O “ponto de vista da pipa”, efeito visual ícone da
série de metáforas primárias que alimentam o filme
de Marc Forster.
O papel desempenhado pelo céu
em O Caçador de Pipas é central. Não se trata,
entretanto, da mecânica do “espaço como personagem”,
recorrente em filmes em que, por exemplo, cidades assumem
importância determinante. O céu aqui é muito mais um
ponto de vista e uma metáfora do que uma prosopopéia.
O símbolo, na verdade, é primário: por mais diferenças
que haja entre os homens, o firmamento, aquele onde
o vento faz as coisas voarem, é sempre o mesmo. O que,
no final das contas, seria um ideal de espelhamento:
uma vez que é o mesmo azul que nos encobre, a fraternidade
deveria ser quase uma determinação. Somos todos iguais
sob um mesmo céu.
Babel complicada, claro, utopia política mais ainda. Ainda mais difícil utopia
estética. Sobretudo porque a equalização produzida por essa metáfora em O
Caçador de Pipas, o filme, é dramatúrgica e de mise-en-scéne. Sem
eufemismos ou floreios, então: o filme é de uma banalidade acachapante. Claro,
o primeiro componente dessa banalidade é o livro que lhe dá origem. O Caçador
de Pipas, o romance de Khaled Hosseini, é já uma história pejada de todos
os clichês dramáticos que se possa imaginar – o que é obviamente uma influência
para o filme – e é escrito com todos os clichês literários que se possa imaginar – o
que não precisaria influenciar a versão cinematográfica. Mas influencia.
Além disso, Marc Forster, um diretor estranhamente consagrado, provavelmente
mais pelos temas “curiosos” escolhidos para seus filmes do que por algum “projeto
estético” que o afaste da banalidade, opta por fazer um filme cuja estratégia
principal é a conversão em celulóide de algo que se poderia chamar de “multiculturalismo”.
Visto de “longe” (do alto?), O Caçador de Pipas parece um filme de, digamos,
Samira Makhmalbaf (ou de qualquer diretor meso-oriental de exportação). É um
filme americano com cara de filme-do-oriente-médio-que-tem-cara-de-filme-americano. É como Filhos
do Paraíso (Majid Majidi) ou Cinco Horas da Tarde (Samira). Ou seja, é um
filme que segue uma cartilha de universalização de princípios e de situações
dramáticas. É um filme americano com cara de filme que concorre ao Oscar de melhor
filme estrangeiro.
Forster nos apresenta, então, a história com uma temperatura de cores e com uma
textura e granulação mais próximas de um cinema do Oriente Médio do que de uma
produção americana. Não bastasse isso, o filme é encenado em pashto e dari,
as duas línguas do Afeganistão. Tudo é feito ali para que se trate de um “filme
afegão”. E essa emulação do cinema meso-oriental se torna ainda mais estranha
se se considera o conjunto de clichês do roteiro: sob um mesmo céu, dois meninos
diferentes – em termos de raça e em termos de classe – são feitos iguais. É um
clichê recorrente. Já vimos barreiras semelhantes serem vencidas pela “inocência
da infância” inúmeras vezes. Hassam e Amir poderiam ser um filho de fazendeiro
e o outro trabalhador rural na Itália, filho de casa grande um e da senzala outro
no Brasil ou, digamos, um menino alemão oriental e um alemão ocidental (que,
por exemplo, trocariam pipas de um lado a outro do Muro de Berlim). Igualmente,
sob um mesmo céu, o homem, do outro lado do mundo, retornará a seu antigo país,
para reencontrar suas raízes, atendendo a um chamado do passado. E, no limite,
sob um mesmo céu, no final das contas, Amir e Hassan, cuja amizade os igualava
a irmãos, eram, enfim, irmãos, de sangue. E, além disso, não satisfeito com essa
conexão, o roteiro ainda faz com que o mesmo menino que violentou Hassam na infância
tenha crescido para se tornar o talibã que compra seu filho e repete a história
com o menino. Mais ainda, o roteiro – espelhando o livro – ainda colocará Amir
e Assef (o menino que virou talibã) diante de situação esquematicamente semelhante à vivida
entre eles na infância. Tudo isso aproxima O Caçador de Pipas mais de
uma soap opera do que qualquer outro formato dramatúrgico.
Não se trata, entretanto, de um purismo culturalista nem de gênero. Não é que
se fosse feito por um diretor iraniano “puro sangue” ou que se se afastasse do
novelão o filme seria melhor. E nem mesmo se assumisse claramente uma versão
metalingüística do melodrama ocidental. O que torna O Caçador de Pipas um
filme inócuo é o despropósito mesmo de todas as suas operações estéticas. Tudo
nessa obra mais a iguala a tudo mais que já se viu do que a diferencia, nada
ali mostra alguma novidade na maneira de olhar.
O limite de tudo isso é uma operação estética que chamaria de “ponto de vista
da pipa”. Trata-se de um efeito que o maior grau de recursos tecnológicos do
cinema americano permite a Forster – afinal, seu filme só precisa parecer afegão,
só precisa soar pobre, não precisa ser de fato. O “ponto de vista da pipa” é uma
câmera que sobe aos céus acompanhando o vôo das mesmas. Lá de cima, do céu que
tudo iguala, tudo é sempre puro êxtase inocente. Mesmo a competição entre os
meninos – uma forma que se amplia os laços entre uns, destila falta de solidariedade
entre outros – é pura doçura, apenas “coisa de meninos”. Daí os momentos em que
as pipas estão na história serem uma espécie de “lado de fora” no filme. Quando
elas voam, é um sinal de que os conflitos são menores que as relações e que os
laços. Quando há pipas no céu, tudo está bem. Não à toa, a primeira constatação
do menino já adulto na carta a seu amigo é que não há mais pipas no Afeganistão.
E seu grande sonho é que elas retornem aos céus.
Para que, metáfora primária, eles possam voltar a ser crianças novamente. Para
que a “inocência” retorne ao Afeganistão. Como filme político, O Caçador de
Pipas tem a complexidade de uma anedota de salão. E como drama humano, a
profundidade de uma planta baixa. Tudo que a trama consegue estabelecer é uma
dicotomia entre aqueles que, adultos, mantêm sua índole infantil – Hassam e,
depois de rever a si mesmo em uma viagem praticamente iniciática, Amir – e os
que, crianças, já traziam a “maldade” de adultos. O Afeganistão mesmo é apresentado
com essa dicotomia “era da inocência” (período pré-invasão soviética) x “era
da maldade” (o talibã). Não se trata, então, de aproximar o filme das mentes
juvenis. Não é um filme simplificado. Trata-se de um filme simplório.
Alexandre Werneck
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