maneira bastante diferente. O filme do Petrus, por exemplo, é um que acredita fortemente na fabulação pela palavra, e ao mesmo tempo tem um trabalho de fotografia seu que não vai exatamente emoldurar essa fala, mas que vai procurar signos visuais naquele ambiente que ajudem o filme a andar, mas talvez o Petrus não ache que seja possível, e então recorra ao diálogo. Como você vive essa tensão? Primeiro, de fazer seus próprios filmes – e aí você também os fotografa, opera a câmera – e de lidar com projetos que não sejam seus necessariamente, e como você se mistura com essas influências. Por exemplo, você falou que uma influência forte para O Grão era o Pedro Costa. Isso vem de você, vem do Petrus, como foi?

Isso foi mais ou menos na mesma época, a gente foi descobrindo Pedro Costa junto. Ele me dava um DVD, eu dava outro pra ele. O Ossos foi bem forte, ele passou o Ossos pros atores, e acho que algo que segurou muito a onda dos atores foi ter visto o filme. Mas essa coisa de ser diretor e também fotografar o filme dos outros é muito maluca. Eu nunca tive uma formação técnica muito dedicada, eu nunca fui muito estudioso. Vou conversar às vezes com a Andrea Capella [fotógrafa carioca de filmes como O Nome Dele (O Clóvis) e Jonas e a Baleia], e não entendo nada do que ela está falando... [risos] Ela tá estudando pra caramba, e eu não tenho isso, de pegar a [revista] “American Cinematographer”, não tenho mesmo. Uma coisa que eu sempre faço quando vou fotografar o filme da galera é ter uma conversa sobre linguagem. A gente vai conversar de decupagem, e tal. E o resto das coisas eu vou aprendendo nessa conversa com outros fotógrafos, com a Andrea, com o Roberto Iuri, que é lá de Fortaleza. E quando eu tenho uma dúvida, não tenho a menor vergonha de ligar: “olha, eu tô aqui com uma câmera nova e não faço a menor idéia de como mexer nela”. Com Petrus, por exemplo, eu conversava muito, e sobre tudo. Tinha hora que eu falava sobre os atores, “olha, eu acho que tá muito...”, e aí ele tirava as conclusões dele. Em vários momentos é muito difícil, porque eu sou um diretor muito preciso nas coisas que eu quero e nas coisas em que eu acredito. Nessa questão das falas, por exemplo, é muito delicado o trabalho com o ator. Eu dei muita aula, voltei pro Ceará e comecei a dar muita aula, formar gente no interior. Salomão mesmo foi descoberto no Cariri, a 700 quilômetros de Fortaleza. Fiz dois cursos lá, pelo Instituto Dragão do Mar, e ele foi um cara que se dedicou, se jogou mesmo, mudou pra Fortaleza, e tá aí na batalha agora, se virando e aprontando, fez um filme lindo chamado A Curva. Então tem vários filmes que eu vou fazer que são dirigidos por pessoas que estão começando, que nunca tiveram contato com filme, com um set, e em vários momentos eu dou uma de professor mesmo, de deixar o cara errar. Eu sei que aquele ator não está bem, mas não posso fazer o filme pelo cara. Então eu me aproximo pela conversa, tento tirar deles o que os move a fazer aquele filme, a partir de que linguagem. Acho importante terminar os filmes mesmo com problemas: o filme tem que passar pra outras pessoas, esses caras tem que escutar a repercussão. Mas é algo confuso sim, equilibrar o diretor, o fotógrafo e o professor.

Uma última pergunta. A outra entrevista que eu fiz aqui em Tiradentes foi com o Carlão Reichenbach, e vocês dois foram os únicos que eu vi falando, nos debates sobre os filmes, que no trabalho diário de se fazer cinema existia um caráter de cinefilia muito importante, e uma cinefilia atrelada à Internet, às possibilidades de acesso a filmes não facilmente encontráveis pelos meios tradicionais. No seu caso, por exemplo, é até uma questão geográfica mesmo, não existe um Festival do Rio nem uma Mostra de São Paulo em Fortaleza, e é uma distância muito grande pra ir até esses eventos, pra ter acesso ao que está se produzindo agora pelo mundo. No caso do Carlão, é muito mais um garimpo por filmes antigos que passaram batidos pela história. E isso está muito evidente nos filmes – e a Mostra Aurora ratifica isso: dá pra perceber que são filmes de diretores que vêem filmes, o que é infelizmente algo raro no cinema brasileiro, as pessoas esqueceram que se aprende vendo. Então, primeiro, em que medida essas coisas te afetam? E também, na sua relação com o cinema brasileiro, que não está ainda na Internet com o mesmo volume e rapidez que os filmes estrangeiros, e que certamente também não chegam aos cinemas de Fortaleza, como se dá esse contato?

A minha parte no esquema de pirateagem e troca de DVD’s lá entre a galera de cinema de Fortaleza é mais nessa parte de distribuição de coisa brasileira, de eu entrar em contato com os caras que andam fazendo cinema, sobretudo curta-metragem, e que eu vou conhecendo pelo país, e eles me mandarem DVD’s pelo correio. Mas eu sempre fui muito defasado em relação a longa-metragem internacional, e pra isso foi muito importante eu ter conhecido, quando morei no Rio, os irmãos Pretti, o Ricardo e o Luiz, e o Marcelo Ikeda, que são caras que vêem tudo, estão super antenados. É muito filme, e eu acho que nunca vou dar conta... Da turma, eu sou um dos menos cinéfilos, enquanto a galera sabe de tudo o que acontece em cada canto do mundo. Do pessoal que tá aqui em Tiradentes, o Guto [Gustavo Parente, diretor do curta Cruzamento], o Salomão, os meninos baixam muito filme. Já viram tudo do Hou Hsiao-Hsien, do Apichatpong, do Jia Zhang-ke, e eu ainda não consegui ver tudo. Agora, sobre essa história das influências, acho que tudo está sempre nos influenciando, e é só uma questão de escolher quais te servem no trabalho que você quer desenvolver. Esses asiáticos, têm alguns que me influenciam bastante, tem alguns que eu gosto, respeito, mas não me tocam profundamente. Kiarostami me toca pra caramba, eu fico assustado. Ao mesmo tempo, eu adoro o Terrence Malick. Mas eu acho que, no meu trabalho, conta muito mais a intuição do que a bagagem de cinefilia. Tanto que, quando eu me mudei pro Rio pra fazer faculdade de cinema, eu já fui fazer um vídeo no meu primeiro semestre. Nunca tinha ouvido falar em Julio Bressane ou Rogério Sganzerla. Glauber Rocha eu conhecia, mas tinha visto poucos filmes. E depois no segundo semestre mais dois... E isso foi uma coisa que eu tentei levar pra Fortaleza: organizar oficinas pra galera conseguir realizar. Sempre tive uma facilidade pra realizar, e sempre botei pilha pra que a galera conseguisse realizar os trabalhos deles. Então o meu papel maior no meio dessa turma, mais que o da cinefilia, era o da prática. Seguir a intuição e fazer. Por isso que meu nome tá em vários créditos por aí... [risos] Emprestava câmera, arrumava ilha de edição pra galera montar.

E o que vem pela frente aí?

Eu ganhei um edital de curta lá no estado, e vou fazer agora, tá no prazo limite. Mas foi bom ter vindo pra cá e ter encontrado com o Bruno [Safadi], que eu não via há muito tempo. Porque a gente conversou, e eu resgatei uma idéia de um média-metragem, que agora eu vou transformar num longa curto, coisa de 70 minutos, e também super leve e barato de fazer, como o filme dele. É uma coisa em primeira pessoa, meio Jonas Mekas, meio Agnès Varda. Quero juntar uma graninha pra conseguir fazer direitinho: vou fazer tudo em 16mm, usar uma Bolex antiga, vai ser uma coisa meio romântica, assim. O último filme romântico. [risos]

E é ficção, é documentário?

Um pouco dos dois, sabe.

E vai se arriscar com diálogos?

Provavelmente não. [risos]

Entrevista realizada por Rodrigo de Oliveira, no dia 23 de janeiro de 2008, no Centro Cultural Yves Alves, em Tiradentes.

 

 






Ivo Lopes Araújo durante o debate de Sábado à Noite
na Mostra de Tiradentes