O trailer de Conversas
com o meu jardineiro (Dialogue avec mon jardinier,
Jean Becker, 2007), está ou estava em exibição em
alguns cinemas do Rio. Assisti-o antes da sessão
de Império dos Sonhos (Inland Empire,
David Lynch, 2006). O que tem a ver esse trailer com
o filme de Lynch, e ambos com Jogo de Cena (Eduardo
Coutinho, 2007)? A rigor, nada. Mas para que as coisas
não fiquem logo no princípio tão confusas, começo
explicando por que mencionei o trailer.
Em primeiro lugar, devo esclarecer que não vi o filme francês, tive contato apenas
com o trailer. Portanto, não estou falando do filme, mas apenas de um
trecho de uma cena selecionada para a montagem do trailer. A cena mostra
o personagem interpretado por Daniel Auteuil, um pintor, conversando com o seu
amigo jardineiro do título. Enquanto conversa, Auteuil pinta a paisagem campestre
que tem à sua frente. Em um certo momento, ele pergunta ao amigo jardineiro o
que este estava achando da pintura. O jardineiro responde algo assim: “É bonito,
mas não tem nada a ver com que está na nossa frente”.
A importância do trailer para este texto termina aqui, com essa frase
do jardineiro. Não sei qual é a continuidade da cena, muito menos se o pintor
responde alguma coisa. Fico apenas com a frase do jardineiro, e é a partir dela
que proponho esboçar aqui, a respeito de Jogo de Cena e de Império
dos Sonhos, não propriamente uma comparação, mas um conjunto de impressões
mais ou menos desconexas sobre algo que me parece existir nos dois filmes, o
de Coutinho e o de Lynch: a crença em que é pela abolição de qualquer vínculo
com a representação do real que o cinema pode propor algo de novo.
O brasileiro e o norte-americano chegam a essa crença por vias absolutamente
distintas, mas que nem por isso deixam de se encontrar. Eduardo Coutinho tem
sua trajetória marcada pelo documentarismo, o que significa um corpo-a-corpo
com a representação do real em seu nível mais complexo. Já David Lynch sempre
investiu na criação de um imaginário desconectado das regras mais elementares
do realismo, buscando uma cada vez maior interpenetração do universo onírico
com o “real” representado. No entanto, aproxima os dois cineastas uma mesma postura “autoral”,
na medida em que ambos procuram impregnar seus projetos de traços visivelmente
relacionáveis em seu conjunto.
A negação do acesso à representação do real tem grande importância na trajetória
dos dois cineastas. No caso de Eduardo Coutinho, significa um investimento cada
vez maior no minimalismo da composição audiovisual em torno do entrevistado,
tendo como conseqüência uma paradoxal ênfase no imaginário, isto é, em um mundo cinematograficamente
não representável. Se em um filme como Santo Forte isso se dava em
alguns momentos muito precisos (a câmera filmando um ambiente vazio, a respeito
do qual, um pouco antes, uma senhora dizia estar repleto de espíritos), em Jogo
de Cena isso é levado quase às últimas conseqüências: as histórias são contadas
pelas personagens e não há imagem alguma a sustentá-las, a não ser o rosto de
quem conta e a imaginação do espectador.
A ruptura de qualquer vínculo com a representação do real também surge em Império
dos Sonhos como uma espécie de ponto máximo de uma pesquisa que tem nos demais
filmes de David Lynch uma série de experiências decisivas, mas não tão radicais.
Nos filmes anteriores do cineasta, o recurso a uma espécie de “respiro”, mesmo
quando as ações jamais repousam no verossímil, de uma forma ou de outra sempre
existiu. Sentimos as “passagens” de um universo ao outro, ainda que ambos pudessem
ser “irreais”. Essas “passagens”, em Império dos Sonhos são muito menos
perceptíveis, ou melhor, classificáveis. Talvez não seja o caso de apontar
somente a mise-en-scène do filme como sendo a responsável por esse efeito.
Creio que a própria textura da imagem, captada (e, no caso da sessão a que assisti,
projetada) em vídeo digital, colabora para intensificar a irrealidade a
que me refiro.
É curioso pensar que, para cineastas tão diferentes quanto Coutinho e David Lynch,
o vídeo digital foi, de certa maneira, um suporte redentor. Para o brasileiro,
por permitir o registro contínuo do fluxo narrativo do entrevistado, de forma
bem mais extensa do que seria possível, caso se usasse o 35mm ou o 16mm. Para
o norte-americano, por tornar bem mais instável, indefinido e desconfortável
o contato do espectador com as imagens. A película cinematográfica assegura um
padrão de definição excessivamente “confiável” que, por isso mesmo, está próximo
demais do prazer da representação do real que se busca problematizar.
Assim, o que aproxima Jogo de Cena de Império dos Sonhos é um mesmo
princípio – o “real” inacessível – e uma mesma tecnologia – o vídeo digital –,
tecnologia esta que inscreve, na desaparição das referências de um “real” não
representável, a predominância de um “segundo universo” imaginário, paradoxalmente
tão inacessível quanto real.
Em Jogo de Cena, ficamos restritos à série de depoimentos concedidos por
um determinado número de mulheres. Estabelecemos com esses depoimentos relações
diferenciadas, dependendo das circunstâncias (se conhecemos ou não as atrizes,
se sabemos ou suspeitamos que se trata da pessoa que realmente viveu a história
ali narrada). Vez ou outra, o filme deixa entrever um pouco do cenário em que
se desenrolam as entrevistas (o palco de um teatro vazio). Também a equipe técnica
está parcialmente presente na imagem e no som. Sempre no canto esquerdo da imagem,
percebemos os reflexos de um refletor, parte da câmera que filma os convidados,
um ou outro membro da equipe que aponta a cadeira na qual a entrevistada deve
sentar, além do próprio Coutinho que, de costas ou de meio perfil, conversa com
as atrizes sobre o próprio processo de filmagem.
O que predomina, contudo, é um enquadramento que quase não apresenta variações,
recortando em primeiro plano ou em plano médio as depoentes que, por sua vez,
invariavelmente se situam na metade direita do quadro. Excluindo os planos inicial
e final (respectivamente, um anúncio nos classificados de um jornal convocando
interessadas para as filmagens e o plano geral do palco teatral vazio, com apenas
duas cadeiras voltadas uma para a outra), as únicas quebras nessa estrutura formal
se dão quando uma câmera adicional acompanha algumas das depoentes (não todas)
no trajeto que vai da escada interna do teatro até o palco. Nesses momentos,
o rigor da composição se quebra, o que não significa concessão: acompanhamos
simplesmente o trajeto estreito de uma subida em uma escada envolta em breu;
aqui e ali, uma fraca iluminação nos ajuda a distinguir parte do cenário e a
própria personagem que caminha.
Escolher enquadrar quase que exclusivamente rostos de mulheres em um cenário
impessoal é uma atitude de radical recusa diante de qualquer tipo de contextualização.
Não interessa aqui conhecer as casas em que vivem as mulheres, não interessa
conhecer os rostos das pessoas mencionadas por elas, não interessa saber o trajeto
que cada uma fez para chegar até o teatro, não interessa nem mesmo conhecer o
teatro ou o rosto do diretor que as filma. Tudo é sugerido, entrevisto/ouvido,
sobretudo imaginado. E é aqui que as semelhanças com Império dos Sonhos passam
a ter mais sentido. Ao recusar o contexto, Coutinho recusa qualquer tipo
de “representação do real” que não parta exclusivamente da narrativa, da palavra
dita pelas personagens. O “real” nasce da fabulação, do imaginário, do contato
com um tipo de matéria que não cabe ao cinema representar convencionalmente,
mas, de alguma outra forma, “oferecer” ao espectador.
Em um dado momento de Império dos Sonhos, Kitty/Sue (no filme, atriz/personagem
interpretada por Laura Dern) conta momentos de sua vida para um homem de quem
não sabemos o nome nem a função. Talvez se trate de um advogado, ou de um delegado,
mas não se pode saber ao certo. O cenário, envolto em penumbras, tampouco nos é explicado.
Kitty/Sue chega até ele subindo uma estreita escada, iluminada, aqui e ali, por
fracas lâmpadas amareladas. O “depoimento” da atriz/personagem é totalmente fragmentado,
mas, durante um bom trecho, retorna diversas vezes, criando certa coerência narrativa.
Percebemos, por exemplo, que se trata de um depoimento de uma prostituta. Percebemos,
mas evitamos compartimentá-lo e trancafiá-lo dessa forma, porque o mais importante é a
constante indefinição que constrói todas as cenas do filme, incluindo a incerteza
que nos instiga a sempre duvidar do que está diante de nós.
Quem fala? Quem escuta? Não sabemos nada nem sobre um, nem sobre o outro. E o
filme tampouco busca explicar. Desde o primeiro sinal luminoso que marca o início
da projeção, não nos resta outra alternativa a não ser mergulhar no universo
delirante construído pela narrativa. Somos reféns. Do sonho só sairemos quando
o tempo da projeção acabar. Sem “respiros” ou “pausas”, sem qualquer tipo de contextualização que
nos remeta a ao plano das formas “equilibradas”, regido pela “objetividade”.
Tal “plano” não existe.
Império dos Sonhos é, na verdade, o reinado da descontinuidade temporal
e espacial, a reelaboração dos códigos narrativos em um fluxo ininterrupto
de efeitos visuais e sonoros quase sempre sutis, às vezes excessivos e
explosivos, mas de qualquer forma apartados da necessidade de uma representação
do real. Não há pontos de referência “exteriores” à própria narrativa,
e por isso – tal como nos sonhos – ela se torna tão aterrorizante. De fato,
o terror, em Lynch, não está no elemento pró-fílmico (ainda que,
aqui e ali, surjam máscaras horríveis, sangue etc.). O terror está na
própria estrutura asfixiante da narrativa. Mesmo as “máscaras” e o “sangue” que
mencionei um pouco acima, não são propriamente “máscaras” e “sangue”, mas,
no primeiro caso, efeitos visuais criados por sobreposição de imagens e
pasta de catchupe sangue artificial. É preciso ressaltar que Império
dos Sonhos tem como tema central o próprio imaginário cinematográfico;
se quisermos ser bem esquemáticos, podemos dizer que o “cenário” do filme é uma
espécie de set de filmagem desmaterializado.
Assim como vemos parte da equipe em Jogo de Cena, o aparato cinematográfico
também está presente em diversas cenas de Império do sonho. Porém, não
se trata, em ambos os casos, de fetichismo ou de mera brincadeira reflexiva.
Para Coutinho, o cinema não só estabelece as “regras” do jogo, como efetivamente faz
parte desse jogo, ou melhor, é sua peça central. Mas o cinema não pode ir
além do registro de um real que enuncia uma outra “realidade”, no fundo “infilmável”.
Contudo, essa outra “realidade” é a que interessa. Ela deve ser, portanto, “reelaborada” em
termos audiovisuais, de forma a fazer com que o espectador tome contato com ela,
não por meio de sua “representação”, mas por meio da palavra, do gesto, e, no
fim das contas, da própria imaginação que o filme solicita do espectador.
Para Lynch, o cinema se tornou, ele próprio, uma espécie de “imagem em segundo
grau”, inscrita no território desrealizado do vídeo digital. Império dos Sonhos existe,
antes de mais nada, como informação numérica não-visível. O fotograma – base
da antiga crença ontológica do cinema – sequer lhe serve de suporte. O cinema,
não sendo “janela” para o “real”, tampouco deve ser visto como algo que faz parte
desse mesmo “real”. Resta a própria simulação de um universo que só pode existir
como simulação. O “real” (quem sonha? onde se sonha?) desaparece e dá lugar ao
reinado da imagem onírica.
Por vias muito diferentes, Coutinho e Lynch parecem chegar a uma compreensão
comum: o cinema só existe como uma espécie de “véu de acesso” ao imaginário do
próprio espectador. O véu nos deixa ver apenas um pouco do que está por trás. É,
contudo, nossa única via de acesso. Por isso, filmes como Jogo de Cena e Império
dos Sonhos são tão estimulantes para o espectador, pois sentimos a necessidade
de queimar o véu com a ponta do cigarro para tentar enxergar o que, enfim, está diante
de nós, ou seja, nós mesmos.
Relembrar a frase do pintor, no trailer de Conversas com o meu jardineiro,
me parece aqui necessário. Comparando o quadro pintado com a paisagem “real”,
ele diz: “O quadro é bonito, mas não tem nada a ver com que está na nossa frente”.
O que interessa a filmes como Jogo de Cena e Império dos Sonhos não é representar
exatamente a “paisagem à nossa frente”, mas mergulhar, de forma radical, no gesto
interior daquele que a pinta.
Luís Alberto Rocha Melo
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