Em seus filmes, José Luis Guerin
parece sempre empunhar a câmera como quem só pode ver
verdadeiramente através de uma lente. Sua arte assemelha-se
profundamente à da fotografia: recortes de instantes,
produzidos pelo olhar
inquieto que busca no mundo o espelho de seus próprios sentimentos.
Mas, diferentemente da fotografia propriamente dita, os quadros do cinema de
Guerin possuem movimento interno – pois estão abertos ao tempo –, e configuram
instantâneos apenas de forma provisória.
Se Lumière nos vem imediatamente à mente, é justamente
por este aspecto de “instantâneos” frutos de uma composição exposta à duração.
Filmar com interesse nos micro-acontecimentos que parecem só serem possíveis
de
se dar uma única vez, num único instante. Assim temos, em En La Ciudad de
Sylvia, a deambulação de passantes, ou o deixar
estar das pessoas no café; em En
Construcción, as reações do povo ao cemitério encontrado sob a terra; em Innisfree,
a fala encabulada de crianças locais, ou a briga de cachorros que irrompe subitamente.
Sempre algo derivado
do encontro entre a câmera e manifestações de vida – num momento preciso, em
coordenadas determinadas.
A relação entre homem e espaço oferece a todo artista da imagem figurativa um
equilíbrio particular entre ser vivo e paisagem. No caso dos filmes de Guerin,
esta dinâmica se dá com base na interdependência entre estes dois elementos.
Sua preferência marcante pela lente normal nos dá quase sempre quadros em que
figura e fundo competem em importância. Em um espaço-tempo dado, é o todo
do
ambiente
que se oferece à visão que magnetiza a câmera. Aflora, desta forma, uma
tensão entre fragmento e conjunto – que termina por apontar a montagem
como
o
principal
fundamento
da criação cinematográfica de Guerin.
Sua tática narrativa de “não-apresentação”, em que tudo nos chega pela simples
observação de fatos um quê isolados, reafirma este esforço de “colagem”, ao mesmo
tempo em que intensifica a conjugação do olhar do espectador com o olhar do cineasta,
trazida pelo caráter de “vistas” das tomadas. Os diferentes quadros que este
pôde fabricar a partir do real são agrupados e apresentados como um material
bruto. As imagens nos chegam como se também nós estivéssemos
expostos ao pedaço de mundo visado, munidos igualmente de uma câmera como catalisador
privilegiado do exercício da visão. O espectador torna-se então, a exemplo do
próprio autor do filme, uma espécie de cinegrafista-montador a
vaguear pelo espaço – e a construir uma rede invisível fora dos limites do enquadramento
de cada imagem. Pois, progressivamente, um quadro passa a remeter a outro e a
criar contraplanos “falsos” para gestos e olhares.
Surge aí um certo sentido de cosmogonia que Guerin parece secretamente criar
em
seus filmes. Seu olhar-Lumière, meio sujeito à contingência do tempo, meio ancorado
num desejo de abstração e fabulação, conspira aqui e ali, na
exploração da duração e da seqüencialidade, a favor da investigação de
ligações significativas entre o homem e seu entorno. É a partir das comunidades
em funcionamento (a vizinhança em En
Construcción, a família e os “visitantes” em Los Motivos de Berta,
a cidade e o cineasta em Innisfree, o coletivo anônimo em En La Ciudad
de Sylvia) que vemos surgir as transformações do
espaço e, por conseguinte, as transformações dos personagens. Para Guerin, todas
as ações humanas deixam marcas no mundo, e estas marcas estão sujeitas
inexoravelmente à dinâmica permanência-dissolução.
Emerge daí a memória como a chave para uma melhor aproximação com a experiência
humana para além do instante que a câmera é capaz de captar. A forma com que
os
momentos que podemos observar podem ou não ser preservados, sobrevivendo a seu
acontecimento primeiro, parece ser a interrogação maior deste cinema.
Assim sendo, o resgate histórico de Innisfree (a passagem de John Ford
por uma pequena cidade do interior da Irlanda para
filmar Depois do Vendaval), a
interrogação sobre os efeitos do tempo em registros fílmicos familiares em Tren
de Sombras, a obsessão do
protagonista de En La Ciudad de Sylvia em reencontrar um rosto do passado,
ou a preocupação com o desaparecimento de uma arquitetura e uma forma de viver
em En
Construcción são proposições que espelham a paixão do cineasta pela captura
da graça e da fugacidade de formas, de gestos, de expressões, de movimentos,
de falas.
Sempre um sorriso fugidio, uma encabulação inesperada, uma enunciação surpreendente.
Isto está tanto na forma de ficcionar de Los Motivos de Berta e de En
La Ciudad de Sylvia, como no cuidado de documentar e encenar de forma indistinta
em Innisfree e em En Construcción, ou na fixação obstinada pelos
detalhes dos filmes caseiros de Gérard Fleury em Tren de Sombras. O desejo
observacional de Guerin responde
indistintamente à ficção e ao documentário. A recorrência da aura de um mundo
um quê primitivo, próximo de um viver comunitário prosaico e distante da modernidade
urbana e tecnológica, contribui para construir a sensação de um grande universo
povoado de breves acenos, implicâncias discretas, ruídos cotidianos, figuras
estranhas que habitam as ruas...
Se nossa sensibilidade comumente empresta a ambiências valores e simbologias, é certamente
porque delas tiramos nossa principal medida de memória das
experiências. E é pela tentativa de estabelecer situações marcadas por
ambiências especificas como vivência autêntica para o espectador que Guerin institui
sua preocupação com a memória das pequenas coisas, da cotidianidade que se transforma
pelo próprio movimento dos homens no tempo. O cinema, através
do inegável carinho do cineasta em restituir em filme a sensação de vicência
de um momento,
sobrevém como esta arte capaz de registrar e devolver aos homens este movimento.
Empunhado como o ato fotográfico, ele torna-se um instrumento precioso
de
preservação de instantes vivos e uma arte
privilegiada da intensidade emotiva.
Tatiana Monassa
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