As ficções da carne
Há uma pulsão pela ficção que
sempre dominou os filmes de Paul Verhoeven. Esta pulsão
mais do que nunca é visível num filme como este A
Espiã. Verhoeven e seu roteirista, Gerard Soetman,
constroem aqui, à primeira vista, um filme muito mais
discreto do que seu habitual, quase uma película de
prestígio. Pode-se dizer que A Espiã seja Paul
Verhoeven desprovido do excesso que fez sua glória
tanto na Holanda quanto nos EUA. Porém, é justamente
esta aparente timidez que termina sendo a chave para
celebrar este desejo de ficção. O que está em jogo,
em A Espiã é justamente o essencial de Verhoeven,
a maneira como uma série de desejos desequilibra a
normativa social. Este é muito menos um filme sobre
como as regras da sociedade mudam em tempos de guerra – a
leitura mais óbvia da sua narrativa –, e mais como,
na lógica de mundo de Verhoeven, tais regras são uma
enorme besteira.
Luiz Zanin, num ataque
brutal ao filme publicado no Estado de São Paulo, descreveu
o ritmo supostamente incessante de A Espiã como "pauleira pura". Zanin
usa
o termo de maneira derrogatória, mas há uma verdade ali. Pois há uma selvageria
no filme que torna-o o exato oposto de um filme celebrado pelos baluartes do
bom gosto como A Vida dos Outros. É este mesmo elemento que torna Verhoeven
muito maior – e muito mais verdadeiro – que o humanismo sentimental do filme
alemão. Verhoeven e Soetman adoram um elemento pulp, e jogam nos 140 minutos
do filme cada truque, cada reviravolta e situação-clichê que conseguem. A ficção
vulgar desestabiliza a lógica de bons modos do filme de prestigio que deveria
reinar, abrindo as portas para selvageria do cineasta. Verhoeven é um grande
misantropo, sua filosofia como bem colocou certa vez Jacques Rivette é a de sobreviver
num universo habitado por babacas, a lógica da sua ficção é sempre a da parábola
de sobrevivência de um escolhido, e a arma de seus sobreviventes, sempre a inteligência
com que se orientam pelas diversas pulsões que guiam este universo.
Neste panorama, A Espiã é talvez o mais cristalino dos filmes de Verhoeven,
o mais exato na sua dedicação a, como bem colocou Sergio
Alpendre em seu texto na
Paisà, uma imagem
justa. É possível uma imagem justa dentro de um olhar tão negativo? É esta no
fundo a questão que Verhoeven se propõe a responder aqui. O cineasta tem dois
grandes parceiros em tal empreitada: de um lado, como já mencionamos, a ficção
malvada de Soetman, que a partir de uma série de relatos da II Guerra tece menos
o exercício de relativismo histórico que alguns querem ver, e mais uma acusação
contra toda a Holanda do período. De outro, a esplendorosa Carice van Houten,
que ancora todo o filme, tanto pela inteligência com que se conduz por cada situação
que Verhoeven e Soetman lhe atiram, como pela presença física que impõe ao filme.
Não é por nada que Robocop é o filme central da obra de Verhoeven. O corpo é a
peça de resistência da sua filosofia misantropa. O corpo que se transmuta, que
se torna duro, que resiste. As figuras mais marcantes da obra de Verhoeven são
todas variações sobre Robocop: Schwarzenegger, o mais material dos efeitos
especiais em O Vingador do Futuro; a stripper de Showgirls,
a Rachel deste A Espiã. Quando tal personagem inexiste, como em Tropas
Estelares, o elemento humano desaparece por completo. Todos, à sua maneira,
são corpos-arma, dispostos a domar a lógica das pulsões à sua volta, sejam as
da violência (O Vingador do Futuro), as sexuais (Showgirls), ou
um misto delas (A Espiã). Há da parte de Verhoeven, há pelo menos uns
bons 30 anos, o desejo de filmar a via-crúcis de Cristo; na sua impossibilidade,
dá forma a estas parábolas de corpos de resistência que remodelam o universo
em seu entorno. À primeira vista, é van Hauten que se transmuta de morena a loira
(até mesmo nos pelos pubianos, no que é talvez o toque verhoeveniano definitivo
no filme), de judia a gentio; mas a verdadeira lógica da transformação é outra:
de cantora a espiã, daquela que seduz sem conseqüência, para aquela que doma
os desejos do general nazista. Van Hauten é tanto a âncora da ficção de Verhoeven,
que garante que ela nunca desande para o titereísmo de um von Trier, que aponta
como o principal elemento desestabilizador. A imagem de Verhoeven a respeita,
ela se impõe ao movimento do cineasta. Mesmo quando atravessa as provações e
humilhações mais grotescas, nunca temos dúvidas da fascinação que o filme nutre
por ela.
O que os resistentes de Verhoeven compreendem é que no essencialismo do universo
do cineasta, onde não há boa ação que não seja punida, o que resta é carne: a
imponência da superfície e as pulsões do desejo. Numa das muitas seqüências perfeitamente
construídas de A Espiã, nossa heroína se vê num vagão de trem em companhia
de um oficial nazista (Sebastian Koch). Há aqui, na observação da linguagem corporal
e na maneira como a seqüência é espacialmente organizada, toda uma negociação
que se desenvolve; não se trata propriamente uma cena de sedução – esta está estabelecida
desde o primeiro plano –, mas de um simples reconhecimento do que está em jogo
ali. Trata-se da mais civilizada troca entre personagens de todo o filme.
As
melhores
seqüências de Verhoeven são sempre assim: um momento de claridade, direto e nu
onde a personagem compreende a forma como seu mundo é desprovido de um centro.
A partir dali, tudo fica mais fácil. Seja nos perigos da guerra, seja nos horrores
bem diferentes da liberação (e é bem típico do cineasta, que afinal odeia a dissimulação,
que a segunda seja tratada de maneira ainda mais hedionda que a primeira).
Mais
do que qualquer outro protagonista de Verhoeven, Rachel é pura carne. Ela é o
que aparenta, e é isto que, por fim, desarma todos à sua volta. Ela é a manifestação
direta da tessitura que aflige a noção de história do cineasta. A Espiã se
abre com um misterioso “baseado em fatos reais”, que difere de cartelas semelhantes
na medida que o filme não é baseado num caso específico, mas é uma colagem dos
relatos mais negativos que Verhoeven e Soetman colheram quando pesquisaram a
resistência holandesa para Soldado de Laranja (1977). Trata-se muito
menos da ditadura do crível que tal inscrição normalmente sugere (pensemos em Cidade
de Deus), e mais de um valor fantasmagórico que a idéia de que há uma pesquisa
histórica por trás dessa ficção de horrores apresenta. A Rachel de van Hauten
termina se estabelecendo como a força ficcional que permite que o filme se transmute
de história a ficção – e que o livro negro do titulo original saia da clandestinidade
junto com o colaboracionismo holandês –, para depois, no seu belíssimo movimento
final, em que adentra o kibutz israelense cerca de doze anos depois da liberação,
ser devolvida à história.
Filipe Furtado
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