SANGUE NEGRO
Paul Thomas Anderson, There Will Be Blood, EUA, 2007

Sangue Negro inicia-se como um drama familiar com pano de fundo histórico determinante. Logo, porém, algo não muito bem definido começa a ganhar espaço e invadir a narrativa. A princípio, este algo parece ser da ordem do drama clássico: a tragédia que se anuncia, simbolicamente (Daniel fazendo uma marca de petróleo na testa de seu bebê), ou em termos de mise en scène (os movimentos de câmera que antecipam a catástrofe nas torres de prospecção). Mas alguma coisa na gravidade deste destino vai mal. Ao mesmo tempo em que pressentimos que o tempo vai virar e o céu passará a pesar sobre o personagem, percebemos que esta reviravolta apenas sofre retardamentos.

Este impasse dramático possui ainda um lado B, que configura-se como o desequilíbrio entre o inegável ímpeto do personagem e a articulação da narrativa em torno dele. A incapacidade de Paul Thomas Anderson imprimir cadência ao filme, ou aderir minimamente aos princípios básicos da narrativa clássica, faz Sangre Negro cambalear entre a adesão a um personagem forte, que faz sua própria história – e com ele carrega o filme –, e o desejo de aplicar a este personagem uma determinada trajetória. O resultado é uma espécie de embate mal-resolvido entre o campo da organização do filme e o campo do personagem (ou do ator, se assim quisermos).

Daniel Day-Lewis, magnífico ator shakespeariano, daqueles que refletem no corpo inteiro a mentalização do processo do drama, confere a cada cena a força necessária à construção do choque entre seu personagem e o destino (entidade que congregaria as diversas instituições que ele desafia: a religiosidade, a família, a sociedade organizada), mas este choque nunca chega a existir; e, pouco a pouco, temos a impressão de assistir a cenas desconexas protagonizadas pelo mesmo intérprete. Pois não há condução de pathos que nos faça acompanhar (e compreender) a suposta evolução/transformação do personagem. A regência de P.T. Anderson está voltada para outro campo; um campo bastante caro ao que comumente chamamos de “cinema independente americano”: o do tabuleiro no qual os personagens são movimentados como peças.

O que há, portanto, além da performance em Sangue Negro? Qual o combustível para ações tão cheias de peso e significado como as que o filme escolhe enfocar? Será tudo para Anderson como a igreja de Eli/Paul Sunday, movimentos densos e repletos de energia destinados ao vazio, ao vácuo de crenças? Por que então tangenciar a política e a economia através da História, se o intento da narrativa é exibir a conduta mirabolante de um personagem? Por que não permanecer no ambiente de jogo de Embriagados de Amor, norteado pelo videogame e pelo cinema de gênero, e quiçá aprofundá-lo (como os Coen souberam admiravelmente fazer em seu último filme)?

Ao adentrar o terreno denso que Sangue Negro apresenta como território, impossível não nos perguntarmos onde está o passado dos personagens, ainda que velado ou lacunar, ou sua motivação interior, uma vez que se trata de uma narrativa character-driven. Impossível não procurarmos também pela instância da moral, pelo olhar que situaria os personagens em relação à sociedade. Ora, de olhar, temos apenas o de Anderson – que, note-se, não é o de seu personagem. E este olhar é cínico no limite do tolerável. Ele é capaz de ser conivente simultaneamente com os assassinatos a sangue frio sem quê nem porquê perpetrados por Daniel, com seus carinhos efusivos com o filho, com seu súbito abandono e desprezo pelo menino, ou com o contraponto silencioso que este desenvolve a seu pai. E se o olhar desta criança que perde a fala ensaia ser aquele que finalmente situaria Daniel em algum contexto, ele ao fim acaba delineando-se como mais uma fonte individualista de afirmação.

Talvez a chave para toda esta problemática esteja na desagradável brincadeirinha de toma-lá-dá-cá entre Daniel e Eli: no mundo em questão, os gestos aceleram apenas em benefício próprio, para alimentar as ganâncias pessoais (pouco importa se trata-se de ser um milionário líder de mercado que ludibria inocentes famílias camponesas, ou um falso profeta que alimenta o ego com a adoração de seu crescente rebanho de fiéis). Não há sentimentos, não há nem mesmo motivações por trás de mudanças brutais nas pessoas. O que todos vestem são máscaras, sejam o quão convincentes forem.

Mas, novamente: Daniel Day-Lewis não é ator de máscaras. Ele trabalha na chave da personificação, da aura da cena. Onde estaria, portanto, o lastro de cada momento em que sua presença impregna a tela? Ou melhor, onde estaria o sentido de Sangue Negro, seu ponto de articulação entre operações estéticas, narrativas, etc.? Bem, talvez P.T. Anderson o tenha perdido entre uma e outra virada de páginas de seu tão “bem-cuidado” roteiro...

Tatiana Monassa


 








Oscar merecido para Daniel Day-Lewis, ator da estirpe
dos grandes ícones hollywoodianos do passado.