Hoje, o público ocidental já se
encontra habituado ao terror oriental mais corrente,
com seus fantasmas atormentados pelo sofrimento e pela
morte, que buscam na interação com os vivos uma forma
de expiar a sua dor ou de se vingar. Esta saudável
familiarização com um gênero diferenciado dos consagrados
por Hollywood mostra-se bastante frutífera à medida
que novas obras podem ser lançadas aqui e podemos desenvolver
melhor percepção crítica desta produção e seus casos
particulares.
Kiyoshi Kurosawa é um dos mais importantes realizadores japoneses revelados recentemente,
embora ainda seja pouco conhecido, sobretudo no Brasil. Seus filmes raramente
aportam em nossos festivais. Famoso por sua inventiva apropriação de gêneros
tidos como B, Kurosawa é, sem dúvida, um cineasta a ser notado no contexto do
cinema contemporâneo. É, portanto, uma grande alegria contemplar o lançamento
do seu último filme em DVD.
Vítima de Uma Alucinação inicia-se com um assassinato; a ele segue-se
um breve mas forte terremoto. Este tremor da terra, que não raro provoca
uma reconfiguração espacial, coloca em cena dois importantes aspectos do
filme: a oscilação da alma e a fratura do espaço cênico convencional. A área
portuária de Tóquio na qual se passa o filme, um aterro feito às pressas
que corre o risco de virar um verdadeiro pântano toda vez que ocorre um abalo
sísmico, sugere o tempo todo um espaço efetivamente em construção. Entre
as citadas “destruições e reconstruções” que se dão no lugar, estão prédios
residenciais e de órgãos públicos.
Kurosawa é, notadamente, um cineasta do espaço: reinvenção de ambientes, geometrismo
da composição, desorientação espacial, quebras de eixo. Mas, em Vítima de
Uma Alucinação, é como se a ligação íntima do filme com o sítio em que se
transcorre fosse uma questão de Geografia, de estudo do homem no espaço. De fato, à medida
que a narrativa avança, descobrimos que o canal que banha a região está no cerne
da trama a ser desvendada e é o responsável por interligar todos os envolvidos
no mistério. A tal viagem de barca que percorria quinze anos antes o longo destas águas – este
deslocamento coletivo no espaço – é a origem do problema de (in)visibilidade
que deve ser reparado a qualquer custo.
Todo filme de fantasma já traz em si a prerrogativa da visão problematizada,
pela iminência constante da aparição, do surgimento de um elemento estrangeiro
no campo do visível. A arte de Kurosawa está, porém, na implicação humana destas
questões trazidas pela formatação dos gêneros. A grande panorâmica descrita pelo
percurso da barca no canal não apenas conecta os passageiros à paisagem, como
oferece a eles a possibilidade de tomar conhecimento do que existe na região
e do que se dá naquelas redondezas. A escolha de como reagir ao visto torna-se
então uma escolha moral, ao mesmo tempo pessoal e social.
Yoshioka e os demais deverão se confrontar diretamente com os sentimentos provocados
por sua escolha de ignorar as práticas desumanas perpetradas pelo sanatório existente
nas proximidades. A vingança da fantasma não é somente uma retaliação, ela é um
chamado à responsabilidade. E este chamado irrompe na experiência do real, alterando
a percepção de mundo dos “responsáveis”. Não à toa as aparições se dão sempre
pela mediação do espelho dentro da imagem. O reflexo, duplo que corresponde ponto-a-ponto
ao campo refletido, anuncia uma “deformidade” na normalidade e sobrepõe a virtualidade
de sua nova imagem do mundo ao real. Como se abrisse outra dimensão dentro do
conhecido, a janela do espelho abre um quadro dentro do quadro no enquadramento
preciso de Kurosawa, possibilitando à fantasma agir sobre aqueles em dívida
com
ela.
E a vingança se dá por meio dos que deveriam ser diretamente punidos:
fazendo-os matarem à semelhança da tortura que ela sofreu e terem que se confrontar
com a questão da invisibilidade no seio de suas relações pessoais mais próximas.
Uma namorada, um amante, um filho: todos os mortos ou eram invisíveis aos entes
queridos ou perpetravam esta não-visibilidade. É preciso aprender a enxergar
o que está diante de si, como Yoshioka aprende a ver o que sempre esteve lá,
seja a fantasma que aparece sorrateiramente na imagem, seja a memória de sua
visão de quinze anos antes que irrompe na montagem, seja o cadáver de sua amada
que a câmera revela estar no quarto apenas no final.
O cineasta é tão fixado no quadro e na imagem dele resultante, que seu geometrismo
traz freqüentemente a sensação de que cada plano contém um espaço próprio, de
forma que o campo-contracampo provoque uma verdadeira ausência de raccord,
desorientando e por vezes induzindo elipses onde não há. Isto não apenas nos
instala numa percepção fragmentada, como contribui para o clima geral de estranhamento
trazido pela iluminação e por sua reinvenção de cenários como a delegacia policial,
o necrotério e o consultório psiquiátrico. Pois seu flerte com o gênero é potente
exatamente na medida da sua criação de um universo próprio.
O despojamento rústico dos ambientes citados acima surpreende por sua capacidade
de situar e des-situar ao mesmo tempo. Quem diria que um galpão poderia ser uma
delegacia digna de uma grande investigação policial? Esta espécie de “improvisismo” de
Kurosawa aponta como um DNA do filme B, que ele carregaria consigo como parti-pris criativo.
Como forma de trabalhar e como diálogo com o gênero no que este tem pra além
do conceito unificador, que é a abertura para contribuições singulares. Contribuições
que certamente reafirmam Kiyoshi Kurosawa como integrante do roteiro vital do
cinema contemporâneo.
Tatiana Monassa
(DVD: Paris Filmes)
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