Vidas
em Fuga é certamente o mais desconhecido dos
filmes que Tennessee Williams roterizou a partir
de suas próprias peças,
nos anos
50. De Um
Bonde Chamado Desejo, de Elia
Kazan, a De Repente, No Último Verão,
de Joseph L. Mankiewicz, trabalhos em que o fazer cinematográfico se experimentava
tão mais profundamente quanto mais assumidas fossem as raízes teatrais de suas
tramas, sobretudo pela participação ativa de Williams na produção e filmagem
dos
projetos, em parceria com diretores já experientes, mas distantes
da "velha Hollywood". Em 1959, Sidney Lumet era o mais garoto dessa turma,
e
aquele cujo trabalho anterior mais poderia se relacionar com a estrutura
dramática e cênica de uma peça – referência direta à capacidade
de fazer fluir uma narrativa dentro de um único espaço como fizera em sua
estréia, Doze Homens e Uma Sentença.
Lá, no filme de tribunal, Lumet conseguira manter a tensão e o interesse naquela
pequena sala do júri exatamente porque partiria dali uma
decisão que dizia respeito a seu exterior, um microcosmo social capaz de influir
diretamente no andamento do mundo lá fora. Ainda que aquele pequeno
laboratório de experiências humanas permanecesse selado a qualquer investida
desse fora-da-tela, era o horizonte de sua existência que preenchia de ar essa
narrativa enclausurada. Vidas em
Fuga, realizado apenas dois anos depois, é um passo mais radical ainda.
A idéia de movimento está presente em todos os personagens e
situações. Marlon Brando é Valentine "Snakeskin" Xavier, um músico
de New
Orleans
famoso por sua jaqueta de couro de cobra e sua rebeldia, fugido de
sua cidade natal por conta de um pequeno crime que cometera. Ao chegar a um pequeno
povoado do Mississipi, encontra-se com Carol Cutrere (Joanne Woodward), ovelha-negra
típica, menina destemperada que já causou tantos problemas para a comunidade
que foi proibida de se estabelecer por ali, precisando manter-se
sempre em trânsito. Mais ainda, quando Xavier finalmente conseguir um emprego
fixo e decente, será na loja de Lady Torrance (Anna Magnani), uma imigrante italiana
que um dia assistiu a destruição do vinhedo do pai, criminosamente incendiado,
e que, desde então, tenta refazer este caminho interrompido pela
ganância e preconceito locais.
Ainda que uma série de tipos conservadores circunde a
narrativa, é a estes três outsiders que
a trama se cola, e sua natureza íntima é fundada no não-lugar, na impossibilidade
de ajuste a qualquer ambiente, na necessidade da estrada, do movimento
perpétuo. A peça de Tennessee Williams em que Vidas em Fuga se baseia chama-se Orpheus Descending, e se há um sentido que o filme de Lumet toma,
ele não é nunca o da fuga sugerida pelos títulos em português e inglês, a
trajetória horizontal de um personagem em busca de espaços que melhor o recebam.
É sim o sentido da referência à mitologia grega: uma descida vertical,
interior, rumo ao inferno pessoal desses tipos marginais. O movimento corresponde
ao
fora-da-tela, à sugestão de viagens que nunca acompanharemos. E quando aparece
dentro da tela, não pode ser de outra forma que não na utilização da back projection.
Há uma seqüência específica em que Lumet aplica esta técnica
tão comum na época: Marlon Brando e Joanne Woodward saem de carro da cidade,
rumo a um boteco de beira de estrada. O carro está parado, Brando finge estar
dirigindo enquanto o fundo (uma tela de cinema, provavelmente) exibe uma
sucessão de paisagens que imitam o entorno da estrada por onde supostamente os
dois estariam passando. Ao mesmo tempo, um jogo de luzes sobre o corpo dos atores
nos sugere que a luz da lua também veio participar da cena, sendo refletida ou
interrompida de acordo com o tamanho das copas das árvores pelo caminho. O olhar
de Lumet sobre a obra de Tennessee Williams pega emprestado
dessa idéia da back projection seu
desdobramento em cinema. Por diversas vezes em Vidas em Fuga, à medida que o interior da cena for recrudescendo
ainda mais seu senso de imobilidade, quando os personagens abandonarem completamente
a idéia da transitoriedade e passarem a mergulhar mais
profundamente em seus próprios traumas, tanto mais Lumet e seu grande fotógrafo
Boris Kaufman considerarão esta cena como um palco para "projeções
de
fundo".
Não
raro, haverão mudanças bruscas de iluminação que acompanhem a carga dramática
dos diálogos. É esse o movimento possível em Vidas em Fuga: dramas individuais imóveis, cujo dinamismo é adquirido
por empréstimo, através da transformação do entorno, da adição de sons
que
não fazem
parte da ação, da mudança de ambiência, de clima, de foco, de
enquadramento.
Não é difícil olhar para este Valentine Xavier aqui e
relacioná-lo aos desgarrados que poucos anos depois seriam filmados por Andy
Warhol no underground, ou por Martin
Scorsese e Sam Peckinpach na "nova Hollywood". Mas Lumet (e Elia Kazan também)
ainda se permite viver o drama em toda sua potência, ainda
acredita na experiência total da tragédia como definidora dos espíritos, ainda
devota à metáfora verbal o papel de grande reveladora das fissuras morais existentes
em seus personagens. Tudo isso que a matriz de Tennessee Williams permitia, e
que à Lumet impunha não um trabalho de encenação (tudo já está dado: há um mal-estar
permanente em todas as relações estabelecidas, mesmo quando sinalizem
para um clima de romance ou de aventura descompromissada). Vidas
em Fuga não cria um mundo para si, mas tenta colocar em processo aquilo que,
na letra fria da peça, já era um
estado. O trabalho de Lumet é justo esse, o da organização e ativação
de sentidos.
Poucos
filmes
resolvem
tão bem como este aqui a relação entre o cinema e o teatro. Está tudo lá na grande
seqüência do filme, quando primeiro se estabelece uma
relação afetiva entre Brando e Anna Magnani. Sozinhos no
palco-cenário, ele conta a história de um pássaro que não tem pernas, e por isso
passa a vida inteira voando e só pousa quando está prestes a morrer (uma
história tão parecida à sua própria). Inicialmente descolado do fundo – bem à moda
de uma back projection – a figura de
Brando vai ganhando relevo à medida que a câmera se aproxime dele e a
iluminação do lugar, magicamente, se transforme, como se trabalhasse a favor
daquele pequeno conto moral que ele desfia, como se o mundo estivesse
prestando tanta atenção a seu monólogo quanto Anna Magnani. Cada
vez mais próximos, perceberemos que há uma luz própria para Brando, irrealista,
anti-ilusionista, e essa luz em seu rosto, como uma espécie de lua particular,
se refletirá ainda mais irrealistamente em Magnani. O óbvio, mas ainda assim
irrefutável: esta luz, esse brilho, essa conversa de rostos dada por um campo/contracampo
simples e ao mesmo tempo estarrecedor, essa proximidade do drama, do sentimento
manifestado em gesto, isso só mesmo
dispondo de uma câmera – e de alguém que saiba colocá-la ali onde ela não deveria,
mas que, atrevida, insiste em estar.
Rodrigo de Oliveira
(DVD: MGM)
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