SÁBADO
À NOITE,
de Ivo Lopes Araújo
Tudo o que se poderia imaginar de um documentário autoral/conceitual
que se anuncia como uma "viagem noturna por Fortaleza"
está lá,
materializado nas imagens de Sábado à Noite.
Os planos silenciosos e
estáticos em que nada parece acontecer até que se descubra eventualmente uma
invenção do cotidiano (uma pessoa que passa, carros que cruzam o quadro, rostos
fugidios em lugares estranhos, ruídos e formas diversas), a câmera observadora,
destinada à paciência da espera por alguma iluminação natural, alguma
manifestação do mundo ao qual se dirigir. Por outro lado, a apreensão surrealista
dos indícios mais corriqueiros de realidade (postes de luz que se tornam pontos
brancos móveis e indistintos, reflexos das mais variadas naturezas e motivos,
o jogo de agitação da imagem quando a câmera passeia
dentro de um ônibus). Cada momento desses, no fundo, uma reapresentação, em contexto
diferente, de uma mesma idéia de beleza cotidiana que brota "naturalmente" diante
do aparato cinematográfico, a golpes extremamente calculados do realizador, numa
onda que tem atingido o documentário brasileiro recente (sobretudo dentro do
espectro de filmes realizados no projeto DOC-TV,
do qual Sábado à Noite faz parte, e que já teve recentemente filmes como Acidente
seguindo esta mesma lógica da
plasticidade a fórceps).
Ao mesmo tempo, sempre que decide embarcar naquilo que parece lhe pertencer muito
particularmente, uma idéia posta em cena na primeira
seqüência do filme, Sábado à Noite não só consegue produzir imagens de
absoluto encanto, como também se veste de um conceito que não nasce de outro
lugar que não de sua própria estrutura. É o tal momento da "regra do jogo" que
Eduardo Coutinho tanto comenta e que Ivo Lopes Araújo apresenta na única fala
em off dita no filme todo. Estamos na rodoviária de Fortaleza e
ouvimos a abordagem de alguém da equipe a um grupo que está saindo dali de carro.
A idéia é que a câmera ("de um documentário que vai passar na TV
Cultura") os acompanhe no carro, numa espécie de carona, até onde o motorista
for, para que então se aborde um novo carro, e o filme nasça deste passeio
involuntário pela cidade. O grupo da rodoviária se nega à carona, mas ali está lançada
a idéia de um trabalho de câmera e de som que só se materializa pelo
gesto físico, pelo deslocamento anunciado, muito mais pela busca atribulada de
imagens e ruídos do que necessariamente no encontro plácido e ocasional com eles.
Há, num certo sentido, um desejo de perceber em Fortaleza uma cidade que nunca
dorme, jogando-se na idéia de que a madrugada é um espaço tão pleno de movimento
quanto o dia (não se começa numa rodoviária à toa). Mas Fortaleza não é São Paulo
ou Nova York e quando sua noite dá sinais de cansaço e anuncia claramente que
ali se dorme sim, Sábado à Noite começará, por conta própria,
a forjar
movimento
onde antes não havia nenhum. São os únicos momentos de perda
de controle da câmera, que está na mão e atua frontalmente sobre (e contra)
o que se põe à frente. Persegue pombos que comem coisas da rua, afugentando-os
até que alcem vôo e depois se embriaga de uma seqüência de
postes numa praça, correndo atrás deles e provocando um efeito de dispersão confusa
da luz, muito distante daquela figuração de vídeo-arte dos pontinhos luminosos
brancos e dançantes.
O momento no qual esta operação aparece mais bem exposta (e
que, isolado, é uma das grandes seqüências exibidas na Mostra de Tiradentes até agora) é o
longo plano que mostra Danilo Carvalho, o técnico de som do filme,
armado
de
um gravador e um microfone enorme, registrando o ambiente da cidade a partir
de
uma passarela
de rua. Há uma coincidência entre a movimentação física do
técnico, que aponta o microfone para diversos pontos do ambiente,
e aquilo que ouvimos na banda sonora do filme. Um grupo de pessoas vem atravessando
a passarela e, ainda que percebamos que conversam entre si, só ouviremos um resquício
desse diálogo uma vez que o técnico, manualmente, desvia o microfone dos carros
da rua e aponta-o diretamente para estas pessoas. A
interação com a cidade não é passiva, muito pelo contrário: está baseada no contato
direto, corpóreo, da equipe com o que a cerca. E então, tendo ficado longos minutos
observando aquele jogo de suposta "denúncia" do aparato, Ivo
Lopes de Araújo deixará a tela preta e seguirá com o som ambiente ocupando sozinho
o espaço do filme. Para onde estará o técnico direcionando seu microfone agora?
Em nome daquilo que ouvimos de fato, que outros sons estão sendo deixados de
fora por quê não participam do campo de captação do aparelho
(e das intenções do realizador)? A tela preta se estende e o filme – tendo nos
mostrado literalmente sua produção a fórceps, esforço concentrado, cálculo sobre
o acaso – finalmente não nos amarra à apreensão obrigatória de um belo de força
centrípeta, que
restringe
os sentidos, que se fecha no interior da imagem. Pelo contrário, se há alguma
beleza
na
banalidade
(mesmo
quando
a imagem for suprimida e o que ouvirmos for o mesmo som presente diariamente
na
vida de qualquer cidade grande), seu princípio só pode ser a expansão da
experiência perceptiva. É quando retornaremos à luz, desta vez
não mais na
rua agitada, mas diante do quebra-mar, e aquilo que imaginávamos como
puro barulho
do
trânsito
se transformará alquimicamente no som das ondas na praia. Não são
muitos os filmes
que
conseguem, ainda hoje, devolver ao jogo simples de imagem e som uma categoria
de revelação sensorial e são mais raros ainda aqueles que,
como Sábado
à Noite, parecem
verdadeiramente nos meter num buraco negro (ou noturno), de onde se saia com
a impressão de que nossa relação com o cinema foi verdadeiramente "re-purificada".
E que essa ilusão só dura até o amanhecer.
Rodrigo
de Oliveira
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