VÍTIMA DE UMA ALUCINAÇÃO
Kiyoshi Kurosawa, Sakebi/Retribution, Japão, 2006

Hoje, o público ocidental já se encontra habituado ao terror oriental mais corrente, com seus fantasmas atormentados pelo sofrimento e pela morte, que buscam na interação com os vivos uma forma de expiar a sua dor ou de se vingar. Esta saudável familiarização com um gênero diferenciado dos consagrados por Hollywood mostra-se bastante frutífera à medida que novas obras podem ser lançadas aqui e podemos desenvolver melhor percepção crítica desta produção e seus casos particulares.

Kiyoshi Kurosawa é um dos mais importantes realizadores japoneses revelados recentemente, embora ainda seja pouco conhecido, sobretudo no Brasil. Seus filmes raramente aportam em nossos festivais. Famoso por sua inventiva apropriação de gêneros tidos como B, Kurosawa é, sem dúvida, um cineasta a ser notado no contexto do cinema contemporâneo. É, portanto, uma grande alegria contemplar o lançamento do seu último filme em DVD.

Vítima de Uma Alucinação inicia-se com um assassinato; a ele segue-se um breve mas forte terremoto. Este tremor da terra, que não raro provoca uma reconfiguração espacial, coloca em cena dois importantes aspectos do filme: a oscilação da alma e a fratura do espaço cênico convencional. A área portuária de Tóquio na qual se passa o filme, um aterro feito às pressas que corre o risco de virar um verdadeiro pântano toda vez que ocorre um abalo sísmico, sugere o tempo todo um espaço efetivamente em construção. Entre as citadas “destruições e reconstruções” que se dão no lugar, estão prédios residenciais e de órgãos públicos.

Kurosawa é, notadamente, um cineasta do espaço: reinvenção de ambientes, geometrismo da composição, desorientação espacial, quebras de eixo. Mas, em Vítima de Uma Alucinação, é como se a ligação íntima do filme com o sítio em que se transcorre fosse uma questão de Geografia, de estudo do homem no espaço. De fato, à medida que a narrativa avança, descobrimos que o canal que banha a região está no cerne da trama a ser desvendada e é o responsável por interligar todos os envolvidos no mistério. A tal viagem de barca que percorria quinze anos antes o longo destas águas – este deslocamento coletivo no espaço – é a origem do problema de (in)visibilidade que deve ser reparado a qualquer custo.

Todo filme de fantasma já traz em si a prerrogativa da visão problematizada, pela iminência constante da aparição, do surgimento de um elemento estrangeiro no campo do visível. A arte de Kurosawa está, porém, na implicação humana destas questões trazidas pela formatação dos gêneros. A grande panorâmica descrita pelo percurso da barca no canal não apenas conecta os passageiros à paisagem, como oferece a eles a possibilidade de tomar conhecimento do que existe na região e do que se dá naquelas redondezas. A escolha de como reagir ao visto torna-se então uma escolha moral, ao mesmo tempo pessoal e social.

Yoshioka e os demais deverão se confrontar diretamente com os sentimentos provocados por sua escolha de ignorar as práticas desumanas perpetradas pelo sanatório existente nas proximidades. A vingança da fantasma não é somente uma retaliação, ela é um chamado à responsabilidade. E este chamado irrompe na experiência do real, alterando a percepção de mundo dos “responsáveis”. Não à toa as aparições se dão sempre pela mediação do espelho dentro da imagem. O reflexo, duplo que corresponde ponto-a-ponto ao campo refletido, anuncia uma “deformidade” na normalidade e sobrepõe a virtualidade de sua nova imagem do mundo ao real. Como se abrisse outra dimensão dentro do conhecido, a janela do espelho abre um quadro dentro do quadro no enquadramento preciso de Kurosawa, possibilitando à fantasma agir sobre aqueles em dívida com ela.

E a vingança se dá por meio dos que deveriam ser diretamente punidos: fazendo-os matarem à semelhança da tortura que ela sofreu e terem que se confrontar com a questão da invisibilidade no seio de suas relações pessoais mais próximas. Uma namorada, um amante, um filho: todos os mortos ou eram invisíveis aos entes queridos ou perpetravam esta não-visibilidade. É preciso aprender a enxergar o que está diante de si, como Yoshioka aprende a ver o que sempre esteve lá, seja a fantasma que aparece sorrateiramente na imagem, seja a memória de sua visão de quinze anos antes que irrompe na montagem, seja o cadáver de sua amada que a câmera revela estar no quarto apenas no final.

O cineasta é tão fixado no quadro e na imagem dele resultante, que seu geometrismo traz freqüentemente a sensação de que cada plano contém um espaço próprio, de forma que o campo-contracampo provoque uma verdadeira ausência de raccord, desorientando e por vezes induzindo elipses onde não há. Isto não apenas nos instala numa percepção fragmentada, como contribui para o clima geral de estranhamento trazido pela iluminação e por sua reinvenção de cenários como a delegacia policial, o necrotério e o consultório psiquiátrico. Pois seu flerte com o gênero é potente exatamente na medida da sua criação de um universo próprio.

O despojamento rústico dos ambientes citados acima surpreende por sua capacidade de situar e des-situar ao mesmo tempo. Quem diria que um galpão poderia ser uma delegacia digna de uma grande investigação policial? Esta espécie de “improvisismo” de Kurosawa aponta como um DNA do filme B, que ele carregaria consigo como parti-pris criativo. Como forma de trabalhar e como diálogo com o gênero no que este tem pra além do conceito unificador, que é a abertura para contribuições singulares. Contribuições que certamente reafirmam Kiyoshi Kurosawa como integrante do roteiro vital do cinema contemporâneo.

Tatiana Monassa

(DVD: Paris Filmes)

 

 





A luz aroseada que banha o filme e coloca todos sob o mesmo ambiente, todos implicados na cegueira voluntária.


A reinvenção de espaços "clássicos": a delegacia...


... e o consultório psiquiátrico.


O reenquadramento que revela através do
espelho o que já estava lá.


A sutil referência a Os Pássaros: revoada acompanhada de trovoadas e ameça de tempestade.