Sangue
Negro inicia-se como um drama familiar com pano
de fundo histórico determinante. Logo, porém, algo não
muito bem definido começa a ganhar espaço e invadir
a narrativa. A princípio, este algo parece ser da ordem
do drama clássico: a tragédia que se anuncia, simbolicamente
(Daniel fazendo uma marca de petróleo na testa de seu
bebê), ou em termos de mise
en scène (os movimentos de câmera que antecipam
a catástrofe nas torres de prospecção). Mas alguma coisa
na gravidade deste destino vai mal. Ao mesmo tempo em
que pressentimos que o tempo vai virar e o céu passará
a pesar sobre o personagem, percebemos que esta reviravolta
apenas sofre retardamentos.
Este impasse dramático possui ainda um lado B, que configura-se
como o desequilíbrio entre o inegável ímpeto do personagem
e a articulação da narrativa em torno dele. A incapacidade
de Paul Thomas Anderson imprimir cadência ao filme,
ou aderir minimamente aos princípios básicos da narrativa
clássica, faz Sangre
Negro cambalear entre a adesão a um personagem forte,
que faz sua própria história – e com ele carrega o filme
–, e o desejo de aplicar a este personagem uma determinada
trajetória. O resultado é uma espécie de embate mal-resolvido
entre o campo da organização do filme e o campo do personagem
(ou do ator, se assim quisermos).
Daniel Day-Lewis, magnífico ator shakespeariano, daqueles
que refletem no corpo inteiro a mentalização do processo
do drama, confere a cada cena a força necessária à construção
do choque entre seu personagem e o destino (entidade
que congregaria as diversas instituições que ele desafia:
a religiosidade, a família, a sociedade organizada),
mas este choque nunca chega a existir; e, pouco a pouco,
temos a impressão de assistir a cenas desconexas protagonizadas
pelo mesmo intérprete. Pois não há condução de pathos que nos faça acompanhar (e compreender) a suposta evolução/transformação
do personagem. A regência de P.T. Anderson está voltada
para outro campo; um campo bastante caro ao que comumente
chamamos de “cinema independente americano”: o do tabuleiro
no qual os personagens são movimentados como peças.
O que há, portanto, além da performance em Sangue
Negro? Qual o combustível para ações tão cheias
de peso e significado como as que o filme escolhe enfocar?
Será tudo para Anderson como a igreja de Eli/Paul Sunday,
movimentos densos e repletos de energia destinados ao
vazio, ao vácuo de crenças? Por que então tangenciar
a política e a economia através da História, se o intento
da narrativa é exibir a conduta mirabolante de um personagem?
Por que não permanecer no ambiente de jogo de Embriagados de Amor, norteado pelo videogame e pelo cinema de gênero,
e quiçá aprofundá-lo (como os Coen souberam admiravelmente
fazer em seu último filme)?
Ao adentrar o terreno denso que Sangue
Negro apresenta como território, impossível não
nos perguntarmos onde está o passado dos personagens,
ainda que velado ou lacunar, ou sua motivação interior,
uma vez que se trata de uma narrativa character-driven. Impossível não procurarmos também pela instância
da moral, pelo olhar que situaria os personagens em
relação à sociedade. Ora, de olhar, temos apenas o de
Anderson – que, note-se, não é o de seu personagem.
E este olhar é cínico no limite do tolerável. Ele é
capaz de ser conivente simultaneamente com os assassinatos
a sangue frio sem quê nem porquê perpetrados por Daniel,
com seus carinhos efusivos com o filho, com seu súbito
abandono e desprezo pelo menino, ou com o contraponto
silencioso que este desenvolve a seu pai. E se o olhar
desta criança que perde a fala ensaia ser aquele que
finalmente situaria Daniel em algum contexto, ele ao
fim acaba delineando-se como mais uma fonte individualista
de afirmação.
Talvez a chave para toda esta problemática esteja na
desagradável brincadeirinha de toma-lá-dá-cá entre Daniel
e Eli: no mundo em questão, os gestos aceleram apenas
em benefício próprio, para alimentar as ganâncias pessoais
(pouco importa se trata-se de ser um milionário líder
de mercado que ludibria inocentes famílias camponesas,
ou um falso profeta que alimenta o ego com a adoração
de seu crescente rebanho de fiéis). Não há sentimentos,
não há nem mesmo motivações por trás de mudanças brutais
nas pessoas. O que todos vestem são máscaras, sejam
o quão convincentes forem.
Mas, novamente: Daniel Day-Lewis não é ator de máscaras.
Ele trabalha na chave da personificação, da aura da
cena. Onde estaria, portanto, o lastro de cada momento
em que sua presença impregna a tela? Ou melhor, onde
estaria o sentido de Sangue
Negro, seu ponto de articulação entre operações
estéticas, narrativas, etc.? Bem, talvez P.T. Anderson
o tenha perdido entre uma e outra virada de páginas
de seu tão “bem-cuidado” roteiro...
Tatiana Monassa
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