O plano “grandioso” que ajuda a compor a
imagem de América épica...
...que a negociação entre Frank Lucas e Richie
Roberts desmontará.
Há uma curiosíssima operação
de elasticidade em O Gângster. O filme tem 157
minutos. Ao longo de mais ou menos 150, ele se apresenta
de uma forma. Nos minutos finais, sofre uma guinada
bastante desafiadora. Com um letreiro, e não com uma
ação filmada, ficamos sabendo que o detetive Richie
Roberts (Russell Crowe), o cruzado que perseguiu por
anos os maiores traficantes de drogas dos Estados Unidos,
deixou a chefia de seu destacamento especial e o cargo
de procurador que conquistara graças a sua capacidade
de manter a honestidade em um ambiente hostil a alguém
que “encontrou um milhão de dólares no porta-malas
de um carro e os devolveu”. Somos informados também
(e também por um letreiro) que ele deixou o cargo,
com o qual colocou atrás das grades o maior barão do
tráfico dos Estados Unidos, Frank Lucas (Denzel Washington),
para se tornar advogado privado. E, mais importante,
somos informados que seu primeiro cliente
foi... Frank Lucas. O impacto dessa informação transforma
todo o filme.
Curiosa opção do cineasta por comprimir o grande desfecho e o grande conflito
de seu filme em uma espécie de epílogo e em epílogo sem imagens relevantes, quase
de maneira displicente. E isso é mais curioso ainda porque esse desfecho rompe
com a dicotomia estabelecida em toda a obra até ali. Tínhamos antes daquele momento,
frente a frente, mesmo que sem nunca se conhecerem e, até certo ponto, sem sequer
saberem da existência um do outro, o embate entre dois homens. De um lado, aquele
que é puro preceito moral, Richie Roberts, um rigor de observância da lei que
sacrifica sua vida familiar pelas horas de investigação; de outro, aquele que é pura
justificativa circunstancial, Lucas, que foi sendo levado pela vida a se tornar
o magnata das drogas que se tornou e que tem a desculpa de dar continuidade ao
legado de seu mestre e de dar vida melhor a sua família. Até aquele momento,
tudo era, sem trocadilho, preto no branco. A partir dali, todo o filme ganha
nuances de cinza antes impossíveis. O fato de Roberts relativizar o mundo torna-se
a pedra de toque do longa-metragem. Afinal ele é, o título original informa,
centrado na figura não de um gângster qualquer, mas de um gângster “americano”.
Ridley Scott é um cineasta que habitualmente peca pelo “excesso de personalidade”.
Ou pelo menos pelo excesso de vontade de ter uma personalidade – com o perdão
do argumento aparentemente pouco objetivo. Seus filmes em geral são narrações
mais a serviço de uma demonstração de potência do que de “projeto estético”,
mas como sempre são demonstrações de potência muito marcantes, elas passam por
uma “vontade de estilo” (de potência?) de Scott. Lá estão, então, a iluminação
performática de A Lenda (1985); ou a estética road movie de Thelma & Louise (1991);
ou a grandiosidade new age de Gladiador (2000); ou ainda os contrastes
na paleta de Falcão Negro em Perigo (2001). Todos esses recursos são mais
informativos do que afirmativos. Tudo ali deixa claro que houve uma atuação do
diretor no filme, que ele oferece um diferencial de “qualidade”. Mas nada disso
mostrará nenhuma personalidade singular de artista.
O que ele faz em O Gângster, entretanto, é operar uma “economia” dessa “potência”.
Sim, trata-se de um filme grandioso, de seqüências de ação complicadas e muitos
extras, uma “superprodução”. Mas não se vêem aqui as armadilhas visuais de seus
trabalhos anteriores. Em vez disso, vê-se um diretor que simplesmente “foi à escola”,
que filma como se quisesse ser o Scorsese de Táxi Driver – toda a maneira
como ele se aproxima de Nova York o coloca ao lado do típico estilo de mostrar
a metrópole americana que se tornou quase um padrão a partir de Scorsese – ou
o Coppola de O Poderoso Chefão – há vários momentos em que Lucas se assemelha
a Michael Corleone, sobretudo> em sua relação com o irmão, mas também na construção
de uma imagem de “desprendimento do mundo”. O grande mérito de Ridley Scott aqui
foi o de agir como se fosse um principiante – o que rende inclusive os deslizes
formais que são na verdade alguns dos melhores elementos do filme: é porque há imperfeições
em sua estrutura e sobretudo em seu olhar que O Gângster se torna um filme
bom.
Para registrar essas duas oposições, uma lógico-dramática e a outra estética,
duas imagens são determinantes. O primeiro plano é um geral das ruas do Harlem
no começo dos anos 1970, com Lucas e os irmãos andando no meio da calçada, como
um detalhe. De Lucas, ouvimos a voz, discursando sobre a fidelidade e a racionalidade
de seus “negócios” (logo depois, com um corte, veremos o grupo a caminhar, mais
de perto). É um plano um tanto leoneano, seria até épico como os do italiano
se a trilha sonora desse conta. Mas nele está impressa claramente uma imagem
de América mítica. É plano para dizer: este é um filme de máfia, de ascensão
do grande mafioso.
O segundo plano, médio, o último do filme, mostra Lucas a sair da prisão, em
1991 (com a ajuda de Roberts e graças a seus testemunhos contra os policiais
corruptos), com a porta a se fechar atrás dele. É uma imagem bem mais fechada
que a anterior e nela há pouco mais que Lucas e a porta que, ouvimos, dá diretamente
para a cidade: em torno, vozes nas ruas, sinais de movimento, de vida, de uma “outra
América” que ele aparentemente, dado o olhar de Denzel Washington, não reconhece
mais.
Plano da saída de Frank Lucas da prisão: a América épica
se desmonta e se transforma na América pós-progresso, que o
criminoso não reconhecerá mais.
Entre uma imagem e outra, a guinada dos personagens de Roberts e Lucas. Ora,
o traficante é o centro de uma contradição dos Estados Unidos: A América é o “país
das oportunidades”, tanto que será possível a Lucas chegar aonde chegou. Ao mesmo
tempo, entretanto, a um negro como ele não será permitido, na mesma América,
o lugar de destaque de maior gângster, que deveria pertencer a um italiano ou
irlandês. “Esta é minha casa, este é meu país”, diz ele, recusando-se a fugir
para o exterior com a mulher. Não é tanto assim. Por seu lado, o policial tem
um percurso de abrir mão de si mesmo pelo bem comum – no fundo pela vaidade,
mas o resultado acaba sendo a ação pela lei e pela ordem. Ao longo do tempo,
entretanto, vamos aprendendo dele que sua verdade está ligada à velha pergunta:
você prefere ter razão ou ser feliz? Indiscutivelmente, ele prefere ter razão,
custe o que custar. E nessa construção o roteiro acerta milimetricamente. Aliás,
ao final, o que se pode concluir é que este O Gângster é um filme de roteiro – o
que já se podia concluir a partir do fato de ele ter, afinal, uma “grande virada”,
por mais que ela seja um tanto incomum e talvez discreta demais. O texto de Steven
Zaillian, baseado na reportagem (um perfil) The Return of Superfly, publicada
em agosto de 2000
na New York Magazine, por mais que recorra a certos clichês – os que apontei
acima, como a da família mafiosa tradicional ou para uma construção um tanto
plana do personagem de Lucas – municia a história com uma estrutura seca que
torna tudo mais funcional para Scott. Ali, todos os contornos psicológicos dos
personagens aparecem não em discursos, mas em suas ações. Há uma ou outra fala
clichê (e uma ou outra maneira de falá-las de forma clichê, sobretudo da parte
de Denzel Washington), um “Isto é a América” de um lado, um “Eu acredito em você” do
outro, mas nada que prejudique a condução da grande tensão da trama, a composição
entre dois personagens que se prestam a relativizar o que seja a “América”, entidade
correspondente a um conjunto de princípios, a uma moral e uma visão de mundo.
A cena-ícone do filme, aquela em que Roberts apresenta ao agente federal a tese
de que Lucas é o maior criminoso do país e em que ela é rechaçada como um total
absurdo, é uma demonstração dessa habilidade. Ali, não é a ação profissional
de investigador que está em questão, mas o papel de ativista pelas minorias.
Roberts, judeu, um kike, como será pejorativamente chamado pelo agente,
está ali defendendo o direito de um negro, um negro, fazer parte do grande melting
pot étnico que “construiu” a América. Sim, essa é outra contradição importante
do adjetivo pátrio do título original. Ser americano é fazer parte de uma tradição
dúbia, da “construção da grande nação a ferro e fogo”, dos massacres “necessários”,
de uma grande violência “desculpada” pelo surgimento de um grande país. A máfia é um
capítulo especial dessa mitologia. Ela representa um elo perdido da América que
a América finge que esqueceu, mas glamouriza (daí o plano da caminhada
com os irmãos ser tão importante), glamour que judeus e ex-escravos não mereceriam. “Você é o
progresso”, diz Roberts a Lucas. Ele também é.
E é um pouco esse elemento de progresso que aparece inscrito na discrição com
que Roberts se transforma no filme. A passagem de um pensar no todo para um pensar
em si demarca claramente um jogo de “desglamourização glamourizante”, de varredura
para baixo do tapete que faz o grande. Ir defender Lucas é ao mesmo tempo o paroxismo
do ethos do advogado, dar o direito de defesa a qualquer um, e o paroxismo
do projeto individualista, dar a si um prêmio depois de toda luta “pelos outros”.
Porque, no final das contas, não é Lucas o grande vilão de Roberts, mas o sistema,
aquele que impede o progresso. Daí a grande vitória celebrada no filme, o grande
feito de Roberts (e Lucas) ser a contra a corrupção policial e não contra o tráfico
de drogas (uma tese curiosa, aliás, a inscrita em uma partição moral: Lucas não é senão
alguém ilegal, os policiais, não, são imorais. Afinal, Lucas está apenas seguindo
o princípio central da América, o capitalismo: oferecendo mercadoria de qualidade
a quem tem dinheiro para pagar por ela e sendo self-made-man por isso. Já os
policiais não, são traidores. Deveriam estar em defesa da lei e estão apenas
em defesa “do seu”.) Não à toa, o antagonista dramático de Roberts, aquela a
quem ele se opõe nas cenas é muito mais do detetive Trupo (Josh Brolin) do que
propriamente Lucas.
E no que diz respeito à guinada de Robers, para o filme o trânsito em questão,
afinal, não é tão grande assim que mereça mais que uma menção “de letreiro” – este é um
jogo de retórica, claro, o filme não perderia em ter uma cena que desse conta
da passagem entre policial, advogado de acusação e advogado de defesa. Missão
cumprida, o homem da lei pode ir ser... ora, homem da lei.
E Scott resolveu estar ali para simplesmente assistir a tudo isso e para dar
voz a esse conflito. Daí provavelmente O Gângster ser o melhor momento
do diretor desde Blade Runner: Caçador de Andróides (1982) – formando
com ele e com Alien: O Oitavo Passageiro (1979) sua tríade de filmes efetivamente
marcantes, curiosamente todos os três marcados por uma problemática de estranhamento
do diferente e da violência como mecânica desse estranhamento. Nas mãos do diretor,
nasce um filme mais próximo de, por exemplo, do recente Zodíaco (2007),
de David Fincher, ou de filmes como os de Sidney Lumet, do que de sua habitual
sanha performática.
Parece ser, aliás, um certo movimento de carreira. Em seus últimos filmes, os
que se seguiram àquele que é o ápice de seus exercícios de performatismo visual, Falcão
Negro em Perigo, vê-se um claro movimento de simplificação. Salvo por Cruzada (2005),
seus três outros trabalhos, Os Vigaristas (2003) e Um Bom Ano (2006)
e este O Gângster são bastante mais “discretos”, digamos. Mas tanto Matchstick
Men quanto A Good Year são marcados pelo principal traço de Scott,
a falta de sutileza (o que lhes retira a sutileza de imediato). São filmes quase
primários em suas tentativas de serem comédias clássicas. Com a saga de Frank
Lucas e entregue a um filme policial tradicional, Scott aparece menos que seu
filme.
Alexandre Werneck
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