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Dos festivais e
do cinema
A cada ano, o mesmo blablablá necessário: os
festivais reconfiguram ano a ano nossa relação
com o presente do cinema, conduzem a novas percepções,
novos questionamentos. O regime intenso de ver diversos filmes
por dia, alguns entre os mais esteticamente decisivos dentro
do panorama contemporâneo, e ter que responder a eles
no calor da hora nos leva a um estado de prontidão
salutar no exercício crítico. Porque, ao contrário
da academia, a atividade crítica exige a necessária
tomada de posição (a crítica sem tomada
de posição equivale em paladar a uma salada
de alface com chuchu sem molho: inofensiva e sem graça)
ao mesmo tempo a paixão e a lucidez (fórmula
de Jean Douchet), o que em matéria de tempo se equaciona
entre o instante e a eternidade.
Para uma revista como a Contracampo, os festivais são
uma chance de entrar alegremente em regime de urgência
por duas semanas seguidas, demandando trabalho diário
e atualização constante. Mas os festivais não
demandam só isso. Demandam, acima de tudo, o trabalho
do pensamento para operar cruzamentos entre filmes, entre
operações estéticas, e tentar identificar
por quais caminhos segue o cinema mais estimulante, que mais
pede reflexão a respeito do modo de construção
da imagem (aspecto interno da linguagem) e do modo como essa
imagem estabelece relação com aquilo que está
diante dela (aspecto externo da linguagem).
Costuma fazer parte dos festivais a partilha entre cenário
contemporâneo e filmes já consolidados na história
do cinema, representados pelas retrospectivas presentes a
cada ano. E é particularmente instigante sair de três
filmes recentes (bons, ruins ou maravilhosos, pouco importa)
e rever ou presenciar pela primeira vez o contato com um grande
filme do passado. Esse curto-circuito temporal, ao invés
de confundir as coordenadas, serve para colocar em perspectiva
as preocuações de nosso tempo em relação
a outros, criar o saudável olhar de fora que muitas
vezes permite o questionamento desbravador sobre certas coisas
que, perto demais, sequer enxergamos no cinema que estamos
vendo. Nesse festival essa perspectiva não vai ser
exercida da forma costumeira, uma vez que as duas retrospectivas
de peso (John Wayne e cinema chinês dos anos 30-40)
vão ser exibidos quase que integralmente em dvd. O
interesse, no entanto, será compensado por um panorama
contemporâneo especialmente recheado de filmes instigantes
prova de nossa expectativa é que, além
de dedicarmos uma pauta de nossa seção de artigos
à prospecção de alguns filmes que prometem
nos cativar especialmente, e que nossa já tradicional
listinha de apostas não conseguiu se fixar no também
tradicional número de 30 filmes, estendendo para 35
e ainda deixando coisa boa de fora (porque, afinal, uma lista
de 40, 50, 60 já perde boa parte do foco que faz a
utilidade de listas desse tipo).
Já que o Festival desse ano não forneceu subsídios
a esse tipo de procedimento entre passado e presente do cinema,
nós, que não conseguimos viver sem isso (e acreditamos
que o mesmo se dá a todo cinéfilo e admirador
de arte em geral que tem a curiosidade de olhar para além
de onde o olho simplesmente aponta), decidimos fazer nossa
retrospectiva pessoal. E o indicado da vez foi Edward Yang,
morto aos 60 anos há dois meses. Ao menos desde que
Yi Yi passou pela primeira vez (também num Festival
do Rio) nas telas brasileiras, Yang já merecia uma
atenção mais detida a sua filmografia. No entanto,
a total inacessibilidade de seus filmes anteriores a Yi
Yi, mesmo no mercado informal das trocas não-oficiais,
impedia um olhar sobre a carreira completa do diretor. Além
da maravilha que é o último filme do diretor,
motivos não faltavam para avaliar o cinema de Yang
com um fôlego mais extenso: a incrível recepção
de seus filmes na mídia estrangeira (em especial A
Brighter Summer Day e The Terrorizer) e o pioneirismo
ao lado de Hou Hsiao-hsien na constituição do
cinema novo taiwanês dos anos 80 (aliás, qualquer
um que possa ser considerado "ao lado de" Hou já
merece figurar na grande história do cinema). Aproveitamos
a situação fúnebre parte da vida,
como seus próprios filmes nos ensinaram para
prestar nosso tributo a esse realizador tão essencial
quanto desconhecido de um cinema que já foi contemporâneo,
e aos poucos já vai se inscrevendo como História
pelo necessário transcorrer do tempo. Tempo, reflexão,
perspectiva: o cinema de Edward Yang passeia por tudo isso,
e, visto assim, nos estimula e guia a seguir o presente do
cinema nas etapas diárias do festival. Aos que nos
acompanharão (nos textos ou nos filmes ,ou em ambos),
desejamos boa aventura.
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