No cinema brasileiro da escola
da preparação de elenco, os diretores volta e meia se
limitam a constatar uma verdade do ator/personagem.
O trabalho de câmera dificilmente ousa ultrapassar essa
linha, rechaçando qualquer camada extra de estilo ou
de sentido e renunciando a problematizar a forma para
apenas acompanhar a respiração do ator, ou registrar
passivamente a força do momento, ou deixar-se levar
pelo estado de espírito do personagem. Isso dá a virtude
e a fragilidade de alguns filmes (no próprio
Tropa de Elite, a
câmera urgente/irracional funciona bem nas cenas de
adrenalina, mas quando o filme precisa mostrar uma briga
de casal ou uma discussão em sala de aula, a coisa fica
meio caricata).
No cinema brasileiro que faz grande sucesso de bilheteria,
o tema (Cidade de Deus, Carandiru), o personagem (Dois
Filhos de Francisco,
Cazuza) ou o star-system
“global” (Se Eu
Fosse Você) predispõem o espírito do espectador.
E – não apenas por essas razões, mas partindo delas
– os filmes fazem sucesso, são populares.
Propagandeado em Brasília
como um fenômeno de público em potencial, Chega
de Saudade entrou em cartaz se afastando das duas
tendências acima descritas. Não é um filme de preparação
de elenco, não investe na entrega individual de cada
ator nem numa arte do presente bruto captado à flor
da pele. Também não é um filme que atraia o grande público
pelo tema (baile de terceira idade), pelo personagem
(há uma constelação de personagens, nenhum deles particularmente
sedutor) ou pelo star-system “global” (o elenco é basicamente composto por
atores veteranos fora de moda e dois atores jovens que
não chegaram a emplacar um estrelato na TV). Ao que
parece, então, para ter um perfil de filme popular –
e aí entra uma discussão sem fim sobre o que é ou não
popular – Chega de Saudade precisa de algo que não
está dado de antemão. Mas o que o filme oferece, de
fato?
Das dezenas de personagens, o único que contém alguma
densidade é o DJ (Paulo Vilhena). Isso diz bastante sobre Chega de Saudade, pois o DJ é o personagem tomado pelo desconforto,
pelo ciúme, pela vontade de ver aquele baile acabar
logo. Foi só essa parcela que o filme conseguiu passar
de forma convincente. O resto ficou encoberto por um
roteiro cheio de subterfúgios (a cena em que falta luz
no salão nos põe a imaginar a equipe pensando: “o que
fazer com este filme agora?”). O filme é uma espécie
de remake de O Baile (Ettore Scola)
onde a sucessão de épocas se troca pela sucessão de
personagens que, em si, encarnam as mudanças provocadas
pelo tempo. Não é um ponto de partida ruim, mas os resultados
decepcionam. Ainda mais porque Laís
Bodanzky tinha um filme admirável no currículo, Bicho de sete cabeças.
É claro que Chega
de Saudade se cerca de uma série de atrativos: trilha
sonora, participações especiais, Walter Carvalho. Mas
nada supre o vazio plantado no coração do filme. Alguns
desses elementos até atrapalham, a exemplo da fotografia
de Carvalho, confundida com “garantia de bom filme”
e, aqui, entregue a jogos de
foco/fora-de-foco (que substituem
o campo/contracampo tradicional) e contrastes que menos
singularizam do que empobrecem a dramaturgia. Ele importa
de trabalhos anteriores uma liberdade de composição
e uma possibilidade de resolver os impasses sentimentais
através de planos soltos, “não decupados”,
às vezes alongados, que parece em defasagem total com
o que se espera das situações dramáticas de Chega de Saudade. A câmera desliza pelo
salão registrando fragmentos que não chegam a compor
uma ambiência, uma cena, quiçá um personagem. Fica uma
carne desfiada do real sem muita consistência. Há uma
cesura entre os personagens e suas histórias, suas emoções.
A transmissão entre eles e a dramaturgia está falha,
arquejante. Nos flash-backs,
uma imagem cinza, grisalha, lavada, interdita de vez
a vida naquele baile.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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