ONE PLUS ONE / SYmpathy for the devil
Jean-Luc Godard, Reino Unido, 1968

Cinema: querer apreender o "real" nos leva a construir um método de aproximação. Esse método consiste em observar o que há de concreto. O concreto, por sua própria natureza inacessível, nos leva ao abstrato. A abstração nos devolve ao "real".

De forma muito sumária e simplificada, esse percurso descrito acima traduz em parte a sensação que os filmes realizados por Godard, sobretudo os que pertencem à chamada "fase maoísta", provocam no espectador. One Plus One (e Sympathy for the Devil, título da versão montada pelos produtores) insere-se nesse tipo de construção, mais preocupada em reportar do que propriamente narrar.

De fato, trata-se de um Godard-repórter, antes de um Godard-romancista. One Plus One/ Sympathy for the Devil não é um musical com ou sobre os Rolling Stones, mas uma reportagem sobre o capitalismo, a publicidade, a sociedade de consumo, o nazismo, as lutas raciais, as guerras mundiais e tantos outros dramas do "coração do Ocidente", como nos informa um letreiro.

Uma reportagem lisérgica? Talvez. Mas One Plus One e Sympathy for the Devil são também filmes, ou melhor, também fazem parte da máquina industrial que Godard critica e procura desconstruir em termos narrativos. Nesse sentido, o episódio da briga entre o diretor e os produtores Michael Pearson e Iain Quarrier traduz a imensa contradição que é fazer um cinema de contestação dentro de um sistema altamente articulado como é o capitalista. Ao romper com seus produtores e defender a sua própria versão (One Plus One), Godard procurou ao menos chamar a atenção para o problema. O que não modifica, em termos estruturais, o fato de que, da mesma forma que a canção dos Rolling Stones e a versão dos produtores, o filme de Godard continuou a ser um objeto de consumo.

O próprio Godard - e isso demonstra bem o documentário Voices (Richard Mordaunt, 1968), constante dos extras do DVD -, é, naquele momento, uma estrela da mídia européia. O documentário de Mordaunt é uma espécie de making of de One Plus One. Durante as filmagens da cena com os Black Panthers, uma jornalista inglesa bem novinha tem acessos de tietagem explícita enquanto espera a oportunidade de entrevistar o diretor franco-suíço. Ela se vangloriza de falar francês, mas sua grande preocupação é fazer uma primeira pergunta bem inteligente, para que Godard não a rejeite. Godard tinha perfeita consciência de sua posição ambivalente, posição que, para cineastas latino-americanos contemporâneos como Fernando Solanas e Octávio Getino, por exemplo, seria representativa de um cinema pequeno-burguês, individualista, portanto ainda comprometido com o sistema.

Como Godard procurou trabalhar essa contradição fundamental? Antes da radicalização característica da fase com Jean-Pierre Gorin (Grupo Dziga Vertov), Godard já vinha buscando se livrar dos compromissos com o cinema "comercial" (vamos chamar assim, na falta de um termo mais apropriado). No caso do projeto com os Rolling Stones, a idéia de Godard era, por exemplo, fazer um filme em 16mm, o que foi rechaçado pelos produtores, dada a pouca viabilidade comercial da bitola.

One Plus One (ou Sympathy for the Devil, aqui dá no mesmo) é, portanto, um filme "integrado" ao padrão do cinema-espetáculo que Godard procurava, naquele momento, rejeitar. O projeto nasce dessa tensão insolúvel e se mantém exatamente como um corpo dilacerado. Essa tensão está presente até mesmo na própria estrutura interna de montagem, o que nos dá sensação constante de estarmos assistindo a dois filmes, isto é, os registros "documentais" dos ensaios do grupo Rolling Stones para a gravação da música Sympathy for the Devil e as cenas "ficcionais" que são intercaladas nesse registro.

Os termos "documentais" e "ficcionais" estão entre aspas justamente para realçar, em One Plus One, o caráter meramente convencional dessa distinção. O fato é que, diante de Mick Jagger ou do ator que interpreta um ativista negro, a câmera de Godard procede da mesma maneira: apreensão do real, observação da concretude dos gestos, abstração do pensamento, fixação do real transfigurado pela encenação. O que unifica os diversos momentos do filme (sejam eles mais ou menos próximos do documentário ou da ficção) é a fabricação de um mesmo discurso audiovisual.

Se a reportagem é, vamos dizer assim, um ponto de partida para a estruturação do jogo cênico, o resultado final é próximo de uma colagem pop. Justaposição de imagens, ressignificação de sentidos, som e imagem em conflito. A seqüência que melhor traduz esse jogo é a que se passa no interior de uma banca de jornal. Trata-se de uma encenação tipicamente godardiana: um jovem de óculos escuros passeia pelo cenário lendo em voz alta um texto que mescla idéias fascistas com o elogio à publicidade; enquanto isso, uma espécie de secretária datilografa suas palavras em uma máquina; alguns clientes compram livros e revistas; na compra dos mesmos, recebem um panfleto, fazem a saudação nazista e esbofeteiam dois jovens hippies ensangüentados que, sentados num canto da banca como se estivessem de castigo, recebem os tapas e pronunciam slogans pacifistas. A câmera ora observa a movimentação do jovem que discursa, ora acompanha os clientes, ora enquadra em um movimento de zoom o rosto dos hippies, ora passeia pelas revistas em exposição. Estas compõem um apanhado do lixo cultural que vai das revistas em quadrinhos de super-heróis aos romances de pulp-fiction e revistas eróticas. Sempre em movimentos suaves e contínuos, a câmera se move em torno desse espaço cênico, espécie de metonímia do capitalismo ocidental, que une um discurso sobre a soberania ariana à pornografia.

O tipo de movimentação de câmera dessa seqüência é semelhante à que vemos nas cenas em que os Rolling Stones ensaiam Sympathy for the Devil, nas cenas em que os ativistas negros discursam diante de carros empilhados ou ainda na seqüência em que a atriz Anne Wiazemsky é entrevistada por jovens documentaristas, respondendo apenas "sim" ou "não" a uma enquete enquanto caminha por um campo florido. Na verdade, a câmera se porta de forma semelhante em quase todas as situações. Ela registra "documentalmente", se quisermos, seja um grupo de pessoas tocando música, sejam atores interpretando, sejam capas de revistas ou letreiros pintados a mão que dividem em blocos as diversas seqüências. E se a postura da câmera é a de um olho distante, que a tudo vê sentindo fisicamente o seu próprio estranhamento, ou como um olho "cínico", no dizer de Rogério Sganzerla, a voz over que está presente no filme, do princípio ao fim, ao contrário incorpora o caos e o lixo cultural, costurando uma espécie de romance político-policial-pornográfico barato, desses que se encontram em livros de bolso nas bancas de jornal. Juntamente com a música dos Stones, esse romance vai construindo um discurso em permanente tensão com a frieza da câmera.

Esse contraste entre as imagens e os sons, igualmente traduz a tensão a que me referi mais acima, entre "dois filmes", ou melhor, "dois projetos", ou melhor, dois caminhos que se tensionam por apontarem para direções muitas vezes opostas. Para usar uma metáfora talvez mais esclarecedora, é como se a câmera de Godard só conseguisse tamanha frieza no registro das ações por estar justamente no olho do furacão, sendo o vendaval tudo aquilo que a cerca, dos elementos pró-fílmicos aos sons (música, ruídos e falas) editados.

Não por acaso, a bela seqüência final encena justamente o momento em que - na narração e na imagem -, busca-se uma espécie de saída, de fuga, quase um gesto de desespero. E a própria câmera está em quadro, presa a uma grua, em meio a um palco de filmagem que, como bem definiria Samuel Fuller, é um verdadeiro palco de guerra. É então que, no som, ouvimos a narração dizer algo como "estou de saco cheio desse romance político, adeus", enquanto a câmera presa à grua levanta vôo, carregando uma atriz morta e duas bandeiras (preta e vermelha), movimento que a faz abandonar o olho do furacão, embarcar no caos e ganhar os céus.

Curiosamente, essa é a única seqüência em que a diferença entre One Plus One (isto é, a versão do diretor) e Sympathy for the Devil (ou seja, a versão dos produtores) se torna radical: Godard dá maior destaque ao discurso, a câmera gira no alto da grua e, na trilha sonora, os Stones parecem voltar ao princípio dos ensaios, como se não tivesse havido evolução alguma no arranjo da música principal. Já a versão dos produtores esvazia o discurso final e elabora um tratamento cromático psicodélico sobre a imagem da câmera na grua, enquanto na trilha sonora os fãs da banda finalmente podem ouvir o arranjo final.

Quando a câmera decide agir, o filme finalmente se parte. Um mais um são dois.


Luís Alberto Rocha Melo

(DVD: Daylight Films)

 

 





Jean-Luc Godard e Mick Jagger: objetos de consumo




Nazismo, pornografia e publicidade no coração do Ocidente






A câmera que a tudo observa, distante...




...e que abandona o olho do furacão