Costuma-se enxergar as comédias produzidas por Herbert
Richers como espécies de primas pobres da Atlântida: não haveria nelas nem o glamour de um "período de ouro" da
chanchada, marcado por duplas como Oscarito/Grande Otelo ou Eliana/Anselmo
Duarte, nem a excelência técnica e artística de um Watson Macedo ou de um
Carlos Manga. As comédias com o selo Herbert Richers seriam bem mais desleixadas,
ainda mais pobres, e não teriam propriamente uma personalidade como a Atlântida,
empresa que o crítico Sérgio Augusto, em seu clássico livro Este Mundo É um Pandeiro (1989),
denominou de forma significativa como a "Metro Tropical".
Comparativamente, tais observações fazem sentido. Mas é
necessário questionar se a comparação com a Atlântida tem mesmo toda essa razão
de ser. Sim, tanto a empresa de Severiano quanto a de Richers faziam
chanchadas. Sim, a parceria entre Ankito e Grande Otelo era uma reedição da
famosa dupla cômica da Atlântida. E muitos artistas que trabalhavam na "Metro
Tropical" passaram também para a Herbert Richers (diretores-roteiristas como
Victor Lima e J. B. Tanko ou astros como Renato Restier, Renata Fronzi, Sérgio
de Oliveira e Bill Farr, sem falar, é claro, de Grande Otelo). O próprio
Richers saiu dos quadros da Atlântida, onde trabalhava como cinegrafista, para
se tornar um produtor de cinejornais e, posteriormente, o principal concorrente
de Severiano Ribeiro. Essas ligações sem dúvida existem, mas quando
excessivamente reiteradas de forma acrítica, criam uma falsa noção de
continuidade na produção chanchadística. O complicado nessa noção é que ela
induz a pensar que todas as comédias produzidas pela Atlântida e por Herbert
Richers, embora concorrentes e qualitativamente distintas, na verdade seriam uma
coisa só: chanchadas cariocas dos anos
1950 e fim-de-papo.
Um outro aspecto negativo da comparação entre a Atlântida e
as produções de Herbert Richers é a desigualdade na pesquisa sobre as duas
empresas. Embora ainda hoje pouco se saiba de concreto sobre as formas de
produção da Atlântida, é inegável que a produtora de Severiano Ribeiro é muito
mais estudada, reportada e detidamente analisada do que a trajetória de Herbert
Richers. Quase nada sabemos, por exemplo, das relações entre Richers
e seu co-produtor Arnaldo Zonari. Quem é Zonari? Qual a sua origem? Quais eram
os termos contratuais entre ambos? Sabemos pouquíssimo sobre a Sinofilmes,
empresa de Richers e Zonari. Viria a ser a mesma Herbert Richers Produções?
Como se dava a parceria entre a Sinofilmes (Richers/Zonari) e a Cinedistri
(Oswaldo Massaini)? Sabe-se que essa parceria entre a produtora carioca e a
distribuidora paulista de Massaini se deu em função dos vantajosos
financiamentos que o Banco do Estado de São Paulo concedia nos anos 1950, mas
em que medida essa prática influía na realização dos filmes? Em que medida tal
parceria interestadual (que já relativiza o termo "chanchada carioca") diferenciava
ainda mais Herbert Richers da Atlântida, ao mesmo tempo em que o aproximava de
outras pequenas produtoras como a Cinelândia e a Produções Watson Macedo, ou de
uma distribuidora como a Unida Filmes, lideradas respectivamente por produtores
independentes como Eurides e Alípio Ramos e Watson Macedo, ou por essa figura
misteriosa e, apesar disso, central que é o distribuidor ítalo-carioca Mario
Falaschi?
Em termos de chanchada, francamente, caminhamos no escuro.
Em termos de informação concreta sobre as formas de produção do cinema
brasileiro dos anos 1950, então, o breu é ainda maior. Há muito a ser
pesquisado, muito a ser repensado. Por isso, lançamentos em DVD como esse de E o Bicho Não Deu são sempre bem-vindos,
são sempre necessários. É muito pouco, certo, mas já é algo: pelo menos
possibilita ao pesquisador e ao público em geral interessado no assunto o
contato direto com o filme, não somente intermediado por uma idéia
pré-concebida do que significa esse gênero de filmes dentro de um entendimento
mais ou menos convencional da história do cinema feito no Brasil.
Assistir a E o Bicho
Não Deu possibilita, por exemplo, que afirmações como essas de que as
comédias de Herbert Richers seriam "desleixadas", sejam reavaliadas com mais
cuidado. Basta observarmos a segurança da direção de J. B. Tanko. Nada que
lembre o despojamento radical de um Victor Lima; em termos de mise-en-scène, Tanko é bem mais
"clássico", mais moderado, mais limpo. A sua leitura da ação é sempre elegante:
a câmera antecipa-se aos atores, em curtos travellings de correção, observando-os sempre em escalas variadas de primeiros planos a planos
médios, de forma tanto a valorizar o corpo (essencial na comédia) quanto os
cenários. Um plano que porventura destoe dessa estrutura formal é sempre
justificado pelo inusitado da ação. A direção de Tanko pode ser, por isso mesmo,
acusada de burocrática ou algo assim. Tendo a vê-la mais como uma direção aliada aos atores. Nem muito acima, nem
muito abaixo.
Com essas observações impressionistas não quero afirmar que E o Bicho Não Deu é uma obra-prima. Não
se trata de falar aqui em exceções. O que acredito ser mais interessante é, por
exemplo, examinar o quanto essa direção de Tanko, para além do fato de se
mostrar segura em seus movimentos de câmera e enquadramentos, também sinaliza a
incorporação de uma linguagem televisiva já em gestação naquele momento. As comédias produzidas a partir de meados dos
anos 1950 parecem não mais pensar a mise-en-scène em termos de reprodução do clássico-narrativo a la Macedo (Carnaval no Fogo,
1949) ou Manga (Matar ou Correr,
1954), mas antes em termos de um diálogo com a televisão, em moldes semelhantes
àqueles que aproximavam a comédia musical carnavalesca dos anos 1930 (Adhemar
Gonzaga e Wallace Downey, sobretudo) do rádio e do teatro de revista.
É por isso que, nos anos 1930, um realizador como Luís de
Barros, com sua liberdade criativa que o permitia juntar cenas documentais e em
estúdio num filme como Tererê Não Resolve (1938), era um diretor excepcional no gênero. Com isso, ele escapava do
"lugar-comum" radiofônico. Já no caso de Tanko, pelo menos em E o Bicho Não Deu, filme realizado em
1958, tratava-se justamente de se encaixar em um tipo de relação entre
veículos (cinema/televisão), ainda que, naquela época, tal relação não fosse
necessariamente vista como convencional. Nesse sentido, Tanko pode ser
visto como um diretor "comportado", que busca um determinado padrão. É um estilo bem diverso do de um
Victor Lima, este sim um mestre na radicalização do diálogo cinema/TV, com sua
entrega absoluta à frontalidade inquieta e à agressiva bidimensionalidade de
seus enquadramentos.
Não por acaso muitas das comédias realizadas nesse período
posterior a 1956 (que a pesquisadora e professora Hilda Machado chamava de
"chanchadas tardias"), utiliza-se da televisão como elemento cenográfico e
dramático, ou mesmo como tema central. Em E
o Bicho Não Deu, por exemplo, os dois meios (cinema e TV) interagem e se
intercomunicam: a megera vê seu esposo (Costinha, caracterizado com um
inacreditável bigodinho de Hitler) se esbaldando na boate, porque a televisão
transmite de lá, ao vivo, o show que
o filme incorpora à narrativa.
Nesses filmes, e o exemplo acima confirma, a televisão não é
vista com horror pelo cinema, como mais tarde, isto é, a partir dos anos 1960,
será comum acontecer, conforme afirma Jean-Claude Bernardet a propósito da
relação entre o cinema culto e a TV, em
seu livro Historiografia Clássica do
Cinema Brasileiro. Basta pensarmos no tratamento positivo dispensado à
televisão, em Absolutamente Certo! (Anselmo Duarte, 1957), para percebermos a diferença de tom.
Em termos, portanto, de mise-en-scène, E o Bicho Não Deu traduz uma espécie
de segundo momento da chanchada, não
mais aquele correspondente a uma possível necessidade de reproduzir, em moldes
brasileiros, a linguagem cinematográfica hollywoodiana, mas, sobretudo aquele
imbuído em pensar a encenação em termos de um diálogo ainda experimental com a
televisão. Um exemplo máximo dessa postura é Na Corda Bamba (1957), filme produzido pela Cinelândia, com direção
de Eurides Ramos. Volta e meia ele é exibido no Canal Brasil. Confiram.
O que foi dito acima nos permite deixar de ver essas
comédias - dentre as quais incluo E o
Bicho Não Deu - como uma espécie de fim-de-linha da chanchada, que
estaria aos poucos migrando para a televisão com um melancólico suspiro derradeiro.
Trata-se de enxergá-las como um outro estágio mesmo do gênero, naquele momento
muito mais interessado em dar conta de um novo tipo de articulação audiovisual
- a televisiva - do que em perpertuar sabe-se lá que compromisso com a paródia
ao filme clássico-narrativo. Esses filmes do final dos anos 1950 - sobretudo os
produzidos pela Cinelândia e por Herbert Richers - não querem mais saber disso;
eles procuram ser modernos.
A relação com a televisão, presente em E o Bicho Não Deu, não é o único elemento que nos parece construir
laços de interesse com o momento atual. O próprio tema do filme - as relações
de total promiscuidade entre a polícia e o crime - não poderia ser mais
contemporâneo. O detetive Bartolomeu (interpretado por Ankito) perde a memória
e pensa ser um bicheiro. Quando ele ouve qualquer apito, recobra a outra
identidade e volta a ser policial. A ironia está no fato de que não sabemos se
ele é um policial que era bicheiro ou se era um bicheiro que se tornou
policial. Na verdade, Bartolomeu encarna a ambivalência em pessoa: ele é ao mesmo tempo o detetive e o bicheiro, valendo-se tanto de um
quanto de outro, dependendo da maré. A inconsciência é pura farsa, que o filme
assume como real por ser exatamente isso mesmo: uma farsa.
E como toda boa farsa E
o Bicho Não Deu é crítica política e social da melhor qualidade. Basta
substituir o jogo do bicho pelo tráfico de drogas - e, claro, descontar as
passagens que, para os olhos do espectador de hoje, são muito ingênuas - e
teremos o retrato do Brasil da "banda podre", do crime organizado, de Renans
Calheiros, FHCs, Malufs e Garotinhos, da indistinção entre quem serve à lei e
quem serve ao crime, da corrupção desenfreada em todos os níveis da sociedade,
da mentira deslavada, do surrealismo financeiro e da impunidade. Os diálogos
não são violentos, mas dificilmente se vê no cinema brasileiro de hoje uma
réplica tão simples, objetiva e certeira como essa de Bartolomeu para Jujuba, o
bicheiro interpretado por Grande Otelo:
JUJUBA: Eu sou bicheiro,
mas sou honesto. Sujeito que engana o povo não é bicheiro.
BARTOLOMEU (concordando): Não: é político!
Um pouco de tudo isso certamente nasce da parceria de Tanko
(roteirista) e de Sérgio Porto (argumentista), o Stanislaw Ponte-Preta do Febeapá. Aliás, mais um mito que se
desmorona. Como relegar a um eventual segundo plano uma produtora que tinha
em seu time um argumentista como Sérgio Porto, um fotógrafo como Amleto Daissé,
um cenógrafo como Alexandre Horvarth, um montador como Rafael Justo Valverde,
um compositor de trilha musical como Remo Usai e atores como Grande Otelo,
Costinha, Ankito, Vera Regina e Zé Trindade?
Confiram E o Bicho Não
Deu. Além de tudo, é divertido.
Luís Alberto Rocha Melo
(DVD: Europa)
|