O gÂNGSTER
Ridley Scott, American Gangster, EUA, 2007


O plano “grandioso” que ajuda a compor a imagem de América épica...

...que a negociação entre Frank Lucas e Richie Roberts desmontará.

Há uma curiosíssima operação de elasticidade em O Gângster. O filme tem 157 minutos. Ao longo de mais ou menos 150, ele se apresenta de uma forma. Nos minutos finais, sofre uma guinada bastante desafiadora. Com um letreiro, e não com uma ação filmada, ficamos sabendo que o detetive Richie Roberts (Russell Crowe), o cruzado que perseguiu por anos os maiores traficantes de drogas dos Estados Unidos, deixou a chefia de seu destacamento especial e o cargo de procurador que conquistara graças a sua capacidade de manter a honestidade em um ambiente hostil a alguém que “encontrou um milhão de dólares no porta-malas de um carro e os devolveu”. Somos informados também (e também por um letreiro) que ele deixou o cargo, com o qual colocou atrás das grades o maior barão do tráfico dos Estados Unidos, Frank Lucas (Denzel Washington), para se tornar advogado privado. E, mais importante, somos informados que seu primeiro cliente foi... Frank Lucas. O impacto dessa informação transforma todo o filme.

Curiosa opção do cineasta por comprimir o grande desfecho e o grande conflito de seu filme em uma espécie de epílogo e em epílogo sem imagens relevantes, quase de maneira displicente. E isso é mais curioso ainda porque esse desfecho rompe com a dicotomia estabelecida em toda a obra até ali. Tínhamos antes daquele momento, frente a frente, mesmo que sem nunca se conhecerem e, até certo ponto, sem sequer saberem da existência um do outro, o embate entre dois homens. De um lado, aquele que é puro preceito moral, Richie Roberts, um rigor de observância da lei que sacrifica sua vida familiar pelas horas de investigação; de outro, aquele que é pura justificativa circunstancial, Lucas, que foi sendo levado pela vida a se tornar o magnata das drogas que se tornou e que tem a desculpa de dar continuidade ao legado de seu mestre e de dar vida melhor a sua família. Até aquele momento, tudo era, sem trocadilho, preto no branco. A partir dali, todo o filme ganha nuances de cinza antes impossíveis. O fato de Roberts relativizar o mundo torna-se a pedra de toque do longa-metragem. Afinal ele é, o título original informa, centrado na figura não de um gângster qualquer, mas de um gângster “americano”.

Ridley Scott é um cineasta que habitualmente peca pelo “excesso de personalidade”. Ou pelo menos pelo excesso de vontade de ter uma personalidade – com o perdão do argumento aparentemente pouco objetivo. Seus filmes em geral são narrações mais a serviço de uma demonstração de potência do que de “projeto estético”, mas como sempre são demonstrações de potência muito marcantes, elas passam por uma “vontade de estilo” (de potência?) de Scott. Lá estão, então, a iluminação performática de A Lenda (1985); ou a estética road movie de Thelma & Louise (1991); ou a grandiosidade new age de Gladiador (2000); ou ainda os contrastes na paleta de Falcão Negro em Perigo (2001). Todos esses recursos são mais informativos do que afirmativos. Tudo ali deixa claro que houve uma atuação do diretor no filme, que ele oferece um diferencial de “qualidade”. Mas nada disso mostrará nenhuma personalidade singular de artista.

O que ele faz em O Gângster, entretanto, é operar uma “economia” dessa “potência”. Sim, trata-se de um filme grandioso, de seqüências de ação complicadas e muitos extras, uma “superprodução”. Mas não se vêem aqui as armadilhas visuais de seus trabalhos anteriores. Em vez disso, vê-se um diretor que simplesmente “foi à escola”, que filma como se quisesse ser o Scorsese de Táxi Driver – toda a maneira como ele se aproxima de Nova York o coloca ao lado do típico estilo de mostrar a metrópole americana que se tornou quase um padrão a partir de Scorsese – ou o Coppola de O Poderoso Chefão – há vários momentos em que Lucas se assemelha a Michael Corleone, sobretudo> em sua relação com o irmão, mas também na construção de uma imagem de “desprendimento do mundo”. O grande mérito de Ridley Scott aqui foi o de agir como se fosse um principiante – o que rende inclusive os deslizes formais que são na verdade alguns dos melhores elementos do filme: é porque há imperfeições em sua estrutura e sobretudo em seu olhar que O Gângster se torna um filme bom.

Para registrar essas duas oposições, uma lógico-dramática e a outra estética, duas imagens são determinantes. O primeiro plano é um geral das ruas do Harlem no começo dos anos 1970, com Lucas e os irmãos andando no meio da calçada, como um detalhe. De Lucas, ouvimos a voz, discursando sobre a fidelidade e a racionalidade de seus “negócios” (logo depois, com um corte, veremos o grupo a caminhar, mais de perto). É um plano um tanto leoneano, seria até épico como os do italiano se a trilha sonora desse conta. Mas nele está impressa claramente uma imagem de América mítica. É plano para dizer: este é um filme de máfia, de ascensão do grande mafioso.

O segundo plano, médio, o último do filme, mostra Lucas a sair da prisão, em 1991 (com a ajuda de Roberts e graças a seus testemunhos contra os policiais corruptos), com a porta a se fechar atrás dele. É uma imagem bem mais fechada que a anterior e nela há pouco mais que Lucas e a porta que, ouvimos, dá diretamente para a cidade: em torno, vozes nas ruas, sinais de movimento, de vida, de uma “outra América” que ele aparentemente, dado o olhar de Denzel Washington, não reconhece mais.


Plano da saída de Frank Lucas da prisão: a América épica se desmonta e se transforma na América pós-progresso, que o criminoso não reconhecerá mais.

Entre uma imagem e outra, a guinada dos personagens de Roberts e Lucas. Ora, o traficante é o centro de uma contradição dos Estados Unidos: A América é o “país das oportunidades”, tanto que será possível a Lucas chegar aonde chegou. Ao mesmo tempo, entretanto, a um negro como ele não será permitido, na mesma América, o lugar de destaque de maior gângster, que deveria pertencer a um italiano ou irlandês. “Esta é minha casa, este é meu país”, diz ele, recusando-se a fugir para o exterior com a mulher. Não é tanto assim. Por seu lado, o policial tem um percurso de abrir mão de si mesmo pelo bem comum – no fundo pela vaidade, mas o resultado acaba sendo a ação pela lei e pela ordem. Ao longo do tempo, entretanto, vamos aprendendo dele que sua verdade está ligada à velha pergunta: você prefere ter razão ou ser feliz? Indiscutivelmente, ele prefere ter razão, custe o que custar. E nessa construção o roteiro acerta milimetricamente. Aliás, ao final, o que se pode concluir é que este O Gângster é um filme de roteiro – o que já se podia concluir a partir do fato de ele ter, afinal, uma “grande virada”, por mais que ela seja um tanto incomum e talvez discreta demais. O texto de Steven Zaillian, baseado na reportagem (um perfil) The Return of Superfly, publicada em agosto de 2000 na New York Magazine, por mais que recorra a certos clichês – os que apontei acima, como a da família mafiosa tradicional ou para uma construção um tanto plana do personagem de Lucas – municia a história com uma estrutura seca que torna tudo mais funcional para Scott. Ali, todos os contornos psicológicos dos personagens aparecem não em discursos, mas em suas ações. Há uma ou outra fala clichê (e uma ou outra maneira de falá-las de forma clichê, sobretudo da parte de Denzel Washington), um “Isto é a América” de um lado, um “Eu acredito em você” do outro, mas nada que prejudique a condução da grande tensão da trama, a composição entre dois personagens que se prestam a relativizar o que seja a “América”, entidade correspondente a um conjunto de princípios, a uma moral e uma visão de mundo.

A cena-ícone do filme, aquela em que Roberts apresenta ao agente federal a tese de que Lucas é o maior criminoso do país e em que ela é rechaçada como um total absurdo, é uma demonstração dessa habilidade. Ali, não é a ação profissional de investigador que está em questão, mas o papel de ativista pelas minorias. Roberts, judeu, um kike, como será pejorativamente chamado pelo agente, está ali defendendo o direito de um negro, um negro, fazer parte do grande melting pot étnico que “construiu” a América. Sim, essa é outra contradição importante do adjetivo pátrio do título original. Ser americano é fazer parte de uma tradição dúbia, da “construção da grande nação a ferro e fogo”, dos massacres “necessários”, de uma grande violência “desculpada” pelo surgimento de um grande país. A máfia é um capítulo especial dessa mitologia. Ela representa um elo perdido da América que a América finge que esqueceu, mas glamouriza (daí o plano da caminhada com os irmãos ser tão importante), glamour que judeus e ex-escravos não mereceriam. “Você é o progresso”, diz Roberts a Lucas. Ele também é.

E é um pouco esse elemento de progresso que aparece inscrito na discrição com que Roberts se transforma no filme. A passagem de um pensar no todo para um pensar em si demarca claramente um jogo de “desglamourização glamourizante”, de varredura para baixo do tapete que faz o grande. Ir defender Lucas é ao mesmo tempo o paroxismo do ethos do advogado, dar o direito de defesa a qualquer um, e o paroxismo do projeto individualista, dar a si um prêmio depois de toda luta “pelos outros”.

Porque, no final das contas, não é Lucas o grande vilão de Roberts, mas o sistema, aquele que impede o progresso. Daí a grande vitória celebrada no filme, o grande feito de Roberts (e Lucas) ser a contra a corrupção policial e não contra o tráfico de drogas (uma tese curiosa, aliás, a inscrita em uma partição moral: Lucas não é senão alguém ilegal, os policiais, não, são imorais. Afinal, Lucas está apenas seguindo o princípio central da América, o capitalismo: oferecendo mercadoria de qualidade a quem tem dinheiro para pagar por ela e sendo self-made-man por isso. Já os policiais não, são traidores. Deveriam estar em defesa da lei e estão apenas em defesa “do seu”.) Não à toa, o antagonista dramático de Roberts, aquela a quem ele se opõe nas cenas é muito mais do detetive Trupo (Josh Brolin) do que propriamente Lucas.

E no que diz respeito à guinada de Robers, para o filme o trânsito em questão, afinal, não é tão grande assim que mereça mais que uma menção “de letreiro” – este é um jogo de retórica, claro, o filme não perderia em ter uma cena que desse conta da passagem entre policial, advogado de acusação e advogado de defesa. Missão cumprida, o homem da lei pode ir ser... ora, homem da lei.

E Scott resolveu estar ali para simplesmente assistir a tudo isso e para dar voz a esse conflito. Daí provavelmente O Gângster ser o melhor momento do diretor desde Blade Runner: Caçador de Andróides (1982) – formando com ele e com Alien: O Oitavo Passageiro (1979) sua tríade de filmes efetivamente marcantes, curiosamente todos os três marcados por uma problemática de estranhamento do diferente e da violência como mecânica desse estranhamento. Nas mãos do diretor, nasce um filme mais próximo de, por exemplo, do recente Zodíaco (2007), de David Fincher, ou de filmes como os de Sidney Lumet, do que de sua habitual sanha performática.

Parece ser, aliás, um certo movimento de carreira. Em seus últimos filmes, os que se seguiram àquele que é o ápice de seus exercícios de performatismo visual, Falcão Negro em Perigo, vê-se um claro movimento de simplificação. Salvo por Cruzada (2005), seus três outros trabalhos, Os Vigaristas (2003) e Um Bom Ano (2006) e este O Gângster são bastante mais “discretos”, digamos. Mas tanto Matchstick Men quanto A Good Year são marcados pelo principal traço de Scott, a falta de sutileza (o que lhes retira a sutileza de imediato). São filmes quase primários em suas tentativas de serem comédias clássicas. Com a saga de Frank Lucas e entregue a um filme policial tradicional, Scott aparece menos que seu filme.

Alexandre Werneck