O lançamento da Coleção Herbert
Richers é mesmo um evento digno de comemoração: à medida
que mais títulos são lançados, um conjunto realmente
significativo da produção comercial brasileira das
décadas de 50 e 60 vai tornando-se (novamente) acessível.
Os DVDs são, em geral, fruto de telecines de cópias
antigas, nos quais podem-se ver eventuais manchas de
mofo, por exemplo. Mas o que realmente importa, neste
caso, são as janelas de visibilidade abertas – seja
para alegres reencontros, seja para descobertas promissoras.
De alguma forma, a produtora de Richers parece ser um “elo perdido” (ou pelo
menos um deles) entre os esforços “industriais” anteriores e o cinema popular
de baixíssimo orçamento que se estabeleceria posteriormente. As chanchadas – gênero
mais lembrado do período e o favorito das recentes releituras da época – já não
eram aquelas feitas na Atlântida, e tampouco o carro-chefe privilegiado. E junto
delas, figuravam outros gêneros que buscavam, eles também, seu espaço cativo.
Entre estes, é claro, o policial. E, para quem duvidar que o Brasil soube um
dia contribuir dignamente para este rico gênero, as imagens podem agora atestar.
Se nos acostumamos, no cinema dito “da retomada”, a um cinema, via de regra,
com ambições autorais protocolares, ou claramente desajeitado quando busca se
aproximar de uma formatação de linguagem mais corrente, não é sem alguma surpresa
que contemplamos filmes como Mineirinho, Vivo ou Morto, de Aurélio Teixeira,
e Paraíba, Vida e Morte de um Bandido, de Victor Lima. A precisão funcional
da forma deste filmes, assim como sua eficiência narrativa, é de admirar qualquer
um não-familiarizado com o que se fazia por aqui àquela altura. O interessante é que
a atual conjuntura do nosso cinema, com seu incipiente gênero do “filme de favela”,
propicia contornos ainda mais instigantes a esta reflexão.
Como em clássicos exemplares americanos, os criminosos, habilidosos e sagazes,
e
os policiais, absolutamente operacionais e eficientes, ocupam-se antes de mais
nada de um jogo de gato e rato baseado na pura competição. A perseguição constitui
a alma destes filmes e a montagem paralela dá a medida do suspense para os perseguidos,
que são o foco de atenção privilegiado. Ambos os filmes apresentam um fôlego
notável (sem dúvida, em muito debitário da excelente montagem de Rafael Valverde)
e pouco se dedicam a questões envolvendo a ética das ações, seja dos bandidos,
seja dos policiais. Importam mais suas performances, como elemento central
deste dinamismo narrativo, do que inferências voltadas para um diálogo direto
com a realidade.
Não obstante, é bastante curioso observar as posturas e falas do personagem do
bandido-herói nesta encarnação tupiniquim do arquétipo, consagrada pela expressão
inconfundível de Jece Valadão. Nos gestos e na voz do ator imortalizou-se um
tipo marginal praticamente sem ambigüidades, às vezes frio e desumano, às vezes
compreensivo e generoso, mas sempre dono de uma notável consciência de si. Este
mocinho às avessas, espécie de meio-termo entre o bandido romântico e o herói
trágico, apresenta-se quase sempre como sintoma manifesto dos desajustes da sociedade.
Em Paraíba, Vida e Morte de um Bandido, há um diálogo brilhante neste
sentido. Pressionado pelo jornalista a contar sua vida, Paraíba recusa toda tentativa
de compreensão sócio-psicológica de sua trajetória e, quando questionado sobre
sua consciência, responde: “eu nem sei o que é isso”. No entanto, seu discurso
de “ih, não vem com essa conversa mole que eu não entendo” deixa transparecer
claramente sua idéia de pertencimento social e sua auto-determinação. O enfrentamento
entre ele e o repórter não é, portanto, apenas um conflito de interesses; é também
o choque entre suas respectivas classes (e culturas).
Entra em cena, desta forma, o background deste marginal brasileiro. Embora
razoavelmente distante de justificativas sócio-econômicas para seus atos, trata-se
de um marginal propriamente dito, um criminoso com contexto. Seja “paraíba” ou “mineiro”,
ele procede de um lugar determinado, tem história e circula numa área urbana
reconhecível (subúrbio, favela, zona norte, tanto faz). Através de suas ações,
ele vai além da apropriação de um arquétipo já consagrado; trata-se de um personagem
que fará sempre uma espécie de passagem entre seu mundo de origem (ou de eleição)
e este outro mundo que ele vem confrontar.
As constantes perseguições/escapadas que povoam as histórias dão o tom: indivíduos
em constante instabilidade, que não possuem de fato um lugar na sociedade, ou
uma solução de vida possível. Entre a favela (ou a Zona Norte) de Nelson Pereira
dos Santos e tiroteios à la faroeste e entre flertes com a tônica neo-realista
do cinema moderno e emulações de aspectos do noir, o herói-bandido (não
necessariamente positivado) é aquele cuja trajetória possui ligação direta com
o tempo-espaço em que se encontra. Viver para ele é mais do reunir traços reconhecíveis
de personalidade ou se engajar em ações prefiguradas, é estar também imerso numa
conjuntura.
Paraíba, assassino cruel, fala de sua família e de seu passado de forma desapegada
e proclama não ter medo de morrer; concentra em si não apenas toda a origem de
suas capacidades, mas também concede ao acaso/destino o desdobramento de sua
vida. Mineirinho, por sua vez, é convertido em bandido pelas circunstâncias;
a irrupção dos acontecimentos irá determinar a impossibilidade dele se estabelecer
em família e a imagem de homem mau se estabelecerá à sua revelia. Ambos encontram-se
sempre na iminência de uma virada nos acontecimentos; são heróis trágicos que
deparam-se necessariamente com a morte pela impossibilidade de uma solução para
o eterno impasse que incorporam.
Como indica a música da seqüência de abertura em Mineirinho – Olha
o menino no morro/Pede socorro, mas ninguém dá/O morro é muito
alto/Como é que a gente da cidade vai fazer para subir lá? –, sua
relação com a sociedade não se dá apenas na chave da ameaça; pois ser marginal
configura menos uma escolha do que uma forma de existir. O bandido-protagonista
torna-se, assim, este corpo estranho dentro da economia da cidade, ocupando um
meio-termo entre a exclusão e o confronto e encarando uma escalada de tensão
rumo à aniquilação – afinal nem o lugar de criminoso ele pode ocupar tranqüilamente.
Paraíba morre em decorrência de suas ações, mas antes, moribundo, faz o balanço
em retrospecto de sua vida, em essência, descompensada. Já Mineirinho
morre encurralado pelo circo armado em torno dele, tendo todo o seu desejo de
integração
infinitamente frustrado.
É quando entra em cena a população urbana, como o “público” da trajetória deste
personagem de exceção. Em Paraíba, a classe média, que, aqui e ali, serve
de refém; em Mineirinho, os habitantes da favela que acolhem o fora-da-lei
e são beneficiados por ele (Mineirinho-Robin Hood que rouba um carregamento de
leite para contemplar os despossuídos). E é a imprensa, como ator social e como
veículo de comunicação, a principal responsável pelo estabelecimento desta “espectorialidade” atravessada.
Imprensa que anuncia a necessidade de visibilidade do acontecimento social que é o
bandido e que reclama para si alguma intervenção positiva (como no caso do jornalista
que oferece garantias para que Paraíba se entregue). Imprensa que busca o sensacionalismo
barato, que precisa de heróis fantásticos e bandidos terríveis, que estampa em
suas páginas as histórias que mais chamam a atenção, sejam reais ou não (como
nos tablóides em Mineirinho). Ou imprensa marrom que termina por denotar
faces nada agradáveis do que se dá em nosso entorno.
Na já citada seqüência de abertura de Mineirinho, sob a música, uma série
de fotografias de corpos assassinados e de repressão policial concentra diversos
destes aspectos, fazendo-os coincidir, em alguma medida, com a própria instância
do filme. Assim como as fotos e as reportagens escancaram e criam dramas baratos,
este cinema policial toma pra si estas narrativas e a necessidade de pô-las em
evidência, de devolvê-las à sociedade em forma de espetáculo dramatizado. No
decorrer do filme, Aurélio Teixeira irá, inclusive, retomar algumas das imagens
vistas na abertura em tomadas próprias, explicitando este diálogo e reforçando
o viés crítico que elas sugerem.
Em Paraíba, é outra interseção com imagens “externas” que reforçará a
interação do filme com a sociedade à qual se dirige: a montagem paralela entre
o corre-corre de bandidos e polícia e a movimentação dos jogadores de futebol
do outro lado dos muros do Maracanã entrelaça filme e mundo de maneira não apenas
formal, mas também afetiva. A ficção e os personagens demonstram não estarem
assim tão distante do universo vivido diariamente por seus espectadores. O entretenimento-à-base-de-adrenalina
não dispensa a crônica de costumes. Forja-se, assim, uma caracterização bastante
peculiar do gênero policial.
Na esteira destas construções visuais, outro fator digno de atenção são algumas
escolhas arrojadas de mise-en-scène, que nada têm de gratuitas, como se
poderia pensar. O jogo destes cineastas com o espaço é potente o suficiente para
desconectar planos quando o cenário de estúdio pede, ou criar, eventualmente,
planos-seqüência vertiginosos que brincam com a orientação espacial, como campo-contracampos
através de reflexos em espelhos. A decupagem, no todo, demonstra que a lição
do cinema clássico foi apreendida de forma significativa: cada plano serve para
fazer avançar a narrativa, de forma que manifestações mais enfáticas de autorismo
dêem-se apenas em alguns pontos. Admiráveis exemplos são a seqüência de perseguição
de Isabel ao início de Mineirinho, na qual vemos apenas a mulher olhando
diretamente para a objetiva e fugindo desesperada em jump-cuts, segundo
o ponto de vista dos perseguidores, ou a fuga de Paraíba em meio ao tiroteio
final
do filme, em que a câmera exibe seu trabalho de acompanhar a ação, ao girar
rente ao chão e enquadrar o personagem na horizontal.
Em todas estas articulações de sentido e construções formais, este nosso
cinema
policial nacional revela sem dúvida um vigor insuspeito. Tanto o filme de Teixeira
quanto o de Lima atestam uma real incorporação do gênero na nossa cinematografia,
sempre com distintas apropriações e reconfigurações. Infelizmente,
nossa
história e nossa historiografia preferiram esquecer disto.
Tatiana
Monassa
(DVD: Europa Filmes)
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