A ESPIÃ
Paul Verhoeven, Zwartboek, Holanda, 2006

As ficções da carne

Há uma pulsão pela ficção que sempre dominou os filmes de Paul Verhoeven. Esta pulsão mais do que nunca é visível num filme como este A Espiã. Verhoeven e seu roteirista, Gerard Soetman, constroem aqui, à primeira vista, um filme muito mais discreto do que seu habitual, quase uma película de prestígio. Pode-se dizer que A Espiã seja Paul Verhoeven desprovido do excesso que fez sua glória tanto na Holanda quanto nos EUA. Porém, é justamente esta aparente timidez que termina sendo a chave para celebrar este desejo de ficção. O que está em jogo, em A Espiã é justamente o essencial de Verhoeven, a maneira como uma série de desejos desequilibra a normativa social. Este é muito menos um filme sobre como as regras da sociedade mudam em tempos de guerra – a leitura mais óbvia da sua narrativa –, e mais como, na lógica de mundo de Verhoeven, tais regras são uma enorme besteira.

Luiz Zanin, num ataque brutal ao filme publicado no Estado de São Paulo, descreveu o ritmo supostamente incessante de A Espiã como "pauleira pura". Zanin usa o termo de maneira derrogatória, mas há uma verdade ali. Pois há uma selvageria no filme que torna-o o exato oposto de um filme celebrado pelos baluartes do bom gosto como A Vida dos Outros. É este mesmo elemento que torna Verhoeven muito maior – e muito mais verdadeiro – que o humanismo sentimental do filme alemão. Verhoeven e Soetman adoram um elemento pulp, e jogam nos 140 minutos do filme cada truque, cada reviravolta e situação-clichê que conseguem. A ficção vulgar desestabiliza a lógica de bons modos do filme de prestigio que deveria reinar, abrindo as portas para selvageria do cineasta. Verhoeven é um grande misantropo, sua filosofia como bem colocou certa vez Jacques Rivette é a de sobreviver num universo habitado por babacas, a lógica da sua ficção é sempre a da parábola de sobrevivência de um escolhido, e a arma de seus sobreviventes, sempre a inteligência com que se orientam pelas diversas pulsões que guiam este universo.

Neste panorama, A Espiã é talvez o mais cristalino dos filmes de Verhoeven, o mais exato na sua dedicação a, como bem colocou Sergio Alpendre em seu texto na Paisà, uma imagem justa. É possível uma imagem justa dentro de um olhar tão negativo? É esta no fundo a questão que Verhoeven se propõe a responder aqui. O cineasta tem dois grandes parceiros em tal empreitada: de um lado, como já mencionamos, a ficção malvada de Soetman, que a partir de uma série de relatos da II Guerra tece menos o exercício de relativismo histórico que alguns querem ver, e mais uma acusação contra toda a Holanda do período. De outro, a esplendorosa Carice van Houten, que ancora todo o filme, tanto pela inteligência com que se conduz por cada situação que Verhoeven e Soetman lhe atiram, como pela presença física que impõe ao filme.

Não é por nada que Robocop é o filme central da obra de Verhoeven. O corpo é a peça de resistência da sua filosofia misantropa. O corpo que se transmuta, que se torna duro, que resiste. As figuras mais marcantes da obra de Verhoeven são todas variações sobre Robocop: Schwarzenegger, o mais material dos efeitos especiais em O Vingador do Futuro; a stripper de Showgirls, a Rachel deste A Espiã. Quando tal personagem inexiste, como em Tropas Estelares, o elemento humano desaparece por completo. Todos, à sua maneira, são corpos-arma, dispostos a domar a lógica das pulsões à sua volta, sejam as da violência (O Vingador do Futuro), as sexuais (Showgirls), ou um misto delas (A Espiã). Há da parte de Verhoeven, há pelo menos uns bons 30 anos, o desejo de filmar a via-crúcis de Cristo; na sua impossibilidade, dá forma a estas parábolas de corpos de resistência que remodelam o universo em seu entorno. À primeira vista, é van Hauten que se transmuta de morena a loira (até mesmo nos pelos pubianos, no que é talvez o toque verhoeveniano definitivo no filme), de judia a gentio; mas a verdadeira lógica da transformação é outra: de cantora a espiã, daquela que seduz sem conseqüência, para aquela que doma os desejos do general nazista. Van Hauten é tanto a âncora da ficção de Verhoeven, que garante que ela nunca desande para o titereísmo de um von Trier, que aponta como o principal elemento desestabilizador. A imagem de Verhoeven a respeita, ela se impõe ao movimento do cineasta. Mesmo quando atravessa as provações e humilhações mais grotescas, nunca temos dúvidas da fascinação que o filme nutre por ela.

O que os resistentes de Verhoeven compreendem é que no essencialismo do universo do cineasta, onde não há boa ação que não seja punida, o que resta é carne: a imponência da superfície e as pulsões do desejo. Numa das muitas seqüências perfeitamente construídas de A Espiã, nossa heroína se vê num vagão de trem em companhia de um oficial nazista (Sebastian Koch). Há aqui, na observação da linguagem corporal e na maneira como a seqüência é espacialmente organizada, toda uma negociação que se desenvolve; não se trata propriamente uma cena de sedução – esta está estabelecida desde o primeiro plano –, mas de um simples reconhecimento do que está em jogo ali. Trata-se da mais civilizada troca entre personagens de todo o filme. As melhores seqüências de Verhoeven são sempre assim: um momento de claridade, direto e nu onde a personagem compreende a forma como seu mundo é desprovido de um centro. A partir dali, tudo fica mais fácil. Seja nos perigos da guerra, seja nos horrores bem diferentes da liberação (e é bem típico do cineasta, que afinal odeia a dissimulação, que a segunda seja tratada de maneira ainda mais hedionda que a primeira).

Mais do que qualquer outro protagonista de Verhoeven, Rachel é pura carne. Ela é o que aparenta, e é isto que, por fim, desarma todos à sua volta. Ela é a manifestação direta da tessitura que aflige a noção de história do cineasta. A Espiã se abre com um misterioso “baseado em fatos reais”, que difere de cartelas semelhantes na medida que o filme não é baseado num caso específico, mas é uma colagem dos relatos mais negativos que Verhoeven e Soetman colheram quando pesquisaram a resistência holandesa para Soldado de Laranja (1977).  Trata-se muito menos da ditadura do crível que tal inscrição normalmente sugere (pensemos em Cidade de Deus), e mais de um valor fantasmagórico que a idéia de que há uma pesquisa histórica por trás dessa ficção de horrores apresenta. A Rachel de van Hauten termina se estabelecendo como a força ficcional que permite que o filme se transmute de história a ficção – e que o livro negro do titulo original saia da clandestinidade junto com o colaboracionismo holandês –, para depois, no seu belíssimo movimento final, em que adentra o kibutz israelense cerca de doze anos depois da liberação, ser devolvida à história.

Filipe Furtado