"Il faut recommencer de zéro"
- J.-L. Godard (por volta de
1966)
Para conseguir ser claro, deixe-me
contar para vocês três estórias aparentemente desconexas.
Em 1983, meu telefone tocou.
Um jovem de quem nunca ouvira falar chamado José Luís Guerín, que tinha então,
como vim a descobrir, 23 anos, e que vivia em Barcelona, teria algum tipo de
pré-estréia de seu primeiro longa-metragem em Madrid, e queria que eu a
apresentasse. Eu disse que antes precisaria ver e gostar do filme o bastante. O
que aconteceu (ambas as coisas) alguns dias depois. Uma vez tendo concordado em
apresentar a pré-estréia, perguntei a ele porque ele havia pensado em mim. Ele
me respondeu que lera e gostara de algumas das minhas críticas, especialmente
uma, de uns 9 anos antes, sobre Lancelot
du Lac, de Bresson. Fiquei duplamente intrigado, porque pouquíssimas
pessoas (e ele só tinha 14 anos na época) haviam gostado daquele filme do
Bresson em particular, e eu detectara alguma atitude bressoniana em seu filme, Los Motivos de Berta. Desta maneira
começou uma das nossas usualmente espaçadas mas muito longas conversas, que
sempre o faziam se atrasar para algum compromisso (sinto-me culpado que certa
vez ele tenha deixado Marcel Hanoun esperando por um longo tempo). Já na época era
bastante estranho que alguém tão jovem falasse de Flaherty, Griffith e
Dovzhenko como seus contemporâneos, assim como Godard, Eustache ou Garrel, e
não que este último trio fosse assim tão popular ou largamente conhecido entre cinéphiles ou cineastas espanhóis no
começo dos anos 80.
Guerín era, sem dúvida, um
tipo único. E ele não só manteve como firmemente ultrapassou as promessas de
seu primeiro longa. Fez, na Irlanda, Innisfree (1990), em inglês e gaélico, sobre as memórias deixadas em Cong, Count Mayo,
pelas filmagens de Depois do Vendaval (1952), de John Ford; em 1996, rodou Tren
de Sombras, praticamente sem diálogos, na França, uma fascinante
investigação a partir de um filme caseiro “recuperado” (na verdade filmado por
Guerín); em 2000, filmou por fim sua cidade natal, Barcelona, no largamente
premiado (incluindo o Prêmio Nacional de Cinema) e bastante pessoal
documentário En Construcción, que o
tornou uma figura relativamente conhecida. Pareço ser sempre o primeiro a
assistir a todos os seus filmes, ainda que precise assumir (uma vez que as
pessoas se perguntam isso quando vêem seu nome na seção de agradecimentos dos
créditos finais) que eu apenas o encorajo ou apoio sua postura contra produtores
ou outras pessoas que queiram encurtar seus filmes, uma decisão que teria
empobrecido e ferido seu precioso ritmo. Desde En Construcción, ele continua lecionando e ensinando jovens
estimulantes a fazer filmes não convencionais, e tem se mantido ocupado
preparando um novo filme.
Num cinema de porte médio
como o espanhol de hoje, que não é realmente uma indústria mas sim um misto de
pequeno negócio e artesanato individual (nem sempre em bons termos um com o
outro), os únicos filmes verdadeiramente originais, ambiciosos e interessantes
são realizados por um grupo cada vez menor de cineastas independentes, devotados o
bastante para sofrer longos períodos de desemprego forçado, frustração e mesmo
pobreza. Eles ainda acreditam que o cinema pode ser uma arte, e tentam fazer
algo a respeito. A relutante "figura paterna" ou modelo da maioria destes
jovens e promissores cineastas é, claro, Víctor Erice, e eles incorrem no risco
de fazer quase tão poucos filmes quanto ele. Existem melhores e piores
temporadas num cinema tão frágil como o nosso, dependendo de quantos destes
cineastas são bem sucedidos em realizar algo (mesmo um curta), mas 2005 resultou,
para mim, numa safra muito pobre, apesar das opiniões oficiais, corporativas e
complacentes expressas por boa parte dos críticos e cineastas, e do deprimente sucesso
de público de alguns dos piores. E, muito apropriadamente, o melhor filme do
ano não existe.
É claro, ele existe, uma vez
que já o vi por onze vezes, em três diferentes versões até agora. Mas ele não
tem nenhuma existência oficial ou administrativa: o Ministério da Cultura não
sabe a seu respeito, não o "revisou" ou "registrou", e portanto, não aparecerá
no catálogo do Cinema Espanhol: 2005. Nunca foi exibido publicamente. Por
insistência minha, Guerín o mostrou em sessões privadas a um punhado de amigos,
e tem, até agora, recusado que qualquer pessoa ligada a festivais o veja. Tudo
isso sob a dúbia afirmação de que não é exatamente um filme, mas apenas uma
espécie de "planta fotográfica" para um futuro longa-metragem, programado para
ser rodado em película de 35mm (ao invés da câmera de vídeo digital pequena e
de baixa definição e, pelo menos em parte, com uma câmera fotográfica digital), em
cores (o "protótipo" é em preto-e-branco, uma vez que Guerín o de-saturou
completamente), com diálogos, ruídos e música (ao invés de ser absolutamente
silencioso, que eu sinto que é como deveria permanecer), sem intertítulos
(considerando que é um filme para ser lido, e é parte vital de sua experiência
ver as palavras aparecendo na tela, como em alguns dos últimos filmes de
Godard), e com completo e normal movimento (na verdade, parece quase um La Jetée em longa duração, já que a
maior parte de suas imagens são fotografias; existe apenas, ocasionalmente,
alguns movimentos ligeiros, breves e bastante hesitantes, um pouco como alguns
filmes de Godard começando com Sauve qui
peut [La vie]).
Mas não é de todo verdade,
como seu autor pretende, que este filme seja uma planta, ou uma coleção de
notas aleatórias tomadas no sentido de preparação de um filme, ou o rascunho preliminar
de um filme a ser feito – o que, sinto, seria completamente redundante, uma vez
que Guerín já o realizou, e com bastante sucesso, minuciosamente editado,
cuidadosamente estruturado, num casamento ritmado de narrativa e reflexão, de
recordações e especulação, cheio de mistério e com um agudo senso de procura,
incessante, e talvez eterno, o que muitas vezes nos faz pensar no Um Corpo Que Cai de Hitchcock, apenas
para nos lembrar, um momento depois, do Jonas Mekas de Reminiscences of a Journey to Lithuania, ou sugerir um
desenvolvimento mais longo e complexo do último curta de Eustache, Les Photos d’Alix. Despejo todas estas
referências não para promover o filme, mas para ajudar os leitores a
compreender a natureza muito particular de um filme que eles estão
impossibilitados de ver, e que talvez nunca tenham a chance de sequer dar uma
olhada. E é algo tão único que me parece muito difícil descrevê-lo.
Aliás, ele é provisoriamente intitulado Unas Fotos... En La Ciudad de Sylvia... Y Otras Ciudades. O que poderia se traduzir [para o inglês] como
Some Photographs... In the City of Sylvia... and Other Cities. Ou talvez como Some Stills… In Sylvia’s City… and Other
Cities, ou ainda Some Snapshots… In
Sylvia’s City… and Other Cities. Em todo caso, o título é o que eu menos
gosto nele. É auto-redutor (ainda que parcial, como tudo no mundo, o filme está
longe de ser meramente "umas fotos"), e completamente desviante enquanto
descrição. Seu atual título nem sequer sugere o caminho narrativo que faz o
filme se mover (em todo sentido da
palavra), ainda que suas imagens sejam em maioria estáticas e seu ritmo
bastante deliberado. Deveria se chamar, por exemplo (para mudar o mínimo
possível), À Procura de Sylvia Através de
Sua Cidade... E Outras Cidades. Mesmo que Guerín queira resguardar o quão
pessoal e subjetivo um filme é (eu me pergunto como, e mesmo por quê? Ele é
tímido, é claro, mas...) e prefira, ao invés, fingir que Unas Fotos não tem nada a ver com um
diário íntimo.
No entanto, o que é realmente
significativo é o ponto de partida pessoal do que se torna finalmente um tipo
muito peculiar de ficção especulativa, que me fez pensar numa versão diurna do Nadja de André Breton, um livro que,
surpreendentemente, o cineasta não leu. Em 1980, na cidade de Estrasburgo,
Guerín (ou o invisível e inominável narrador, que se dirige a nós
silenciosamente, em curtas frases escritas) conheceu uma garota chamada Sylvia,
que falava um pouco de espanhol porque estudara enfermagem em Salamanca. Ele
não se lembra, ou talvez nunca tenha sabido, seu sobrenome. A única lembrança
de seu encontro é uma caixa de fósforos do café Les Aviateurs, onde se
conheceram e conversaram, e um encosto de copo com algumas anotações escritas:
o endereço de uma velha livraria local que, vinte anos depois, quando Guerín
tenta encontrá-la, já não existe mais.
Considerando sua profissão,
Guerín pega um mapa da cidade e localiza os lugares onde ela poderia estar:
hospitais e clínicas, a Faculdade de Medicina, entre outros. Ele circula por
estes lugares com vigilante e esperançosa antecipação. Olhando para toda garota
a pé ou de bicicleta, esperando por um encontrou ou pela luz verde na faixa de
pedestres, sentado num café ou restaurante. Aparentemente sem se dar conta
inicialmente que, tendo se passado vinte anos quando a busca começa, qualquer
jovem que se assemelhe a Sylvia seria muito mais provavelmente uma filha dela.
Olhando para mulheres, finalmente de todas as idades, sem encontrar Sylvia, ele
se torna interessado, intrigado e atraído por um sem-número de outras, muitas
delas completamente diferentes de Sylvia, e até chega a seguir algumas através
das ruas da cidade, enquanto relembra o amor de Goethe por Charlotte (ou
Lotte), que também era de Estrasburgo e que sentiu ciúmes quando a personagem
de Werther, que tão proximamente se
assemelhava dela, acabava tendo os olhos de cor diferente dos de sua garota.
Não revelarei mais sobre Unas
Fotos, porque parte da excitação que ele produz vem das surpreendentes conexões
e associações que Guerín promove. Perderia seu suspense quase hitchcockiano,
seu drôle de chemin bressoniano onde
"o vento sopra por onde deseja", a sensação de atravessar diferentes cidades
européias – o que os franceses chamam flâneries – que conta como a maior parte de seu charme peculiar. É o bastante sugerir que
é verdadeiramente um filme europeu em seu espírito e suas referências culturais
– Petrarca e Laura, Dante e Beatrice cruzando caminhos no passado das cidades
visitadas uma vez mais, e fazendo o narrador se perguntar onde exatamente, e a
partir de que ponto de vista, o poeta pela primeira vez viu a mulher por quem
se tornaria obcecado – tipicamente uma preocupação de cineasta.
Apenas em um ponto eu consigo
entender a relutância de Guerín em exibir seu novo filme: é talvez um novo tipo
de filme, provavelmente muito distante do lugar-comum, e os tempos atuais não
estão tão abertos a experiências como esta. Em verdade, tenho bastante
dificuldade em pensar quando um filme como Unas
Fotos poderia ser normalmente exibido no cinema mais próximo de você, não
importa onde você viva (mesmo em Paris). É, talvez, uma experiência íntima
demais para pessoas que você não conheça estarem sentadas assistindo-a a seu
redor. E o silêncio, duro e total, que acredito ser tão necessário para que se
possa olhá-lo propriamente, sem os ritmos de qualquer música interferindo nos
ritmos do próprio filme, sem som, diálogo ou música anunciando, sublinhando,
tencionando ou "poetizando" qualquer parte dele, provavelmente seria tão
perigoso num cinema quase vazio quanto numa casa lotada. A maior parte das
pessoas reage muito agressivamente ao silêncio prolongado, pensariam que o som
não estava funcionando direito e começariam a gritar e gargalhar, apenas para
se darem conta, chocados e raivosos, de que o filme é realmente inteiramente
silencioso. O que causaria uma reação auto-defensiva contra um filme que exige
tanta atenção e concentração em suas imagens a ponto de não dar nenhum
descanso, nenhuma trégua, nenhuma idéia ou esperança de distração daquilo que está
na tela. Talvez um novo tipo de cinema peça uma nova maneira de comunicação com
as platéias, que não poderia ser uma multidão, mas indivíduos ou pequenos
grupos de amigos sentados diante de uma tevê, na intimidade de suas próprias
casas. Talvez tivesse que ser distribuído em DVD ou comprado pela
internet.
Por outro lado, acho que o
novo filme de Guerín deveria ser visto em todo lugar, porque ele nos oferece
uma demonstração extasiante de liberdade. Ele prova que, graças à nova e
ultra-barata tecnologia, você pode fazer um grande filme, desafiante e pessoal,
sem dinheiro, por conta própria, com apenas (é claro) muito talento, esforço e
tempo, e acredito que isto possa ser extremamente encorajador para cineastas
aspirantes que quase se desesperam diante da dificuldade em começar, em
convencer produtores e mesmo – uma vez com o filme feito – de conseguir um
lançamento justo. Uma vez que o filme de fato exista, ele deve ser visto.
Afinal de contas, o que são os filmes para aqueles cuja meta não é apenas conseguir
algum dinheiro? São para serem vistos e ajudarem outros a ver.
Guerín vem coletando imagens
para este projeto por quase quatro anos, construindo, remodelando e refinando-o
incessantemente. Para isso ele não precisa de dinheiro, de financiamento, de
produtores. Seu maior investimento é seu próprio tempo. Tempo para viajar e
andar, para ler e pensar, para escolher ângulos e quadros, para olhar por aí e
editar suas lembranças, os traços de sua busca. A tecnologia moderna permite
isso por quase dinheiro nenhum. Mas o DV pode ser usado – e muitas vezes é –
com bastante descuido; é muito fácil. E para um verdadeiro cineasta, ele
deveria impor algumas questões. Com o vídeo digital você pode filmar o quando
se quiser, e fazer longas e ininterruptas tomadas, ao invés de planos
cuidadosamente pensados; as câmeras são tão pequenas que você pode se tornar
muito facilmente um Peeping Tom ou um voyeur,
e tão leves que você pode segurá-las na mão, esquecer os tripés e movê-la o
tempo todo, sem aparente necessidade de se preocupar com continuidade ou mesmo
com apropriados enquadramento e composição. De fato, a tecnologia digital não
tem fotogramas, não tem quadros, nada da velocidade de 24 frames por segundo,
nenhuma Cruz de Malta, nenhuma persistência na visão, nenhuma projeção, quase
nenhuma tomada para cortar e ligar; isto é, quase nada daquilo que tem definido
o cinema por mais de um século. Mesmo a edição é uma questão diferente: o vídeo
digital encoraja um novo e bastante passivo conceito de "montagem". Tenho certeza
que Guerín leu pelo menos alguns dos inquietantes ensaios de Serge Daney sobre freeze-frame, sobre fotografia, sobre a
natureza variável das imagens. Acredito que ele tenha pensado profundamente
sobre estas questões, e acredito que ele, talvez inconscientemente, encontrou
uma maneira de evitar as tentações e facilidades e perigos da realização em
vídeo digital.
Seu instinto o fez começar
pelo começo. Com o novo, barato, quase gratuito equipamento, e tendo como
modelo não D.W. Griffith ou Louis Feuillade, nem mesmo Louis Lumière, mas antes
os pioneiros de primeira hora, Etienne Marey e Edweard Muybridge, ele
encontrou novamente a verdadeira essência do cinema, seu esquecido, invisível,
desprestigiado segredo: que não há, na verdade, nenhuma imagem em real
movimento, mas apenas stills, uma sucessão de fotografias cuja sucessão cria a ilusão de movimento. Entre cada uma,
existe sempre ao menos uma diminuta, quase imperceptível elipse, o pedaço negro
e vazio entre cada frame. Godard estava apontando para este mesmo problema,
acho, quando iniciou a utilização do videotape e começou parando o movimento
das imagens, ou diminuindo-o, para então acelerá-lo de novo, para tornar
visível o isolamento original e a desejosa e deliberada ligação entre frames que
permite a passagem de um fotograma a outro, o que também explica a insistência
de Bresson em chamar o que ele fazia de cinématographe,
ao invés de cinéma: afinal de contas,
ele estava escrevendo com o articulado movimento de fixas e estáticas imagens.
Isto é o que eu considero uma espécie de "justiça poética" que Guerín,
reinventando o cinema por meios digitais, tenha retornado ao verdadeiro começo,
sem qualquer tipo de som, nem mesmo música ou ruído, sem cores, e tenha
empregado apenas os mínimos e mais básicos elementos, aqueles disponíveis
quando o cinema ainda não era entretenimento, ou nem mesmo um espetáculo, mas tão
somente uma ferramenta científica com a intenção de olhar aquilo que não se
podia ver a olho nu, e registrar e manter um arquivo, tomar notas, fazer
anotações. Mas Unas Fotos não é
meramente um remake dos primeiros passos do cinema antes de Lumière: não me
lembro de um único filme silencioso que utilizasse intertítulos como uma
espécie de monólogo interior, como uma espécie de equivalente escrito e
silencioso de um comentário em voz off, como Guerín faz. Feito o poema de W.B. Yeats citado no início do Innisfree de Guerín anunciava, "I will rise now, and go...".
Miguel Marías
(artigo publicado originalmente na revista Undercurrent, organizada pela FIPRESCI, edição n° 1, abril de 2006/ Tradução do inglês por Rodrigo de Oliveira)
|