"Gracias a la família
Banderas-Griffith por permitir que papi se marchara a realizar su sueño". É
assim que Antonio Banderas termina os créditos de seu segundo longa-metragem, e
quando esses agradecimentos aparecem, vêm apenas reiterar verbalmente aquilo
que já estava evidente em cada uma de suas imagens. O Caminho dos Ingleses é um filme de assinatura, é uma carta de
princípios, pessoal como poucos filmes conseguem ser, honesto na mesma medida,
uma vez que se expõe completamente enquanto construção parcial de uma memória,
de um período, de uma maneira de lidar com a vida e com a arte. Confirma-se a
cada seqüência como um projeto de sonho, como o sacrifício de se cumprir o
caminho entre a casa atual (entendamos o "Griffith" nos agradecimentos não só
como a família, mas toda a simbologia hollywoodiana inscrita aí) e a casa
natural (um retorno à Espanha, à juventude que foi a sua própria, à Málaga
natal da qual se saiu moleque pobre e que vinte anos depois o recebe como
profissional realizado). Mais ainda, um filme que dá amplitude ao verbo
"marchar", uma vez que claramente significa um passo firme numa carreira em
direção de cinema, e não só um exercício de ator-por-trás-das-câmeras. Há em O Caminho dos Ingleses uma idéia, um
controle, um pensamento sobre a arte coerente consigo mesmo e com as formas que
se apresenta aos nossos olhos, e é isso que garante nosso interesse sincero
diante de um filme que fracassa redondamente em quase todos esses seus esforços.
É mais uma história de
amadurecimento, mais um conto de juventude perdido num verão do fim dos anos
70, mais um confronto entre gerações, entre os desejos íntimos e o curso da
história e do destino, com uma turma de adolescentes artísticos e sexuais no
meio disso. Só que ela começa com uma operação bastante gráfica de extração de
um rim. As primeiras seqüências de O
Caminho dos Ingleses dão bem a medida do que Banderas aprontará a seguir. Miguelito
é um jovem que não quer seguir o curso que a vida modorrenta de sua cidade lhe
impõe, e que decide que é poeta mesmo sem nunca ter escrito um verso sequer.
Internado num hospital, ele receberá uma cópia de A Divina Comédia do paciente ao lado, e este é nosso passaporte
para um universo paralelo estranhíssimo. A apropriação que Miguelito e Banderas fazem de
Dante é lisérgica em seu sentido literal. A metáfora do caminho entre o inferno
e o céu (ou o eterno vagar pelo purgatório) é materializada em objetos, em
pequenos clipes estilizados, na utilização do kitsch tão caro à imagem que temos do Banderas-ator, só que agora a
serviço do bom gosto, do sentimento nobre. É uma incompatibilidade óbvia, mas
que O Caminho dos Ingleses atropela:
piscinas de sangue, urina com sangue, tudo quanto é mal é vermelho, e mesmo
algumas aranhas caranguejeiras podem ser jogadas aí para que o impacto visual
seja efetivado. Do mesmo modo, Banderas não consegue conceber o sublime do ato
sexual na velocidade normal dos acontecimentos, e qualquer respingo de desejo
será devidamente embalsamado por uma câmera lenta, "expressiva e romântica".
É um festival de excessos, e
o melhor: é exatamente este o motor de O
Caminho dos Ingleses. "Isto é rádio demais para a rádio", é o que diz o
narrador-personagem do filme, um radialista fracassado que acompanha à
distância as aventuras melodramáticas dos quatro jovens protagonistas, e é como
se Banderas quisesse exatamente isso, "cinema demais para o cinema". Temos aqui
um ator de formação revelando o que mais preza em seu ofício, e sinalizando
corajosamente os caminhos que pretende trilhar uma vez que agora também é um
diretor de atuações, de representações. Em O
Caminho dos Ingleses há o elogio do ato performático puro, instalado nos
grandes picos emocionais (e eles são muitos), mas também nas situações mais
banais. Tudo é "hiperbólico" (outra coisa dita pelo tal radialista), todo drama
pessoal é vivido dois tons acima, qualquer olhar corriqueiro é um potencial registro
fotográfico permanente na memória de alguém, qualquer beijo é uma marca definitiva
no espírito de um amante. Mas não podemos nem falar em over, porque não há parâmetro de "normalidade" aqui: a realidade
foi jogada para escanteio, e esse cinema nasce do puro delírio.
Mas haverá adiante uma
nova incompatibilidade, e novamente o filme não se fará de rogado em passar por
cima dela. Um chamado ao mundo terreno, "os sonhos podem ficar no mundo dos
sonhos", o grande amor que até então tratávamos por Beatrice (como em Dante),
mas que agora chamaremos por seu verdadeiro nome. O verão acabou, uma chuva
lavou-nos a adolescência da alma, e agora é olhar para frente, para a vida
adulta, enquanto o fundo do quadro vai servindo de depositário das experiências
passadas (descrição visual e semântica do belo último plano do filme). Depois de um começo insípido com Loucos
do Alabama, realizado dentro da roda industrial americana e sob sua
influência sufocante, Antonio Banderas pôs finalmente as mãos em um projeto
pessoal, com liberdade artística total, e compromisso único com suas próprias
idéias. Errou novamente, mas o fez tão apaixonadamente que não há como não
imaginar que O Caminho dos Ingleses é
seu verão decisivo, aquele que o tirará da adolescência cinematográfica, e que
precisava ser vivido em todo seu torpor e incongruência justamente para funcionar
como um rito de passagem. E por mais que as aranhas caranguejeiras como metáfora do mal realmente nos assustem, é impossível ignorar que
esse olhar para frente de Banderas promete coisas melhores, e é muito seguro
afirmar que um diretor de cinema nasceu ali no meio daquela cafonice toda.
Rodrigo de Oliveira
(DVD: Visual Filmes)
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