Em algum outro filme, Charlie
Wilson (Tom Hanks), Joanne (Julia Roberts) e Gust (Philip Seymour Hoffman) possivelmente
seriam vilões. Charlie é um
político beberrão, Joanne uma nova-rica texana de extrema
direita, Gust um agente rebelado
da CIA. Eles encarnam um lado caricatural e, normalmente,
desprezível da América. E pior: estão à frente de uma
campanha para financiar uma guerra (mais uma). Para
completar, o diretor é Mike Nichols,
cujo filme anterior, Closer,
era montado numa relação em que a
crueldade do diretor com os personagens e a dos personagens
entre si se respondiam com total reciprocidade. Tínhamos
tudo, portanto, para simplesmente odiar os personagens
de Jogos do Poder.
Acontece que eles são heróis. De verdade. Lutam a boa
luta, mesmo que por vias tortuosas, com discursos patéticos
e mobilizando a parcela mais conservadora dos EUA. A
“guerra de Charlie Wilson”,
como no título original do filme, é a guerra que ele
literalmente compra ao decidir intervir no Afeganistão.
O protagonista é o homem responsável por corrigir a
negligência da CIA e do governo americano em relação
ao massacre que a União Soviética impunha aos afegãos.
O filme se passa na década de 80, época que, dos retornos
de Rocky Balboa e John Rambo a Queridos Amigos
(a mini-série da Globo), foi eleita o referencial oficial dos anos
2000, lugar onde buscamos o sentido e a genealogia do
nosso tempo. Mas tem alguma coisa nesse filme que nos
transporta aos anos 30. Em termos estritamente cinematográficos,
Nichols transmitiria essa
sensação por uma tentativa de equilíbrio entre Capra
e Lubitsch (evidentemente que ele passa longe da elegância
de ambos).
Na primeira cena de Jogos
do Poder, o congressista Charlie
Wilson (Tom Hanks) está em Las Vegas.
Ele assiste, de dentro de uma banheira,
rodeado de strippers, uísque e cocaína, ao telejornal que mostra helicópteros
russos detonando sem piedade aldeias inteiras no Afeganistão.
Seu olhar não deixa dúvida de que aquilo o sensibilizou
de alguma forma. Um político devasso, mas consciente.
Se o prólogo do filme, com ele sendo condecorado, parecia
piegas e romântico demais, a cena seguinte vem para
afirmar a contrapartida irônica do discurso. Charlie
desperta para a grande atitude de sua vida política
numa bela noite de farra em Las Vegas.
Eis porque Charlie
não é Forrest Gump, não é um ingênuo
alienado que tropeça na História e muda seu curso. Ele
é muito menos inocente e muito mais dono de suas atitudes.
E tampouco é um oportunista: a verdadeira tomada de
consciência ocorre na visita de Charlie ao Afeganistão, onde ele ouve as histórias, vê crianças
sem braços, sem pernas, mulheres que perderam os filhos...
e chora um choro verdadeiro. Agora ele realmente mostrou que
tem alma. É o velho morde-assopra do Nichols touch, que desde
A Primeira Noite de um Homem não pode pecar nem
por excesso de delicadeza, nem por excesso de mordacidade.
O heroísmo em Jogos
de Poder é entremeado de ironia, mas o protagonista
é realmente louvável no fim das contas. A personagem
de Julia Roberts também: ela
é a grande estrategista por trás de Charlie,
a grande articuladora. Quando ela exagera na parcela
religiosa de seus discursos, por exemplo, é para conseguir
o apoio de um bilionário que fala em Deus e na América
daquela forma superlativa reciclada pela era Bush. O
visual cafona da personagem, assim como seu comportamento
extravagante, reforça a “surpresa” posterior, de sua
seriedade no engajamento com a causa.
A melhor cena do filme se passa no escritório de Charlie
Wilson, cenário kitsch ornamentado com todos os signos
que um bom texano deve ostentar em seu ambiente de trabalho.
É a cena em que Gust
procura Charlie pela primeira
vez, levando-lhe uma garrafa de uísque de presente.
No mesmo momento, a secretária de Charlie traz a notícia de que ele está envolvido num escândalo
por conta de suas farras. Ocorre então um entra-e-sai
alucinado. A conversa com Gust
e as notícias trazidas pela secretária se alternam.
Gust entra por uma porta,
a secretária por outra. Quando um sai, o outro entra.
Gust depois revela que, enquanto
ficava lá fora, ouvia a conversa, pois grampeara a garrafa
de uísque com um pequenino microfone. Ao invés de teatro
de operações, o escritório de Charlie
é um simples palco de vaudeville.
Tal como vemos no filme, a guerra do Afeganistão foi
o divisor de águas: os americanos tinham ali a chance
de fazer alguma coisa decente em meio à era medieval
que os anos Reagan representavam. A cartela final traz
uma frase de Charlie que diz mais ou menos assim: fizemos bem ao intervir
no Afeganistão, mas estragamos tudo depois. Uma vez
terminada a guerra, eles não fizeram o serviço completo,
deixaram o país abandonado, sem escolas, sem hospitais,
sem alimentos, com uma população abaixo de 14 anos.
Investiram zilhões em armas
para alimentar a resistência afegã, mas não quiseram
investir alguns milhões em escolas, hospitais, moradias
etc. Gust, quase no final
do filme, chama Charlie para
uma conversa na sacada do apartamento onde este comemora
sua reeleição. Gust joga o uísque de Charlie num vaso de plantas e fala: “Escuta o que estou dizendo!”.
Enquanto Gust explica a situação
em que os EUA estão abandonando o Afeganistão, o zumbido
da passagem de um avião atravessa a pista sonora. O
avião não aparece, é só um som mesmo. É só um anúncio
profético – para os personagens do filme, nos anos 80
– e um lembrete – para os espectadores, que viram o
11 de setembro. Através desse jogo formal, Nichols transmite sua mensagem. Óbvia, mas necessária.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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